maio 13, 2019

esperando Sofia

adélia tem me deixado estupefata, me dado gastura e delícias
eu que nunca consegui ler poesia direito.

hoje, no ônibus, li esperando sarinha
primeiro lembrei-me da minha prima, que também se chama Sarah
mas foi só a evocação do nome, no final do poema eu já o tinha transformado
e ficou assim

ESPERANDO SOFIA

Sofia é uma linda menina ainda mal-acordada.
Suas pétalas mais sedosas ainda estão fechadas,
dormindo de bom dormir
Quando Sofi acordar,
vai pedir leite na xícara de porcelana pintada,
vai querer mel aos golinhos em colherinha de prata,
duas horas vai gastar fazendo tranças e castelos.
Estou fazendo um vestido,
uma tarde linda e um chapéu,
pra passear com Sofia,
quando Sofia acordar. 

por mais que seja doce e que Sarinha apenas está dormindo de bom dormir,
uma melancolia rescendendo à morte me invadiu. 
o que me fez sentir isso foi a última estrofe:
estou fazendo um vestido,
uma tarde linda e um chapéu
porque estou fazendo uma tarde linda para quando Sofia acordar.
porque quando ela acordar vai ter tudo que quiser, e vai ser criança novamente: mel, leite, flores, tranças e uma tarde de sol.
estou fazendo o leite, a colherinha, o mel, e pintando a porcelana, estou esperando seus castelos, ansiosas por trançar seu cabelo, que vai estar comprido.
e tantos poemas de morte, tão mais concretos que este, e nada eu senti. porque estou esperando Sofia acordar. e se Sofia apenas dorme? e se sou eu que durmo? se Sofia não está nos meus sonhos, eu estou nos dela? e tudo isso fez-me pensar que já é maio. então queria dizer algo, mas não sei escrever poemas.
adélia disse que o poema vem com gordura e sangue, e depois tem de limpá-lo como se limpa um recém-nascido. eu não sei limpar poemas porque não sei escrevê-los, então vou de uma vez:

todo dia cinco de janeiro Sofia nasce
e todo dia primeiro de junho Sofia morre
de janeiro e junho a tristeza me arrasta
com ferro e suspiros

levará ainda seis meses e quatro dias
até que Sofia renasça
pois é cinco de janeiro novamente
- este é o tempo da noite

nunca soube que ano ela nasceu e morreu
pois todo ano ela nasce e volta a morrer
e o tempo é sempre igual
intrépido qual uma trepadeira

no meio de março, quando Sofia já aprendeu a falar
e dorme com duas chupetas
me chama de Nana
no fim de maio, quando deita-se já exausta
e o irmão que não conheceu faz anos,
a palavra se dissolve em sua boca

deixa no mundo só seus rastros,
o eco de Nana que não posso ouvir
risada de erê levado

cinco anos e cinco meses,
julho dilata-se no triste azul da bahia,
em outubro peço Perdão

novembro é só saudade

em dezembro pego-me ansiosa: 
o ano vem vindo de mansinho e Sofia também
feita de tempo, areia e vento

o sol nasce-lhe os olhos
e a lua a embala no seu sono
que seja cheio de sonhos dourados
quentes como são em janeiro
novilhos lambidos pela mãe

os olhos espicaçam claros
a luz é dura feito um estilhaço
descansa dentro das vísceras
logo nos chamaremos








fevereiro 09, 2019

nota para depois

eu acabei de rever cópia fiel. eu vi pela primeira vez no cinema, e na época não entendi muito bem. quando estava revendo agora, não me lembrava nem que ela muda no meio do caminho e diz que eles são casados, casualmente, e assim segue o filme. na época eu via filmes querendo ver as imagens, etc, aquelas que ficam rolando no vidro do carro, achava lindo, pensava vo bota no meu. nota inútil: é muito bom deixar de querer fazer cinema, ver filme é gostoso demais agora
bem, eu me lembrava de uma coisa.
era que no final ou perto do final víamos a juliet binochet olhando-se no espelho que é a câmera, e a coisa toda ia dando um zoom in até ficar bem pertinho da pele dela, OU, ela se olha e no canto esquerdo tem um quadro parecido com ela que vai dando esse zoom in. de qualquer forma, havia um zoom in intenso que revelava a textura da imagem, da coisa que não é, que é superfície.
absolutamente tem nada disso no filme, talvez não tenha nenhum zoom in.
esperei até o fim dos créditos.
o que a minha memória fez? inventou um plano que, no fim, simbolizou tudo que eu entendi do filme? eu inventei? parece tão real. peguei de outro filme com a juliet e botei ali?
não consigo entender. procurei por coisas que tenha escrito sobre, nada.
daí uma certa importância da gente fazer essas notas, mesmo que apressadas.
pelo menos pra mim, com uma memória tão frágil a inserções.
meu deus, esse texto parece até uma ficção que tenta fazer jus ao filme, ao cerne do filme, mas infelizmente não é. quem dera fosse. mas agora, poderia ser uma boa ideia. então, daqui 10 anos se eu ler de novo vou pensar que pensei tudo estrategicamente. não, não pensei, sou enganada por mim mesma o tempo todo. que isso fique claro.

e além de tudo isso, fui procurar boas críticas que dessem conta do fôlego de cópia fiel pfffffffff. que grande bosta. tudo um lixo. mas a que me chocou foi a da cinética.
quando eu escrevia críticas de cinema aos 23 anos (acho) eu lia as críticas da cinética e ficava toda mordida, morrendo de inveja, entendia nada e queria escrever assim
daí que minhas críticas são terríveis também e uma boa parte vem de eu querer imitar a linguagem da cinética, sem ter as referências que aqueles homens tinham
até hoje quando eu ouço a palavra cinética eu tremo um pouco
a crítica do eduardo valente de cópia fiel é preguiçosa e mal escrita. pronto.
não é melhor do que a do estadão e é só um pouco melhor do que uma outra que encontrei num blog obscuro. é uma delícia dar uma desmontada nos nossos monstros juvenis, né? e você aí rindo de mim que a cinética era um monstro pra mim. era sim, e todos os meninos que liam ela e repetiam que sabiam o tanto quanto. esses eu ainda não consegui desmontar completamente, mas vamos por partes, né?
enfim, mesmo não tenho um quarto das referências do eduardo valente, eu acho que faria uma crítica um pouco melhor. o problema é que hoje em dia não me interessa em nada falar de decupagem, mise en scene. que bobagem, meu deus. para quem são as críticas da cinética, se não exclusivas aos realizadores? kiarostami é gigante e tocou em um ponto tão delicado que eu demoraria um mês para burilar minha crítica (por isso no máximo caminharei na ficção e no ensaio)
a análise de filmes que coisa perversa.
li também um pouco do artigo do mestrado, etc. infelizmente não li inteira, e olha que outro dia li um artigo inteiro desmistificando a relação entre a doença falsiforme e os negros, as diferenças nos EUA e no Brasil (belo artigo, recomendo) e nada daquilo era minha área. mas me prendeu até o fim, era direto e vinha logo dizendo o ponto de vista do pesquisador, o racismo, e as suas diferentes formas em cada contexto, norteando investigações médicas.
pois bem, me perdi.
ah sim, o que acontece é que não quero saber mais do raios da câmera e como ela se comporta.
quero saber sim, mas está tudo lá, tão óbvio! a gente do cinema fica pegando no pé dumas questões e esquece o essencial. fui assim  também na minha iniciação científica e por isso no final não sabia o que queria dizer. não vou culpar também, só a fraqueza humana, a academia é um lixo.
voltando, o grande mas o GRANDE problema dessas críticas é que 1. fica dando a sinopse no primeiro parágrafo, mas meu amor! isso é divulgação ou crítica? e 2, o mais importante, fica querendo dizer que sabe tudo do kiarostami. eu li em várias como cópia fiel é diferente do resto dos filmes iranianos dele porque não se passa no irã... mas jura? e que é possível sim fazer um belo filme com atores renomados falando em francês mesmo o kiarostami sendo o gênio e o mártir do realismo iraniano. essa coisa de ter que saber dos filmes anteriores do diretor para poder falar... sim, esse era um dos meus monstros da cinética. pode falar sim. pode falar somente sobre um filme. o cara fez um filme, não é? esse filme já dá uma tese vocês todos sabem disso. mas ficam saindo pela tangente, porque não sabem o que falar. eu também não, né, se não tava aqui escrevendo sobre ele.
enfim, voltando: o que me incomoda especialmente no fato de ser o kiarostami filmando na itália com atores europeus, é que é isso: ele é tratado como um outro.
se fosse um diretor europeu, o texto não faz nem questão de comparar. tudo que é estranho, é um outro. descansa em paz, kiarostami. eu vou ficar por aqui.


novembro 17, 2018

sobre a morte, ainda

1. estou lendo a antologia pessoal do borges; nunca tinha lido nada dele, embora sua sombra sempre me acompanhara. uma vez, mais jovem, numa feira do livro, rodei procurando pelo o aleph, rodei a internet também, e encontrei o aleph do paulo coelho. fui desistindo. tenho a mania da sorte, do acaso do encontro com os livros e borges nunca me aparecia num vitrine ou largado num sebo atolado. tampouco, ninguém me emprestava. que é que tem nesse homem? eu me perguntava, lendo sobre ele, imaginando uma precisão maravilhosa, que eu não entendia. finalmente, me emprestaram; de certa maneira, não me julgo por esperar o livro me encontrar numa encruzilhada do destino: alguns livros devem ser lidos em certos momentos da vida. isso minha mãe me disse, quando me deu o pequeno principe, leia devagar para entender, ela disse, leia de novo quando mais velha, também sobre alice no país das maravilhas, sobre o mundo de sofia. isso não me eliminou a ansiedade de ler certos livros, na verdade só a fez crescer. ter certa idade para ler certo livro me acompanhou e me fez abandonar livros grandes, por saber-me incapaz de continuar naquele tempo. já não acredito na idade, nem do tempo com que se demora nas páginas, mas existe, de forma borgiana, um tempo, algo, um destino de encontro de livros, que nos despertará para um zahir ou um aleph dentro de nós esperando para ser desbravado.
admiro muito quem presenteia com livros: ás vezes acertamos, ás vezes não. mas um presente é sempre um um bom momento para fazer o acaso mostrar seu rosto.


2. mas sobre a morte, ainda. até agora, o conto que me estupafou não foi nenhum dos quais ouvi falar, do que me contaram ao longe da vida. por isso, nunca saberei se é um conto importante ou não, mas é um que o próprio borges gostava - e isso não significa muita coisa, porque muito do que eu li no livro tinha uma reminiscência de autor tentando fazer justiça com contos que colocou seu empenho e coração e nunca receberam o prestígio equivalente de volta. o conto é o sul. de uma delicadeza que nunca deixa o leitor antever o que está em jogo: a última visão, sonho ou vida de um homem que morre. ao final, eu estava tocada. com aquela familiar, mas estranha, sensação de que nos despiu de nossa própria carcaça e com um toque leve e sereno de dedos escorregou sobre nossa carne macia, desprotegida. o corpo arrepiado por dentro, o silêncio do mundo orquestrando um estopor sereno. o pé ou a mão se contraem levemente, como que incomodados desse estado quase paranoico, contrário à sobrevivência - como se tivéssemos a beira de uma morte, o punhal no estômago, o sangue nos dedos e os olhos ao longe, alegres e finalmente sem medo. 

3. lembrou-me o capítulo da baleia de vidas secas de graciliano ramos. este, tão conciso e triste (e que provavelmente, na primeira vez que eu lera, aos dezessete anos, deixara-me naquela mesma situação: despida de mim) que poderia muito bem ser um conto isolado. no de borges, um homem com um passado e um nome que remete à ele: Dahlmann, um passado que se transfigura num sonho, num desejo de uma vida, voltar à estância do Sul que viveu e morreu o avô, que em Buenos Aires chegara de navio. no de graciliano, uma cachorra com um nome que não é seu, se não um símbolo da seca da família que a apadrinhou: baleia. seu último sonho, no entanto, não corre ao mar ou coisa que o valha, senão imagina o mundo que sempre viveu do modo como deseja: preás para caçar e fabiano, seu dono, gigante. os dois, em terceira pessoa, no seu tom impessoal e distante para, de maneiras diferentes, encontrar-se com o último desejo em vida, numa visão real que não deixa ebulir dela o que há do sonhado, do delírio ou mesmo da morte. Dahlmann, que sofre num hospital, melhora e é levado num carro, o mesmo que o trouxera ao hospital, à estação de trem onde poderá ver novamente a estância que tanto sonhou ver. o trem que o leva é um trem que corta o tempo, que chacoalha e solta fumaça para trás, para um mundo esquecido e deserto, para um mundo de homens com punhais que se matam em um duelo. Baleia, doente, sente-se caçada por Fabiano, suas pernas falham, e então vê os preás, vai para o seu paraíso. o paraíso de nenhum dos dois é feito de leitos de rio de leite e frutas num pomar: tem íntima relação com tudo o que viram, tudo o que conhecem até ali. se baleia, ao morrer, nos entrega seu sonho num movimento vertiginoso de graciliano do simples narrar de uma história para seu fluxo de consciência, borges alterna o narrar, ainda que sempre distante, com os pensamentos de Dahlmann, que segue sem suspeitar seu último sonho. quem decreta aquilo ser um sonho é borges. de um modo menos conclusivo e mais idílico, graciliano faz o mesmo.

4. o momento antes da morte. quando li o sul, então, pensei o que sofia viu antes de morrer. levando a fogo estes dois modos de encarar a morte, tenho fé de que nossa última percepção de mundo, se por obra de Deus ou da nossa mente, seria nosso mundo ideal, feito das coisas que vivemos e que estão em nossa memória, mas decoradas graciosamente com nossos desejos mais irreais, mais sedentos, íntimos. me deparo, então, com o problema posto. sofia tinha 4 anos, e são destes quatro anos que são feitos sua vida. desses quatro, dois anos ela  deitou-se em camas de hospitais, sofreu cirurgias, ficou enjoada por causa dos remédios; e também chegou em casa e brincou como qualquer outra criança. também desejou muito tudo o que as outras crianças tinham, escola e parquinhos. até agora, parece relativamente simples. mas se tenho como modelos Dahlmann, homem construído a partir de uma linhagem, que fez da sua vida uma elegia ao avô materno por gostar da terra argentina, homem símbolo de uma nação e de um certo viver e baleia, uma cachorra, que seus desejos mais complexos são simples como o amor incompreensível que sente por seu dono e pelo cheiro delicioso dos preás que gostava de caçar, mas que, sem passado e sem entendimento, é um animal vivendo no seu eterno presente. eis a questão: a criança não estará entre um e outro? como codificar a vida e o desejo de uma criança?

5. é difícil escrever a partir de uma criança, embora lembre-me agora de um conto de guimarães rosa que não me lembro o nome, o da criança vidente, mágica, que morre tragicamente. justamente, é um pouco mais fácil escrever sobre uma criança que morre acidentalmente, em que o fluxo garantido de sua vida é interrompido. no caso de sofia, que agonizou algumas semanas e viu seu corpo desfaceler pouco a pouco, o que sentia? sentia o hálito próximo da morte? sabia, exatamente, o que é a morte? baleia não sabia ao certo, a não ser a ideia instintiva da morte, a ideia mais do perigo da não existência do que a morte de um ser vivo. Dahlmann sabia como sabem os homens adultos todos, mas sua ideia de morte estava ligada aos punhais e batalhas, à aventura, ao assassinato antes da morte entre as paredes de uma prisão. outro problema que coloco aqui é como acessar o narrador de uma criança. uma criança sabe e não saber sobre tudo que nos rodeia, sabe como sabem os animais, mas um pouco mais que eles, porque a dimensão existencial da vida começa a nos penetrar desde que, imagino, aprendemos a nos comunicar. porque uma criança, como um adulto, usa para se expressar das palavras; e estas são responsáveis por criar um sentido da vida que é além do primário, faz-nos imaginar e instiga-nos a buscar símbolos, a entender uma vida através da metáfora. afinal, uma cadeira chama-se cadeira, mas a palavra cadeira por si só não quer dizer nada, se não estiver ligada à imagem de uma cadeira. a criança tem dentro dela um mundo de imagens mesclado entre imagens da morte existencial, as imagens do alcance e do submundo e as imagens do que é simples e raro, as imagens do seu presente, ainda não codificados com subterfúgios psicológicos ou filosóficos. o homem vive do passado ao futuro e o animal no eterno presente; a criança vive entre eles. ao tornar-se um homem, abandonará sem perceber as relações simples que tornam a vida fácil e surpreendente. a curiosidade do seu olhar pouco a pouco dará lugar a uma presunção de quem já viu muito e deseja ensinar ao outro. mas ela, enquanto criança, não é um cachorro. entre os seus, se esbalda em presunções e criações de mundo. minha problemática aqui é resgatar como uma criança se sente, para poder me afundar na sua última visão da vida. mas eu já não fui uma? de certo, embora, as impressões tenham se apagado pouco a pouco e sobrado alguns lances de dardos da literatura. com que olhos eu olhava o mundo, a morte? o primeiro a morrer na minha infância foi o cachorro de minha avó, benny. o segundo meu avô paterno, wilson. benny já estava doente, e como baleia, fora sacrificado - não com armas e a aventura ardilosa do sertão, tão parecida com o mundo do o sul  de borges, mas numa maca de veterinária, com uma injeção. meu avô morreu de infarto repentino, dizem, na cozinha. minha avó conta que o encontrou caído no chão com uma bacia perto. sempre imaginei que ele caíra com a parte de trás da cabeça na bacia de metal, na saída da cozinha. meu pai disse: seu avô ia andar todo dia, estava se cuidando. e também, mais tarde: seu avô fumava dois maços de parliament por dia, depois parou quando o cunhado morreu de cancer de pulmão. na minha rasa história da infância também morreu o cachorro e o homem cheio de passado. mas não me lembro da suspresa, e não me lembro de sentir angústia. fiquei triste, mas a angústia, aquilo que nos faria pensar: o que é isso? o que é a morte? parece que não me acometeu.
bem, a verdade é que um ano após meu nascimento meu tio, irmão de minha mãe, morreu. eu não me lembro dele, e por isso, não o contei como os primeiros seres que realmente tinha afeição e que morreram na minha vida. mas talvez a chave não seja a afeição, mas sim a ideia da morte. mesmo com um ano, eu devo ter sentido o que é a morte. eu devo ter sentido o luto, e também a luta dele, que morreu de aids, devo ter visto o rosto magro no fim da vida, embora tenha esquecido. seu tio te deu uma boneca linda, meu pai me disse, e você foi lá e rabiscou toda a cara da boneca. eu me lembro da boneca, mas não sei se a imaginei recortando as tantas imagens de boneca durante a minha vida ou se a vi numa foto que era criança. era uma dessas antigas, com a cara de cera, as bochecas lustrosas e dois olhos de gude com cílios espetados, a boca miúda no meio, com aquela cara de terror. os cabelos de nylon quase reais em duas chiquinhas e o vestido amarelo. não me lembro da cara rabiscada, mas a refiz no meu imaginário: as canetinhas de diversas caras obstruindo a cara da boneca. você rabiscava todas suas bonecas, disse meu pai. por quê será? que criança eu fui e que eu pensava ao riscar o mais próximo de um rosto humano, embora inumano? riscava porque o sabia falso ou justamente porque ela tentava imitar o real e era possível estragar seu rosto? riscava para tirar dela a vida suposta que enfiavam ali? riscava porque os humanos, hora ou outra, acabam por morrer e deixar a terra para sempre? 

6. o que me fez pensar, e o restante do livro do borges ajudou, nos seres que matei desde que sou gente. um periquito, um ou dois peixe beta, um ratinho de estimação. todos por inanição. não são homens adultos, nem sequer cachorros - animais mais próximos de uma condição humana aos nossos olhos. o primeiro me aterrorizou. eu insisti para a minha mãe ter um bicho e se não fosse cachorro, que fosse um periquito. com onze anos ela me disse que eu teria que alimentá-lo. claro, esqueci. como esqueci do beta e do ratinho, mais velha. uma manhã antes de ir a escola, ela anunciou: o periquito morreu. e o que você fez, perguntei assombrada? ela embrulhou num jornal e colocou no lixo. eu não sei se essa é uma memória inventada, mas lembro-me de que no meio do lixo havia um amassado em jornal. dentro estava o corpo do periquito. esta morte pareceu me definir e me impactar mais que a do cachorro, que não foi minha culpa. embora tenha conhecido intensamente o conceito de culpa e vergonha naquele instante, isso não me livrou de matar outros bichos, menores que um periquito na cadeia da afeição, da mesma maneira. mais velha, eu não senti remorso, mas lembrei do periquito. o engraçado é perceber que eu, tão inofensiva e não afeita a facas punhais e armas de fogo, eu que como mulher não tenho um passado a qual me espelhar pelo gosto do perigo e do sangue, tenha matado um bicho ou outro. todos porque, talvez, me considerava superior a eles ou que a natureza ia prover o que lhes faltava, ainda que estivessem enjaulados, presos em aquários e caixas. e que por isso, não podiam lutar pela sua sobrevivência. tinham de esperar a mão de deus, minha mão. e ela não lhes chegou. e que, sem se importar se eles tem alma ou não, não fiz disso um carma, a não ser com o periquito, quando fui criança. ter a morte nas mãos, mesmo que uma insignificante, foi infinitamente mais angustiante que ver outro morrer, pelas mãos de outro deus. meu tio morreu, talvez, de um gripe ou pneumonia, o anjo da morte comandado pelo avançado estado de fraqueza do seu corpo provocado pelo vírus hiv, um deus inventado por alguém. benny morreu de velhice e câncer, porque tinha de morrer - o deus natural que dá a vida e a morte sem se importar com que resta no meio delas. meu avô, de um infarto fulminante, o deus talvez bondoso do acaso insuspeitado. minha irmã, de um câncer destruidor alocado no cérebro - deus em todo seu acaso cínico e terrível, um deus medieval do antigo testamento que cobre a terra de água e manda um irmão matar o outro. minha tia-avó morreu de hepatite, amarela, e esquecida. minha bisa heny, morreu de demência, amarrada numa cama num asilo, depois de uma vida vibrante, o deus da decadência, o mesmo da minha tia-avó. o deus fulminante e bárbaro matou a mãe de meu padrasto, que eu gostava tanto, regina, contorcendo seu pâncreas sem motivo algum. o periquito, o rato e o peixe, porque não lhes chegou a comida que deveria chegar. agonizaram; quase todos.

7. talvez em algum outro momento, eu tenha matado um humano, um igual. feito-me deus e diabo ao mesmo tempo. não com sangue nem com um estouro de bala. mas, aos poucos, continuamente, como uma mulher que mata seu malfeitor como pode, ao longo dos anos, para se ver livre dele. além dos bichos, matei inúmeras plantas. ás vezes, eu as olho agonizando, com as folhas murchas e tristes, pedindo por água, e não coloco. um instinto terrível vive dentro de mim sobre matar o inocente, aquele que depende de mim. talvez eu tenha matado um filho. sem ser deliberadamente, apenas tocando o barco da vida e sentindo o olho sangrar toda vez que o olhasse agonizar. o que a planta, em sua mudez existencial, percebe ao morrer? mais de uma vez matei elas afogadas. a água mofou e corroeu suas raízes e eu chorei porque, daquela vez, queria fazer o bem, queria amar demais e vê-las vivas. mas eu não podia compreendê-las, suas folhas despencavam desinteressadamente. todos os dias, cuidar de minhas plantas e da minha gata é confrontar com meu eu-assassina. a assassina da inanição e dos maus tratos. é quase cômico como mora dentro de mim este tipo de assassino, de deusa: feminina, passiva-agressiva, afoita ao sangue mas afeita à palidez. quando fico desesperada, deixo minhas plantas morrerem, minha gata suja. um deus poderá ser um também um humano que em suas aflições deixa seus dependentes morrerem displicentemente? este deus não sabe como amamos os outros que aqui vivem. este deus não entende o amor, e sobretudo, não entende o medo da morte. todos dias, esta deusa se depara com sua última visão de vida. está presa num delírio sanguinolento de seu último desejo sem jamais falecer. 

8. sobre o último desejo de minha irmã, que avivou seus olhos antes de morrer pacificamente e tediosamente numa cama de hospital, algum dia escreverei. por enquanto, devo escrever sobre uma criança que morre tragicamente. entender seus mecanismos, antes de me afundar nesse poço lamacento que é fazer da própria vida ficção. da própria tristeza e história, um delírio escrito.

outubro 17, 2018

inverno no mar

termino verão no aquário de lygia agora. nos últimos capítulos, ela narra alguém que sofre a morte de outro. durante todo o livro, a morte assombrava longíqua; mas o exercício de narrar um luto recém passado, eu não lia faz tempo. o calor do momento, a véspera, como diz. não a memória, o fantasma. isso eu não fiz. ainda.
um dia quis contar a vida inteira de sofia e parei em determinado ponto. talvez tenha percebido que é impossível resgatar toda a sua história - ou todos os detalhes da minha memória antes que ela se perca completamente. eu quis também perguntar a quem tinha acontecido e montar um retrato, um mosaico, um livro - só para estar entre nós. algum tipo de alento. 
não chorei com este livro. a noite caiu feito narrado no livro, a gata preta fica do meu lado na esperança de carinho. eu sei que ela me ama. eu mais uma vez não sei lidar com seu amor. com o amor de ninguém. mas agora estou tranquila, eu sei que posso amá-la em sua medida. não é preciso se desesperar.
minhas plantas estão bem, mas todas verdes, verdes demais. não consigo cultivar flores. a roseira que era a esperança da primaveira fez cair as folhas. um botão amarelo nasce do camarão. é preciso cuidar para que ele resista.
tentarei contar essa história sem muito drama e fugir da narrativa de culpa que criei para mim mesma. há anos, essa memória da culpa persiste e me desgasta. mas eu não preciso dela. sofia não precisa dela.
no seu último mês, sofia estava bem magra, frágil e perdia as funções cerebrais pouco a pouco, falava enrolada e um dos olhos fechava, tomado pelo tumor. neste mês, eu chorei deitada no travesseiro, rezei desesperada, mas só dormia sonhando com cemitérios. só dormia pensando no seu enterro. no limite do sonho e da lucidez, o sonho parecia ou premonição ou desejo perverso. o cemitério vinha-me primeiro em negativo: como quando choramos demais, os olhos criam aqueles feixes e bolas redondas de luz que ficam piscando. e o cemitério vinha assim, como negativo.
inesperadamente, era a única imagem que me fazia descansar. que me dava paz. 
eu tentei afastá-la, pois achei que pensar assim era como pedir por sua morte. era como se eu tivesse desistido, antes dela, como se eu não fosse capaz de olhar o seu sofrimento. mas quem sofria era ela! ainda penso um pouco assim, em como fui egoísta. 
mas meu corpo preparou-se um mês para sua morte. disso, eu tenho certeza. não foi menos duro quando recebi a notícia de sua morte.
a notícia é a narrativa a qual me acostumei: no domingo, vi ela nua, magrinha, os ossos aparecendo, nana me dá banho. eu já não aguentava olhar sem os olhos querer chorar. na segunda fui pra são paulo. fui à aula de manhã e a à tarde, no cinema com uma amiga. durante todo o cinema, o celular desligado. no ônibus de volta, liguei e me deram a notícia. sofia morreu enquanto eu estava no cinema. peguei um fretado para campinas onze da noite, opção mais rápida. cheguei e já tinha passado horas de sua morte.
eu não vi sua última luz, sua última calma. eu não falei com ela. por anos, me torturei com isso. mas como foi receber sua dor?
eu chorei muito no ônibus. chorei de culpa e rezei. chorei e disse a mim mesma que eu já sabia, mas a dor dilacerava no peito. no fretado, os universitários iam rindo e vivendo sua vida, jogando baralho. eu juro, a vida continuava estúpida enquanto eu me acabava, chorava alto e queria matar eles. eu queria que eles ficassem em silêncio. por um momento. nada. tive raros momentos de silêncio desde que sua morte chegou como um terremoto. como um terremoto em terras instáveis. as pálpebras inchadas, as lágrimas ressecadas no rosto. como quando secam e deixam aquele rastro no rosto inchado. eu chorei todo o mar que se chora sozinha, sem ninguém a me confortar. quando cheguei em campinas, já estava quase seca, cansada. minha mãe, eu não sei. eu não sei quem confortou ela, mas não fui eu. nem eu, ela. o júnior eu não sei. minha família inteira, eu não sei. tudo era silêncio. quando foram me buscar era silêncio no carro. a sensação de querer apenas rodar, rodar em silêncio que raíza fala, é isso. talvez seja isso. o apartamento que morávamos tava cheio de gente. não tinha muito espaço para luto. a família inteira do júnior, cumprimentei, todos daquele jeito. não me lembro como foi abraçar minha mãe. minha mãe, mãe dela. até hoje não sei como ela sofreu. por isso quando se diz com dor, eu mal me importo. ela tinha de arrumar tudo para os parentes, onde dormir, o que comer. e aquela dor no rosto do rastro das lágrimas como um rio intermitente. eu dormi no chão, num colchão num chão. acho que me lembro dela arrumando, dela me dando um beijo de boa noite. ninguém parecia saber consolar ninguém. todo mundo precisava de conforto e não havia ninguém a dar. minha mãe, tinha ainda que arrumar tudo, as provisões. ela estava calma. ela sempre esteve calma, de certo modo. nunca a vi se desesperar, não me lembro. talvez por isso parece que passou ilesa. não. passou dolorida e calada tendo que cuidar do marido cheio de drama. meu crédito não foi perturbá-la. foi tentar cuidar da minha tristeza sozinha. e o dela? quem cuidou de você, mãe? talvez por isso se fez tão triste na morte de meu avô. porque finalmente não tinha que cuidar de ninguém. podia se charfudar na tristeza. falar da morte do outro é acabar falar de um vivo. mas falar de um vivo é tocar na sua morte. se falo coisas clichês, não me importo. dormi no chão e devo ter chorado mais. mas lembro-me de ter dormido. como uma pedra. e que o dia seguinte, tomávamos café da manhã, todas aquelas pessoas, tentando descontrair. as coisas ainda tinham o cheiro dela. o cheiro dela eu senti durante muito tempo depois. associava-o como a um leite. ora doce, ora azedo. ela cheirava a leite, embora tivesse quatro anos. muitos anos depois, andando na rua, eu sentia aquele cheiro. as coisas rosas dela. os gorrinhos e chapéus, os brinquedos rosas. fiquei com a tartaruga, guardei a lagosta. a lola, os pequenos bonecos da lola. aquele bebê laranja que fala. sofia, sofia. quais eram seus brinquedos favoritos? quase todos, eu acho. de uns cinco ou seis, todos, eu acho. aquele elefante grande, não era? a cortina verde do quarto da antiga casa, esvoaçante, meio transparente. o berço branco com a cômoda branca quando você era bebê. o caixão branco. na porta um artesanato desses de bebê escrito sofia. sofia, sofia. como era seu sorriso? assim tortinho com os dentes separados. não era. bem alto. e os olhos azuis bem céu. bem alto. os brinquedinhos miúdos, você gostava. aquele de madeira de construir casa. massinha. as bolas. as bolas grandes, não as pequenas. aquela cortina verde, por quê me lembro tão bem. a cama no meu quarto que dormia. as duas chupetas. as duas chupetas, uma na boca outra no nariz. eu não me lembro direito como reagi a sua morte. será que isso importa? estou perdoada? acho que estava anestesiada. sofia. todos foram embora de casa e no enterro foi tão pouca gente. não era enterro, cremação. era lá em são bernardo. isso eu me lembro. o carro andando lento. sofia, amava palavra encantada, xuxa. o carro na estrada e todo muito quieto. e ninguém sabia o que falar. como é que o corpo foi para lá? eu não sei, eu não sei. era um cemitério simples, desses com gramado e cruz com flores no chão. nenhum túmulo, nada, só isso. muitas flores. o céu estava azul, a grama verde, as flores de todas as cores. a sala era pequena, e no meio, o caixão branco. como só fui perceber agora como se pareciam o berço e o caixão? que horror à madeira branca. que horror, sofia. o caixãozinho, como eu tinha lido algumas vezes. e você lá dentro. de olhos fechados, pálida. e você lá dentro, a carequinha proeminente, sem o azul dos seus olhos. e a roupinha, talvez rosa, um vestido. então eu senti mais uma vez a dor. dessa eu me lembro. aguda, atravessando o peito. porque fazia alguns dias que eu não te olhava. e antes disso tinha te visto viva, nua, indo tomar banho. e agora estava ali, vestida, maquiada talvez? e fria. fria demais. toquei na sua mãozinha. eu amava tanto sua mãozinha. eu segurava sua mãozinha na hora de dormir porque pensava: eu não quero esquecer nunca como é a sua mão. eu já pensava nisso. era inevitável, eu pensava o tempo todo. um pensamento me escapava e eu não sabia controlar. a gente dormia de conchinha, você dentro de mim, com suas duas pepetas. pepetas, agora sim, me lembrei como você chamava. veio tão claro, agora. e da mãozinha, eu queria reter o calor e lembrar como eram: finas, alongadas, as unhas diferentes da minha, porque eram mais angulares, mais estreitas. e a mão parecida com a da minha mãe. sim, eu segurava e olhava pra elas e as unhas transparentes com as pelinhas soltando ao lado, e pensava: são como as mãos de minha mãe. porque minhas mãos são de meu pai. gordinhas atarracadas unhas curtas e fracas dedos pequenos. e você tinha a mão dela! a mão dela como uma criança. como segurar a mão de sua mãe criança. e ver essa mão se despedir desse calor. lembro-me da fachada do boldrini agora, com os brinquedos de animais na frente, o céu azul, o calor de campinas, as nuvens rondando brancas. toda vez que lembro de sua mão, essa imagem também vem junto. agora, sinto quase o cheiro do leite. há tanto tempo, sofia. eu ás vezes não sei me aproximar da mãe, sofi. ás vezes acho que essa história que de certa forma a gente viveu juntas, sem nunca comentar direito, uniu e distanciou a gente  de um jeito sei lá. como se estivéssemos dentro demais para nos ver direito e por isso longe. entende? como num útero. é isso que penso agora. como num útero. nunca tinha me atentado que morei no mesmo lugar que você, no quente e úmido útero da mãe. e que era um bom lugar para se viver. eu não me lembro, é claro, nem você, mas me parece agora como é confortável, como exala um calor que eu gosto tanto. o calor dos edredons. os filhos da minha mãe amam uns edredons, se quer saber. mas é mentira, minha mãe me disse um dia, faz pouco tempo. e eu não consegui sequer reagir. eu fico dizendo que amadureci e sou adulta, mas não sei dizer essas coisas ainda. não sei ser sincera e limpa como ela. ela disse, estava lembrando de como você me ajudou com a sofia. estava me lembrando de como você me ajudou com o gabriel. obrigada mari. eu fico feliz que tenha ajudado, mãe, porque ás vezes acho que fiz tão pouco. pronto! eu quis escrever sobre a vésperas de uma morte e tô aqui destrinchando a relação com a minha mãe, igual no livro. mas ela é viva. é preciso dizer algo dos vivos. ela testemunhou tudo isso. eu não sei o quanto ela tocou sofia, quando ela morreu. quanto ela conseguiu abraçar um corpo que vai se esvaziando de vida. quando eu toquei, a vida toda tinha escapulido. ás vezes me assombrava esse negócio de cremar, porque vai que a pessoa ainda tá viva. mas era tão fria, e não qualquer frio. fria mesmo, fria de um jeito que eu nunca tinha sentido antes, fria como pele de cobra de lagartixa. as unhas transparentes cruzadas. eu chorei muito, sofia, porque você finalmente se foi. porque sua mão não era aquela, quente, e meio enrolada em concha quando eu pegava no seu sono. você não estava dormindo, a morte não é sono nenhum. porque seu sono era cheio dessas coisas que são vida. a mão em concha os dedos relaxados. sabem? eu chorei e a dor era muita. e depois, minha mãe me deu para ler um livrinho, onde contava a história de um passarinho que voava. não houve pregação, nem nada pesado, nem rendenção católica, e tocava palavra - fugiu me o nome da banda. eu não lembro como era o poema, mas era algo de um passarinho. passarinho, como gabs ama. por quê será que a reinventamos passarinho? como quando jogamos suas cinzas no mar e uma gaivota nos acompanhou e minha mãe e junior disseram, é sofia... eu também acreditei que era ela, naquele momento. eu precisava, porque doía, doía. a cinza voando manchando o mar azul esverdeado. seu olho, sofia. precisamente tudo isso. e seu olho. eu cheguei a desconfiar daquela cor desde que você nasceu: porque era poético demais, sofia. é céu, é mar. que ódio. e azul eu digo que amo. sinto obsessão pela cor. eu mal percebo, mas. também não tem que se justificar tudo pela psicologia, mas, quando colocada assim em linha. passarinho, então. porque voam? e agora veio-me a lembrança de que desenvolvi esse terrível medo de altura. como se eu fosse morrer. será que não sei morrer, sofia? quero dizer, não saberia criar asas, que nem você? que criei horror à morte, sofia? o poema do passarinho e a música infantil não diminuíram a dor. quando o caixãozinho branco subiu meu coração pulou da boca. que desespero. eu me lembro exatamente: que desespero. que vontade de pedir que descessem de novo, que deixassem aqui, que não levassem, que eu ficasse abraçada com ela, que ela poderia estar viva, que iam cremar ela viva, como sabiam, não tinham casos? por favor. eu nunca mais quis ver isso, e vi o do meu avô e de novo senti desespero. que coisa idiota o caixão subir!!!! que coisa mais imbecil do mundo. deixa lá e a gente vai saindo, não adianta? não adianta? eu não me lembro como foi voltar. mas deve ter sido lento, silencioso, cheio de dor. eu não me lembro como foi viver depois. lembro-me que viajamos e a vida retomava seu curso interrompido por acesso de fúria e choro do junior. nós rimos bastante naquela viagem. mas era pra ter sido feita com ela. e não em sua homenagem. durante toda ela, a urna nos acompanhou. eu nem sabia, mas nos acompanhou porque só no final a gente soltou ela, junto com as sempre-viva. as sempre viva, quando encontrar umas vou comrpar. guardei umas florezinhas dentro de um colar com um saquinho que enfiei na minha cabeça que não ia tirar do pescoço para me lembrar para sempre, como um livro a moda antiga, sim, óbvio, eu mal aguento usar colar um dia. então eu fiz a tatuagem. eu escolhi seu desenho e fiz e fiz também porque eu amava seu traço, viu? eu amava que as pessoas eram assim sempre tão gordinhas. tão parecidas comigo, diferentes de você. e as pessoas acham que é um fantasminha. ai sofia, não. era só o jeito que você desenhava viu? nada de premonição sinistra, coisa idiota, tá? eu me lembro como desenhou uma vez essas pessoas de preto e vermelho e pintou bem forte. eu tive medo do seu desenho sofia. porque entendi por ele que você sofria. sofria de não levar uma vida normal. uma vida de criança normal. eu peço desculpas por isso, mesmo que não seja minha culpa, tudo bem? eu espero que sua estadia aqui tenha sido boa. que a companhia tenha sido boa. que se lembre de mim com carinho. é tão difícil não virar espírita quando a gente tá nesses momentos. já já eu viro a cínica racional. não importa. qualquer coisa pra confortar. a dor que me aflinge se esplaha por toda a caixa toráxica, como se envolvesse meu coração e os ossos que o protegem, e assim apertando-se tudo, como se os ossos fossem esmagar o coração, é uma dor funda, do centro do peito e também dos lados, sufocante. essa dor que eu sinto agora eu senti tantas vezes tão pior, sofia. é como se me apertasse tanto que o ar tem de se comprimir para passar e o pescoço fica teso e o ar não vem e o coração dói dói mesmo. apertando-o até que não sobre nada, nadinha de mim. mas eu tenho um corpo fora de mim e uma tatuagem do meu lado esquerdo e a dor vai se diluindo pras outras partes, vai se dissolvendo pelas células. é a única forma de viver, sofia, espalhar. a gata pula bem aqui agora. nem tudo é coincidência e poesia e eu sou uma tutora um pouco má e distraída. mas arrumo esses novos problemas pra esquecer da memória antiga e dolorosa. da minha culpa. e de tudo mais.
foi dia primeiro de junho, e não era calor como no livro. era frio. mas não me lembro de sentir frio. e depois quando viajamos era nordeste e era sempre calor. mas o céu estava claro e azul como é o céu de inverno.