dezembro 20, 2012

as mulheres andinas

ai, viajar às américas para encontras as mulheres andinas, as cholas, as mulheres escritas e enlameadas por Galeano, viajar para encontrá-las, e o que fazer? perguntei à ela, que de surto se encontrava fumando a janela e vendo o sol se esvaindo na cidade perturbada lá embaixo, que nada se esmorecia, nada morria, na verdade, regurgitava ansiosa pelo horário de pico os carros e as gentes indo e vindo e fazendo peso sobre o asfalto amolecido pelo calor, regurgitava pelos velhos bêbados e os jovens tolos que se iam e não voltavam, e a noite nada é mais que um novo dia, ela por fim declamou consciente do seu tom um pouco piegas. por que você diz assim, eu perguntei me rindo todo, toda essa poesia babaca e essas vontades de nada, encontras as mulheres e que fazer? tirar-lhes fotos e colá-las nas paredes brancas do nosso apartamento espremido no meio de todo o resto; ela olhou-me séria e  triste, que há de ter algo um pouco de essa tal esperança inútil, um pouco desse tom estúpido, e um pouco de vontade de fazer um impossível qualquer, andar mesmo que seja para voltar, e os dias e as noites serão longos como velhos que morrem aos cem anos, no final de tudo, cansados e um pouco ranzinzas, mas carregando no corpo as marcas e as ranhuras, cada ruga um dia e uma noite, cada arranhão um orgulho. é preciso viver para criar conflito, ela explodiu e em sua maneira performática de fazer as coisas, levantou-se ao sofá e disse uma par de coisas sobre a necessidade de conflito, embate, bater-se à frente e pede: não vou mais abaixar a cabeça feito um cachorrinho, não vou mais falar doce aos que me desesperam e se por ventura desesperam o mundo, é preciso que lhes diga, que eles saibam. mas é tão difícil, eu disse tristemente, eu dentro do meu ninho de pessimidades, em que tudo é fio em volta, em que tudo é como era que se enrola em volta do meu corpo e já não é possível sair de mim mesmo. calei meus sonhos todos, calei minhas possibilidades, tranquei-as com medo da pieguice e sobretudo do tombo. e ela riu desgarrada e eu quase a chorar lembrei-me do seu corpo nu que era de uma centena de marcas incontáveis. pedi que tirasse a roupa e ela obedeceu sorrindo e como quase sempre pedi novamente que me contasse a origem dos seus tombos e dos seus arranhões e ela pôs-se a falar simplesmente: as marcas do meu rosto vieram das espinhas de adolescente, e este arranhão de quando passei por uma cerca de arame farpado e este roxo aqui, mês passado, quando um policial bateu-me com seu cassetete - nunca sabia se era verdade, mas se pude acreditar nas espinhas por que não na crueldade dos outros? e estes pés de galinha o sinal da idade, que não quero comprar cremes para tampar, e aqui estão os meus pés pretos que já tenho preguiça de lavar, e as sujeirinhas no canto da unha que é sinal dos tempos das faltas de tempo, e aqui onde não cresce pêlos uma queimadura certa vez, talvez pulando fogueira quando pequena, talvez queimando no escapamento de uma moto quando tinha dezesseis. e fizemos amor enquanto ela recitava seu poema das marcas do corpo, coisa que só podia fazer comigo, porque por mais que, e ela chorou ao dizer isso enquanto sentia prazer, se sentisse linda, louca e livre, se sentisse plena e política, se sentisse pronta à enfrentar ao mundo e cambiá-lo a cada passo, era difícil, doloroso, aceitar-se a si mesma, e por conseguinte, ser aceita, sem saber o que vem antes. era doloroso olhar no espelho as tantas marcas que a vida lhe deu que ela sabia, eram parte de sua história de sua loucura e de sua vergonha, e não sentir vontade de escondê-las e e de mostrar-se perfeita e normativa, para ser amada, dentro. devem assim se sentir aqueles que sofrem de vitiligo ou que raspam a cabeça pela quimioterapia, aquelas mulheres - ouvi falar - que cortaram seus clítoris, aquelas outras que lhe jogavam ácido na cara por punições estúpidas ou tantos outros casos que ferem a normatividade da cútis, da forma padronizada e corretíssima, mas chove agora, ouve, amor, e a chuva lava a cidade, mas também lava os que esqueceram os guarda-chuvas ou os mendigos mal-humorados, tudo que lava também desgraça. setenciou arfante e sentada e suada ficou olhando a bom tempo para a parede a sua frente, sem coragem de mais nada dizer, os olhos ainda cheios de água que não podia mais escapulir, seria bom umas fotos das cholas aqui nesse parede para me dar minimamente algum aconchego, por mais idiota, você pensa, melhor as fotos que os fungos. e já não tive coragem de desencorajá-la nem mesmo de socorrê-la a parede ainda era branca mas nos seus olhos via-se verde e brotada de podre, o podre era nós, isso eu também sentia e beijei seus cabelos dizendo: vamos às américas, queridas. um mês depois aprontamos as malas e fomos.

dezembro 09, 2012

manifesto ao espectador

esse é um manifesto a todo espectador. a todo e qualquer espectador, mas principalmente ao espectador elitista, cineasta ou cinéfilo, estudioso, chato por natureza. ao espectador tão gordo que ocupa toda uma fileira de cadeiras com seus insultos seus bufos sua indignação estúpida. ao espectador que se digna a sentir ódio de filme e passa diante da vida como se fosse flor. o espectador mimado, que se sente sempre acima, rei do pedaço, o espectador que recebe o filme e diz: vem, me agrada, vem me faz um carinho, me masturba, vem eu eu preciso gozar. ao espectador que diz que perdeu duas horas da sua vida, tão completa e cheia de loucuras. o espectador filho mimado que acha que todo filme, todo filme, todo filme, foi feito para agradá-lo. acha que todo filme todo filme todo filme tem de passar por seu crivo seu julgamento seu filtro. todo filme, diz ele, tem de me fazer emergir, tem de me contar uma história de vida, e quando não, tem que me dar paisagens bonitas, e quando não, alguma música que eu goste. todo filme e santo filme todo filme desse mundo só para mim. para passar pelos meus olhos, minha boca e me sentir gozado e cheio de mim. todo filme que diga respeito somente a mim. porque o mundo sou eu. ao espectador estúpido que reproduz a mesma lógica do mundo, mesmo se se diz contrário, individualizado e solitário, que exige do cinema ser sempre indústria, sempre impecável, ao espectador que não deseja ver, só julgar, que deseja só falar sobre e emitir sua opinião tão poderosa, devastadora. ao espectador que fala tanta merda que se iguala à suposta merda de filme que acabou de ver. ao espectador centro do mundo e das atenções, que não admite rebarba, outro público, outro tipo, que não admite outros mundos, e que passa adiante sem vontade de ver e só estraga. e finalmente ao espectador estúpido classe média que diz que o cinema nacional anda às pampas, porque é quase-hollywood. ao espectador classe média que não gosta da própria língua falada. e que bate o pé exige um filme lindo de morrer se não existe dinheiro para isso. NÃO EXISTE DINHEIRO PARA ISSO. e se você viu um ou outro filme lindo engole o fato de que metade do dinheiro é público e a outra metade, vendeu-se a alma ao diabo, filme podado pela ditadura da informação. engole seus sapos. ao espectador pequeno mas mimado exigindo isso e aquilo sem nem acabar de ver a primeira sequência. UM FIM A ESTA INSISTÊNCIA PELA  CRIAÇÃO DE ESPECTADORES MIMADOS E IRRITANTES. o cinema nunca será outro, se não esse. o cinema nunca será tão bom, se o outro tem muito mais dinheiro. se você insistir nesse parâmetro de bom. se você continuar excludente e primeiro-mundista. se você continuar um babaca que perpetua esse cinema de elite babaca.

dezembro 02, 2012

te fiz uma casa

escuta, querida, calma. te fiz uma casa. uma casa de madeira. é pequena, mas confortável. podem seus dedos miúdos descansarem quando for conveniente. e pintarei as paredes da cor que você escolher. mas se for rosa ou creme, eu agradeço, que sobrou tinta da reforma. se quiser, faço arabescos, pra não te lembrar a minha casa. escuta, querida, não chora. a nossa história tá escrita em algum livro. escreverei seu nome na contracapa de todos que tenho, pra não esquecer. e lendo daquele jeito que você se irrita - abrindo a boca para sentir a sonoridade das palavras. o seu nome é tão bonito. e é o jeito que você repetia ele, quando gozava, que eu guardo no meu coração. repetia seu próprio nome em sílabas fragmentadas em sussurros excessivos suspiros entrecortados. eu achava engraçado. porquê você não diz o meu, lembro que perguntei, a primeira vez. você me olhou tão assustada. o seu o quê? não sabia do que se tratava. desde então, aprendi a te ler sem poder te ler inteira. você guarda tanto mistério para si mesma. aprendi a te ver assim, entre espaços, lacunas, vazios, obscuridades que você não se achega. por isso anda com cuidado, como se pudesse tropeçar nos próprios pés que não enxerga. e olha o mundo com infinita curiosidade sobre tudo. mas resguarda a pergunta, nega qualquer busca. e permanece sempre perplexa, deslumbrada, flutuante. você voa, porque esconde o que te pesa. ah querida, não me olha assim. nunca pedi para que você mudasse, é só que eu não podia continuar. entrei pelo caminho que as tuas pernas faziam, e não podia sequer, uma lanterna. tudo tão escuro. e eu, confesso, te prometi alguma coisa, me lembro. que você andando com seus dedos pacientes sobre meu corpo, uma janela, algum lugar donde a luz podia entrar. eu te dei holofotes, lâmpadas fluorescentes, eu te enfiei de luz cega. você chorava. chorava miúda, não desse choro grosso que vejo agora. querida, me perdoa. você precisa de casa, de luz, de janelas altas. eu não posso mais te enfiar a minha luz lamparina. eu não consigo nem acender. tudo é tão vasto, querida, e não me restou dinheiro para comprar luz o suficiente. essa casa, de madeira, que eu te prometi, acho que, ou você diz e me engana, ludibria, que eu te prometi: um lugar em que pudéssemos viver juntos. eu não caibo nesta casa querida, o pé direito tem o tamanho dos teus dedos pequenos. dedos os quais gostava tanto de chupar. dedos que agora serão todos seus, a seu serviço. não preciso deles me carinhando as costas e me abrindo as janelas. calma, querida, se acalma. deita aqui. a vida é grande, você é nova, eu velhaco. voltarei à minha vidinha, meu aconchego, lá onde as janelas são cobertas de cortinas. eu prefiro assim: não me importa ver o mundo que se estende lá fora, iluminado em suas mínimas formas, mal discernindo em figura e fundo. antes o filtro que o baque. e você, minha querida, vai-te solta. leve consigo sua reticência, seu olhar perplexo, seu jeito de falar torto, como se qualquer bom-dia trouxesse a mais tenebrosa filosofia. leve consigo sua pele pintada, manchada de sol aqui e ali, os pelos crespos da sua vagina, leve seu sorriso mordaz na madrugada, leve consigo o seu jeito estranho de fazer caipirinha, leve para longe esses mamilos arrebitados que ao mínimo toque se ouriçam levados. leve que me faz chorar, também. e não ria dessa melancolia, que me é pertinente. também eu tenho escuro. mas me enfio cortina, me enfio lanterna onde ando. te admiro, querida, saber andar neste limbo, saber sobreviver com sua própria lacuna. vai-te e não faz ninguém te mudar. e cala a todos que te perguntarem demais e tirarem de ti sua imaculada infância. você ainda é dessas que acreditam em deus, e rezam baixinho quando a montanha russa sobe para depois descer violenta. leva esta casa e descansa, pelo amor de deus.