dezembro 29, 2009

pequenininha, viu?

ó, cuidado, é que eu sou pequenininha, viu?
tô de perna cruzada, tô casulo, sô semente, viu?
de longe, você nem me vê.
e cuidado pra não pisar, se você for desavisado.
esses olhos indiferentes a tudo machucam, viu?
e esses pés insandecidos à busca do não-visto, eles vão me atropelar, vão, sim.

eu sou pequenininha ainda, nem sei gritar, nem sei mentir.
não grita demais comigo não, se eu fiz mal, eu não quis, viu?

eu sou pequenininha, cuidado, você vai me machucar.
sou conchinha, viu, frágil e quebradiça.

pra você me esmigalhar basta pouco,
minha alminha toda se contorece
e vira um sopro sem vida nem cor, que feiura que é!
fica aqui pousando, sem força de voar,
sem força de vencer, de pedir, de implorar

mas isso é porque eu sou pequenininha, e não quero aguentar, viu?
eu não sei ver impetuosidade, não sei ser agressiva, não,
não quero gigante me cuspindo, não quero mão me arranhando, tá?

é que eu sou pequeninha, e qualquer soprinho vai me levar longe,
vai me levar longe, viu
vai me machucar por dentro, viu
e não tem jeito não, em gente pequena, sabe
quando machuca uma vez, não tem mais jeito, cortou-se o corpo todo!

dezembro 11, 2009

a caveira

eu tinha uns 10 anos quando a vi pela primeira vez. foi na casa da vó, que também era minha, já que fui filho de mãe solteira. sempre fui curioso, e perscrutava todos os cantos daquela casa que me parecia enorme e mágica. mas nada mais me encantava que o quarto da vó. era só ela sair, cantarolando com sua língua enrolada, que eu entrava furtivamente. abria as portas de madeira do armário, e ficava olhando, olhando, olhando. havia tanta roupa, todas com cheiro de coisa velha, pérolas espalhadas, pó de arroz, eu tinha certeza que ali se escondia um tesouro. uma coisa valiosa, quem sabe, um baú cheio de ouro. e pirata que sou, sacava minha espada, nada mais que um galho seco, e ficava cutucando os monstros que dormiam ali dentro daquele escuro. numa dessas vezes, eu a encontrei.
primeiro cutuquei algo duro, e vi algo branco dentro do escuro. cintilava. cada dia mais eu me aprofundava, certo que ali tinham enterrado o tesouro que eu tanto procurava. não sei quanto tempo demorou para eu tomar coragem de, com luvas de inverno cobrindo as mãozinhas pequenas, pegar logo aquilo e ver o que era. o que me deixaria rico, para comprar uma ilha, pra mim e pra minha mãe. ainda me lembro do terror que me tomou quando aproximei aquilo dos meus olhos. talvez tenha ficado pálido, tão mais pálido que aquele osso, mas não me desse conta, nem das pupilas dilatadas, só das pernas que tremiam e de uma certa tontura dentro da cabeça.
era, sim, uma caveira. foi a palavra que eu pensei na época, uma caveira, como aquela desenhada nas bandeiras do pirata. se um pouco mais velho fosse, talvez tivesse dito crânio, mas isto tudo me parece muito científico. e não há nada de científico nos olhos opacos, no maxilar solto com alguns dentes amarelados, naqueles buracos onde deveria se enfiar um nariz, as rachaduras no branco amarelado. era uma caveira, sim, assustadoramente, como num filme de terror.
não sei quanto tempo guardei aquilo só comigo. me apertava o coração, mas quando podia, ia ver a caveira no fundo, olhar para ela com mais carinho, e tentar dela ser amigo. o sangue que corria, a adrenalina que despertava, fazia-me sentir mais vivo naquele mundo tedioso de adultos que eu vivia metido. um dia, minha vó me pegou remexendo no armário. puxou-me o braço com força e olhou com seus olhos muito negros, o que é que eu estava procurando.
inchei meu peito de menino, fiz de conta que era homem e perguntei o que é que ela pensava guardando uma caveira no armário. lembro-me da sua reação confusa, primeiro soltou meu braço, depois gritou para nunca mais mexer ali. e quando me viu triste, disse na minha orelha, com aquela língua enrolada:
- é a cabeça do seu avô.
e por muito tempo nunca mais falamos no assunto. a imagem que eu tinha da minha avó sempre fora assustadora, tinha um nariz adunco de bruxa, e cabelos compridos grisalhos, e aqueles olhos severos. pouco falava com as pessoas, mas muitas vezes a vi conversando com as plantas, com os pássaros e as formigas, e também com os móveis, com o chão, com a panela e até com o feijão. eram murmúrios secos que não se entendia nada. ainda hoje guardo dela um retrato que usaria para retratar uma bruxa dos tempos antigos, caso as histórias moralistas dos tempos modernos acabe com a força dessa imagem complexa e encantada.
depois desse dia, ela não mais tinha pudores com a tal caveira, quando só estava eu e ela em casa, ela sumia, com seus passos tímidos. a via agarrada com a cabeça do meu avô, fazendo carinho na cabeça calva do osso, e choramingando baixinho. eu saía correndo, porque tinha dó, tinha vontade de chorar também, pouco conhecia meu avô, mas muito me deprimia saber minha vó tão saudosa ainda. um dia lhe perguntei se guardava era pra lembrar do vovô. primeiro me olhou longamente, e decidiu me contar.
- tem uma magia também, que me contaram, que se raspa o osso da cabeça na primeira noite de lua nova, faz a pessoa querida voltar do mundo dos mortos.
sorriu, triunfante, pra mim. parecia feliz com a solução para todos os seus problemas, um zumbi carcomido pelos vermes seria-lhe suficiente para escapar àquele fim de vida. e diante do meu desapontamento, acrescentou:
- é que sou um pouco de bruxa também.
ela vinha dizendo isso com mais frequência, e era motivo de piada entre meus tios. minha mãe, única filha da casa, que chorava por ela, porque sua mãe tinha perdido a sanidade e ninguém tinha sensibilidade de entendê-la. minha mãe sempre foi moça muito sensível, que condenava com vêemencia qualquer tipo de ofensa. mas também, não acreditava que ela era bruxa. isso, só eu sabia, e ainda sei, no íntimo da alma que ainda é criança e mística, o quanto de magia ela fazia, sem poção nem varinha.
morreu uns dois anos depois, e quando estava na cama, muito doente não sei do quê, mandou chamar-me. fazia tempo que já não falava com as pessoas, e principalmente comigo, apenas trocava olhares cheios de significado que eu nunca pude compreender completamente.
- escuta, menino, não guarde o crânio da sua vó, não.
- mas por que? você não quer ser eterna?
- não, menino, eu quero é voltar pro mundo dos mortos, que essa magia só fez prender o espírito do seu avô nesta terra desgraçada, que ele dormiu comigo todas as noites, mas eu ouvia seu lamentar nos meus sonhos.
não parecia que tinha remorso por tratar mal assim, o espírito do homem que tanto amava. e como se lesse meus pensamentos, bruxa que é, explicou-me:
- mas teve serventia o espírito, pra eu não ficar sozinha neste mundo que eu não conheço mais. Agora ele já se foi, também não sei aonde foi. eu quero mais é ficar no céu, e voltar a ser criança, menor que você. quero reencontrar meu pai e minha mãe, que eu era feliz, eu era feliz aquela época, menino.
umas duas horas depois, se fez toda a choradeira, e o corpo da vó se transformou num caixão cor de vinho, que colocaram ao lado do vô. melhor seria se fosse junto da mãe e do pai, mas ninguém me levou a sério, dizendo que as pessoas mais velhas não se lembram mais da infância.
meus tios e minha mãe já se foram, e sou senhor, mas minha infância eu nunca esquecerei, nem daquela caveira cor de cera, que foi demolida junto com a casa, implodida. e nos restos da construção, que fui ver, já com mais de vinte anos, pude distinguir um pózinho branco que cobria uns destroços de madeira. saí correndo, pra não me lembrar dos olhos sem olhos que tanto me olharam na infância perdida.

dezembro 03, 2009

aquoso

se sentia como em solução aquosa. derretida, esparramada, sem nenhuma consistência. como se o corpo fosse, também, aos poucos, abandonando-a. será possível que tudo fosse embora, fossa vazar pelos poros mal tampados? deveria ter esquentado por mais tempo, talvez. ou ter congelado, pra ver se solidificava. talvez se soubesse evaporar, evaporasse assim, o sentimento que ainda restava por ele. assim isso bastaria, uma sublimação perfeita. não havia no seu dicionário de química, na verdade, conceito que explicasse a tristeza de chumbo que arrastava-se por dentro dela.

a cidade iluninava-se de esperança natalina. grande besteira, grande besteira. mas ao lado dela, tudo parecia um pouco mais colorido, e até entendia as luzes, e a felicidade alheia que o mundo se enfeitava. dentro do seu peito se acendia uma luz há muito esquecida, apagada, amortecida pelos tombos que levara. contava as horas para vê-la, para ouvir ela cantar, o samba dos seus pés, os discursos que ele esqueceu guardado nas gavetas de sua juventude. na sua casa, sentia-se pesado, preso, como refém, nas garras de sua mulher triste e arrependida. contava cada minuto para dali sair, para ganhar o mundo, e ver a menina que coloria seus sonhos. cansava-se já da sua antiga vida, e tudo que queria era recomeça-la doutro jeito, doutro lado.

o natal adentrava a cidade. as luzes, e ah! e as luzes. se refletisse o que dentro dela tinha, estava tudo apagado e silencioso. talvez um suspiro, talvez um soluço contido. não poderia aguentar. sentia a dor no seu peito a maior do mundo, era sua, e era injusta. queria tanto que ele ficasse do seu lado, queria tanto que ele a olhasse com os velhos olhos. tinha cortado os cabelos, comprado um batom vermelho, e tentado fazer regime para tirar os pneuzinhos. tinha feito o jantar, comprado um vinho. mas os olhos dele se distanciavam, a janela procuravam, para o mundo se dirigiam, e dela, se esqueciam.

conheceu-a na sala de aula. sentava-se nem na frente, nem no fundo, difícil foi estereotipar sua personalidade. não era comunista, tampouco direitista. também não era aficcionada por poesia, e nem sabia de cor a história do mundo. mas tinha um sorriso leve, um jeito de andar de pássaro, como se voasse, flutuasse sobre o chão, e entedesse levemente de todos os assuntos, sem jamais se embrenhar no profundo. gostava de dançar, e de transar até amanhecer. tudo isso, tão pouco e tão melífluo, o fisgou. e ela o olhava com respeito, primeiro, e respeitava certa hierarquia, mesmo agora. na cama, o chamava de professor e mordiscava a sua orelha. nunca nem perguntou se era casado. achava tudo o mais grande sujeira, e importava que buscasse seu delírio leve e saboroso. ele assim, era outro, estava louco.

era dia 24, e ela fez macarronada. o seu vestido era vermelho. sentou-se à frente dele, com os olhos aquosos - como não poderiam estar por esses dias? contou de como estava cansada de trabalhar no laboratório, da sua dificuldade de fazer a solução, mistura exata, que andava desastrada. ele disse que estava feliz. e os olhinhos dela, novamente, encheram-se de lágrimas. brincaram o vinho, com saúde. ela disse amor e procurou os olhos dele para corresponder. não deram bola. falaram de amenidades. até riram. ela colocou cartola na vitrola, ganhada da vó, o apartamento exalava odor de família unida. depois que acabou o jantar de natal, devoraram a torta holandesa comprada. trocaram presentes. ele deu uma pulseira. ela um abajour em forma de globo, com o mapa múndi.

lembra que a gente ia viajar o mundo, amor?

ele não se lembrava. o jantar se arrastava lentamente. sentia dó dela. via os olhos dela procurando os seus, as mãos tentando encostar sem querer nas suas, como adolescente quando se apaixona. mas não podia, assim, abandonar sua felicidade. ela era mulher forte, ela era sadia, e tinha amor pra dar. era inteligente e afiada. acharia logo outro num minuto, encontraria a felicidade que merecia. sim, ela ia. como ele, em círculos, e a vida se completaria.

acho que não vamos viajar muito, não. eu tenho outros planos.

a garganta dela emudeceu, secou. não achou palavras para perguntar dos planos. por muito tempo, ficaram em silêncio. a mesa com a tolha amarela, os talheres sujos, a torta, a árvore de natal solitária sem luzes de piscar. por muito tempo, mergulharam em seus pensamentos. na verdade, ela tentava mergulhar nos seus. não queria acreditar - não podia acreditar. hoje era natal, e eles podiam ser felizes juntos, como outros natais. ela tinha que. que...

vamos beber o vinho na cama?

sorriu, tentando ser sedutora. lembrou-se das suas varizes, dos pneus, a velhice dos quarenta que arrebenta qualquer ego diminuído e o faz ficar sumido.

eu estou com sono.

foram dormir. assim pensaram. ela ficou de calcinha e sutiã. beijou a boca seca dele. ele sorriu, constrangido. deitou-se na cama. ela fazia carinho nas costas que ele deu. esfregava os pés nos pés que não se mexiam. colocou a mão no pênis que há muito nem via. gastou sua saliva em beijos melosos nos ombros que ele oferecia. o telefone tocou.

ele se levantou num minuto. sentia a saliva dela nas costas, meio gelatinosa. não gostava. precisava sair dali num minuto. do outro lado da linha, sua menina tinha voz alegre. contava de um samba de natal que soube que ia ter, para poucas pessoas, e que depois podiam comemorar, ela estava ardendo hoje, professor, vamos comigo, porfavorzinho. entrou no quarto, e a encontrou com os olhos cerrados. vestiu-se.

aonde você vai, no natal?

parece que vai ter um samba...

e... eu?

não leva a mal, lara, mas... é dos professores da universidade... sabe... é pros amigos, só vai ter professor.

beijou a têmpora dela, sem carinho nem gosto. encontrou sua menina, a cidade estava tão bonita, ela ria e comentava da vida, ele ria e concordava, como música, ela era sua melodia, e ele acompanhava seus compasso com ritmo cadente. dançaram toda a madrugada, molhados em suor e felicidade.

ela sentou-se, com o vinho na mão, e chorou. molhada em lágrima. queria só um presente: o natal, junto dele. uma despedida. nem disso era digna? nada mais adiantaria. o fim era o presente que a vida oferecia. o mundo parecia desmoronar, em moléculas, em átomos, cada vez menores, cada vez mais diluídos e sem esperança nenhuma de voltarem a se reagrupar, de voltaram a ser o que era antes. nenhuma colisão aconteceria, a não ser das suas convicções com a realidade invicta e fria.

nesta noite de natal, choveu. tudo alagou.



(as rosas não falam - cartola)

novembro 25, 2009

fiapo

- escuta, vamos embora. vamos embora daqui.
eu não posso ir, eu não posso, mas como eu poderei falar? como eu poderei dizer que os olhos dela me agarraram e aqui me encurralaram, como posso dizer, entre as tábuas de madeira que aqui me cercaram, me pregaram, e me pregaram até a pele não poder mais esticar?
eu não pude.
porque tinha quando ela colocava minha mão debaixo do vestido dela, e eu sentia a calcinha, toda molhada, a calcinha azul, de algodão barato, a rendinha costurada, o lacinho pequenininho, a linha desfiada que desenhava na pélvis seu traço azul. e eu provava a comida, salgada, me descia a garganta, sem água, tudo seco, e ela molhada, ela toda líquida. eu olhava a jarra de suco, a jarra transpirava, era barro carcomido, como a pele dela, e eu transpirava, com a outra mão limpava meu suor, meu nervoso, meu olho querendo chorar.
eu não pude resistir.
- não posso ir.
mas não poderei te falar o que aqui me mantem, neste meio de nada, neste espaço sem fim, todo esse mato, você diz, toda essa vida atrasada, eu sei, como não saberia? estive acostumado com as luzes da cidade, estive acostumado com as putas me acariciando. mas não era o mato, não era o céu estrelado, era mais o céu do olho dela, que tinha estrelas sem fim, infinito e meu, céu para mim.
e a gente saia pra dar milho pras galinhas, as galinhas carcarejavam contentes, faziam folia, se bicavam, e ela me olhava de soslaio, um pouco daquele céu dourado. os cabelos louros e sujos lhe caíam na cara, e ela fingia rir das galinhas vermelhas, e meu sangue aqui dentro, bombeava vermelho esperando a cena seguinte, querendo ver um pouco de seu olho, querendo ter um pouco do seu corpo. pra pegar o milho nossos dedos se encontravam, se entralaçavam e dançavam por toda a cuia de barro, por todos os sagrados grãos duros, e dura tudo que era o toque dela.
sentávamos um do lado do outro, o vestido velho, sem cor nem odor, batia nas coxas, via os fiapos, fiapos por todo lugar, os pêlos loiros que recobriam a pele de barro frio. e ela trazia minha mão novamente, eu sentia os pelinhos, todos um do lado do outro, desornadinhos, e se eriçavam quando meus dedos valsavam sobre a perna dura de moça da roça dela.
- mas por que? vamo volta pro mundo! o que essa terra tem, hein?
tem o gosto dela, mas como te dizer? você não entenderia. não entende quando o sol se punha devagar, como devagar tudo nessa terra modorrenta, e a gente ia pra cerca, olhar os cavalos que é pra ver se estava tudo bem, os braços dela cruzados na cerca de madeira, cheia de fiapos. e eu me punha atrás, que era pra olhar o pescoço equestre se erguer altivo, que é pra sentir o seu corpo quente, o tecido macio da chita desgastada, sentir o gosto da pele, as coxas estáticas, e ouvir baixo seus murmúrios, sei que eram gemidos, sei que eram gemidos, quisera eu.
- eu vou e você fica aí, você vai ser engulido por eles.
por ela, como eu poderia te dizer? e tão logo nossos corpos se encostavam, eram obrigados a desgrudar, num instante o gemido transformava-se num lamento mudo e mútuo. eu fechava os olhos, e queria imaginar o que seria se... o que seria se se tudo fosse certo, e eu pudesse ter o corpo dela, se eu pudesse ser dono dela... como ser? mas ela nunca desistia. ela nunca desistia, tinha prazer e sagacidade na vida, na saliva cola pra tudo aproveitar. logo me chamava pra ir à varanda, dizia pra vó que tinha fiapos de madeira pelo corpo, e ia pedir para que eu retirasse, porque eu tinha a vista boa e danada, e também tinha feito certo curso de enfermaria. na varanda, a luz baixa, a noite logo ia tudo adensando, a vó na cadeira de balanço tomava chá e ruminava a noite fria, e ela subia a blusa, e tinha as costas cheias de fiapos - que é porque passara o tempo máximo se esfragando e se machucando nas madeiras velhas que encontrava. e eu via os fiapos, todos cruelmente enfiados na pele, e eu a imaginava esfregando-se ali, e gemendo de prazer, a dor sangrada do prazer. passava os dedos dançarinos pelas costas, tirava os fiapos com extrema delicadeza, e queria beijar ali o lugar marcado de arranhões. ia por todas as costas, e a vó ia ficando cansada, eu fazia jus ao suposto curso de enfermaria, com a gaze passava álcool na pele queimada. a vó cochilava sem saber, e a gente continuava a brincadeira, sem se preocupar. ela me mostrava os fiapos na cintura, a cintura fina e delineada, um caminho tracejado e meus olhos enchiam de lágrimas. depois passava as mãos na barriga dura, os fiapos todos ali, onde é que ela se metia, onde é que ela ia com tudo aquilo pra eu tirar. deitava-se no meu colo, e dizia que era para melhor enxergar, e eu via seus mamilos duros, pontiagudos, feito dois olhos atentos a me instingarem. tinha ali, por todo o seio, fiapo também, deixando vermelho, e ao escorregar os dedos ali, com uma precisão médica e exata, sempre de olho na avó, ela mal se contia, abria a boca em êxtase, e eu sentia o grito preso fundo na garganta. sabia, porque o meu também estava preso, quase incontido. olhando para a vó, eu lambia meus dedos, e passava de novo nas costas, na barriga e nos seios, brincava no umbigo buraco, e ela colocava os dedos na calcinha de novo, me deixava ver a pernas, eu queria que tivesse fiapo de madeira na calcinha também.
- você é idiota de ficar aqui. sabe que tá disperdisando seu futuro, sua vida. sai dessa, vamo embora desse inferno.
antes que ficasse insuportável ela levantava-se, acordava a vó, e disse que ela chochilava, e já estava normal, disse que se sentia bem melhor, mas que queria tomar leite e ir dormir. ia embora sem nem me olhar, e por isso você nunca percebia, quando aparecia para a gente fumar o cigarro de palha, e ficava olhando o mato, e espreitando, zombando do meu vô que via disco voador, zombando da ignorância da minha vó, zombando da minha irmã que era quieta e serviçal e que nunca sairia daquele lugar. eu queria que você fosse embora, toda vez, eu rezava, e você ateu, e você com seu velho discurso cosmopolita, buscando prazer nos lugares errados, eu estava usurpurado de prazer, meu chapa, eu estava no limite, e não tinha mais onde enfiar toda aquela energia. mas continuava na varanda com você até o sono chegar de vez, porque se fosse pra cama, suaria tudo, e a molharia, pensando no outro quarto, pensando no sono bom da menina, a boca aberta e os lábios rosados, secos, trincados. então é melhor você ir e me deixar, que eu tô preso aqui e você jamais entenderia.
não entenderia esse prazer subjugado e proibido, esquisito e doentio. os fiapos daquela menina são minha maior obsessão, e tudo que faço, o gado que toco de manhã, o cavalo que ando de tarde, levando os grãos até a cidade, tudo que eu faço é ela no meu caminho. é ter um tempo livre e sozinho, para que eu possa distraidamente mexer nos tecidos dela, tocar sem querer em seu cabelo, sentir seu cheiro de terra e cozinha. é comer da comida dela, com o dedo na calcinha, é poder ver um pedaço da pele quando o vestido é rasgado, acordar cedo pra ir com ela ordenar. na vaca, quando a vó tá na horta e o vô tá dormindo. que é pra ver ela sentar no banquinho, com as pernas abertas, e no escuro, no úmido, com cheiro de esterco e leite quente, de animal bufando, passar as mãos nas pernas dela, encostar meu rosto no seu pescoço, enquanto ela aperta a teta da vaca, com força e manha. é pra sentir seu bafo de animal também, passar meus lábios na nuca ereta, e ver as mãos apertando cada vez mais forte a teta rosada, e a vaca muge, e o seu mugido parece o nosso gemido contido. até que ela agita as pernas, impaciente, pega minhas mãos lentas e puxa até o centro do mundo, aquilo é o centro do mundo, a luz de tudo, você quer picar a mula e ver as luzes da cidade? eu tenho minha mula, meus olhos revirados, minha salvação e e meu pecado, eu tenho a minha luz, eu sempre tive ela, eu sempre amei ela. minha antítese, meu diabo.
- fala pra mim, fala o que essa terra te mostrou que ainda eu não vi.
foi o sangue correndo nas veias, rápido, a adrenalina, e o coração na boca, as penras bambeando, o espumar da boca, a saliva acumulando, a vontade que não se completa, o intervalo, a espera, o sangue correndo nas minhas veias, o mesmo sangue correndo na veia dela, a certeza do errado, do inferno esperado, se Deus existe fez tudo errado, eu é que não sei onde me enfiar, tudo que tenho é a minha nêga, tudo que eu tenho é a sensação de seu corpo em prosa.
o que eu tenho eu sempre tive, mas nunca descobri. muito cedo saí daqui, sem esperar dois olhinhos celestiais vierem me buscar das trevas que me meti. sempre fui casmurro cabisbaixo e a vida é grande esterco, tudo que me desperta é ter e não ter a pele de barro dela. quando voltei, quando voltei, e a saia esvoaçando, e ela me olhou, e soube também, então, e me disse no ouvido
você nunca poderia ter voltado.
e depois que eu voltei, tudo é fiapo, tudo é dor, e tudo é prazer. só o que a terra me traz é o toque dos dedos, o rio que corre na terra e que invade e que me afoga, me afoga no molhado da calcinha que esfrega meu perdão e minha traição. tudo que temos é o que temos, e não sabemos nada mais que o contato ínfimo e pouco, que o resto nos é nada, é o mato sem fim, é o tempo vagaroso, e o ressoar dos grilos, os sonhos loucos da noite. tudo que temos é o sonho e o pouco da realidade, e não poderia negar, não poderia deixá-la.
e se eu te dissesse tudo isso, hein, você ia me dizer para ir embora. se eu fosse, ela morreria, porque menina-abelha-rainha, essa, só vive de prazer, só vive de amor, se transborda toda em si, é própria dona e única, e se não tivesse quem a despertasse, ela iria embora, ela iria para sempre, e eu não poderia deixar, e eu não poderia viver com nossas almas separadas, com dois corpos que tanto se gostam! por tudo ela é êxtase: o mato que adentra suas coxas, os fiapos das madeiras, as tetas das vacas, os grãos de milho, as folhas das verduras, a colher que mexe a comida, o vapor que sai do fogão. sempre extasiada, ao esperar meu toque, ao ter a esperança, nem que seja ínfima e desesperadora, do mísero toque no seu corpo, no seu rosto, na sua alma, para derramar e inundar tudo. eu quero a seiva dela pra mim, quero o líquido que emana do seu corpo, o cheiro de terra batida do seu cabelo, quero ela inteira e sempre, e não vou, não vou embora, não poderia, nunca, jamais, deixar minha irmã, assim, desamparada e só, inundada sem mim.
- acho a terra boa. acho a terra boa e tranquila pra viver. pode ir, que um dia eu volto pra lá.

novembro 19, 2009

cá pra nós, bolo pra você

olha aqui, vamos falar sério: essa coisa de eu nunca escrever nada pra você, essa coisa é mentira. vou te dizer uma coisa, mas só pra você, se eu me dirijo a alguém, neste espaço que é meu blog, olha bem, nunca é a uma pessoa só. e teve fragmentos de você em diversos intantes, como não? você sempre fez parte da minha vida, sempre me roubou alguns pensamentos, sempre me descompassou também. mas minhas coisas escritas se confundem, até para mim, coração a coração, até chegar na ficção, tudo se mescla, e a minha mensagem é uma para todos. e aí, que a mensagem nunca chega, bem sei, esse método atravessado, atropelado, meus métodos nunca funcionam (diferente dos seus). mas é que tudo isso reflete a pessoa confusa que me tornei, que até meus pensamentos voam e voltam, e nem minha alma sabe direito o que é que eu quero dizer. estou tentando ser direta, objetiva e prática. uma mensagem para uma pessoa. não como uma moral de contos de fadas, porque não somos nós nem fadas nem bruxas. nem venha rir e dizer que eu sou a bruxa, ok? tá, só um pouco, mas eu me afeiçôo as bruxas, sabe que ás vezes elas são más sem saber, sabe? você não tem jeito de princesa, ainda bem, brindemos a esse nosso jeito escrachado, como vocês dizem, de pirata, longe da gente, ser gente de verdade. perto de ser gente inventada, um personagem de tim burton, um toque irônico de allen, uma cor de almódovar, e certa violência tarantinesca. que coisa linda que é toda essa mescla - que coisa linda que é você! que dó que é meu deus, que dó que é, ver uma das pessoas mais fascinantes do mundo sofrer. mas que dó o quê, vira essa boca rota para lá, que tudo que você é menos merecedora é de dó. nunca vi pessoa tão verde-limão, pessoa tão decidida, tão comprometida com o próprio sorrir. tudo de suas cores, tudo de seus sons, tudo numa coisa só, girando num louco caleidoscópio que a gente finge que entende. a loucura que é sua, é sua, essa paixão desenfreada, esse querer ver o belo do mundo, esse verde-amarelo, tudo isso em um só. que você continue sendo - assim -, mas não porque eu pedi, mas porque eu sei que continuará, pois ser você te dá (e me dá) uma alegria enorme. toda esse excesso de amor - que inveja que dá - esse vermelho que colore sua dor, a poesia que tinge sua alma. você é arte, é prosa, é roda. vai girando, e atropelando tudo, girando e amordaçando tudo. impossível resistir a você. fui desejo seu, mas também te desejei. e também te repeli, e também não mais te quis, e não pude com você ser feliz. mas isso não é lá problema seu, isso é coisa minha, ou é coisa de Deus? não vamos enfiar divinidade nessa história, vamos inventar a racionalidade nos assuntos do amor. mas como, hein? como explicar tudo isso? eu já nem sei como é que eu me explico a mim mesma.
olha, minha alma, ve se me entende, olha... eu não sei! me enrolo, e não tenho um décimo de toda sua decisão. um décimo da sua resposta pronta, do seu engajamento amoroso, do seu verde-limão que nunca desbota. mentira, se eu fosse uma cor, seria marrom. alguma cor pastosa, no meio, na indecisão, na espera, no instante ante de acontecer. você é o acontecimento pronto, inteiro, sem jeito, que explode, que danifica, e que faz com que a gente ame mais. é bomba atômica, cogumelo falante, solta fuligem e sorri louca. fiz assim, não vale querer uma pessoa como eu, não vale querer a espera - sendo você o ato. mas não sou eu que estou dizendo, veja só, como tudo se confronta e tudo se ajeita: você já foi o ato, antes do meu. você já se decidiu, antes que eu me pronunciasse. eu fiquei na espera, e ainda tô, juntando essas palavras para algum fim que você já alcançou. se minha vó soubesse diria, minha neta, você com a farinha, e ela com o bolo. um dia te faço um bolo, hein? a gente faz um bolo, eu faço um café e a gente conversa sobre a vida. você vai querer conversar comigo, vai? nada vai ser igual, tudo vai mudar, eu sei, nada vai ser como eu quero, e tudo vai parecer estranho, eu sei, mas o estranho é a praia que a gente melhor entende, não? é lá que a gente se conheceu, brincou no mar revolto, e fez piadinhas da nossa própria estranheza. admiro tanto como você é louca e estranha. assim, mesmo, sem eufemismo, porque eufemismo é coisa de gente normal, e você merece as palavras mais loucas do mundo, quer ver? escalafobética. se bem que o significado dessa mais me encaixa comigo, vê ai. mas o sentido muitas vezes não é a aparência, né? você sabe, vou te fazer um bolo de felicidade. que é pra você ser feliz, sabe, mas você já é, mas ser mais, ser sempre, sabe? eu vou te fazer, algum dia, se você aceitar.

novembro 18, 2009

but you'll never know

mama I'm not too young to try.

veja bem, veja só, que coisa é essa, que a gente se sente, corrente, que coisa é essa. mermão, que é que você quer? de mim, me desfarela, sou farelo, amarelo, sem peito, sem jeito, sem gente. aqui o vazio bate as portas, e a desesperança tudo toma e torna, amarelo, cor sem graça e risonha, que faz a gente vomitar sem nem pensar.
sim, eu sou, eu tou, eu tô mal, não espere demais, aqui dentro há convulsão finita - mas há também o pó da humanidade aflita. que é que você pensa, chega assim, vai embora, vai sem dar tchau, nunca mais te vi por aqui.
deveria e certo seria se eu me retirasse, para sempre, ir embora desse mundo, plástico, inventado, de borracha, massinha colorida. você desenhou cada objeto e me fez acreditar, me fez babar, ai, que ódio, me devolve, todas essas cores, eram minhas, você levou, me deixou pálida, me deixou sozinha.
que é que direito é esse da gente de fora levar a gente de dentro? levar a alma embora, deixar oco, o som bate mas não rebate, descompassado um coração sem memória. por que viver sem lembrar, pra quê viver sem amar? então, você ta aí, sarcástica, ri de tudo, sente-se bem, feliz, contente e sozinha. é tudo mentira, cê sabe, pode crê, eu leio mãos.
então vem, olha aqui, você sabe me olhar, sabe tampouco, sabe de nada. que é isso de sexo que colocaram no meio do caminho pra gente se embrulhar? que é isso tudo de desejo, que desejo que vem de dentro, e que desejo que é só pra gastar e jogar fora? ambição essa, que ambição o quê, desejo inoportuno e caro, despejado, logo se esvai, olha proutra, proutro, volta aqui, olha pra mim, oi! quer tomar um café?
oi, me sinto assim, tico de nada, que é isso? que é que o mundo faz com a gente, esmaga até não poder mais, achata nossa cabeça, e quebra a perna em pedacinhos calcários e inúteis, a coluna toda tracejada, pra que corpo, pra que nada? a garganta inventaram é pra gente apertar, querer se suicidar. e as veias do pulso, hein? no visão dos olhos e das mãos, tudo navalha pronta pra dar morte à vida mal vivida.
a perna foi feita pra sentar, e a cabeça pra deixar de pensar. é assim que eu me sinto, o oposto do que deveria ser, a contradição errante e soturna, o errado do certo que prescreveram. você vê em mim, quanto pessimismo guardado dentro desse corpo, meu deus, preenche de tudo, você é só depressão. que é isso, que você vai fazer?
vai me deixar, vai me enterrar, que é lá o meu lugar, sem fúria, sem alma, sem som, nem oco, timbre fundo do coração. vai me deixar, vai me esquecer, é isso? vai não, olha aqui, não se livra não, olha aqui, tem a cor dos meus olhos o fundo da sua ironia disfarçada, da sua falta que não se sente.
não, você não sabe, não sabe que é que há por aqui dentro, todas as vozes que gritam, e o choro à revelia, eu tô aqui na chuva, sozinha, me molhando, me dissecando, sentindo raiva de tudo no mundo. eu tô aqui, mas num tô mais, queria não estar, quando seu pescoço se virar e tentar me enxergar.
que é que, que é que você quer? o que você veio aqui fazer comigo, veio, bagunçou e foi embora sem nem dar tchau, hein?

novembro 14, 2009

dama-da-noite

rainha da minha noite,
dama que dorme,
encosta, solta
o perfume doce

vem, reina sobre mim,
floreia meu escuro,
me engana e me tenta,
vem, e seja flor

dama que dorme de dia,
vem acordar minhas pupilas
faz-me ver o inesperado
faz-me ter o sol nascente

e dormir, enquanto teu ar
abençoa meu lar
e ser, enquanto tua flor
me dá o chorar, me dá o sorrir

dama da minha noite
seja nossa, seja pura
e nas ramagens seja sua
para a noite perfumar

minha deusa noturna
faz minha noite ser lua
faz minha vida ser noite
e saber florear todo esse ar

me governa, me amarra
dama da noite, desabrocha
de rubro, as bochechas róseas
de célebre, a noite infame

e faz flor, faz amor
faz que me beija, e me toma
te darei meu ardor,
meu suor, meu calor

me deixa deitar e dormir,
me deixa ser noite sua também,
deusa impetuosa e cheia de vontade,
que faz sorrir quando bem entende

deusa dama da minha noite
com a noite, a morte bem vinda
a alma escorrega e renasce
faz-me ser uma de cada vez

dama da noite,
noite de dama,
minha dama da noite,
abre-se em flor

pára-me no tempo, meu deus
quando a dama vier se abrir
vier ser toda fragância e sorriso
me deixa morrer neste tempo

que é o tempo que o sol se põe
e tudo, lentamente, se esconde
e dentro do corpo, a alma agita
de pensamentos vãos e sãos

me deixa morar neste templo,
me deixa ser deste tempo,
me deixa ser também rainha da noite,
deixa minha vida ser dama

e a noite tudo divinizar.

novembro 05, 2009

confissões de uma bêbada

não conseguia escrever bêbada, pela dificuldade do circunflexo. requer muita habilidade. estou pelada escrevendo, porque o calor me devora. não calor interno, que assa a alma da gente, mas esse calor bizarro da primavera. a chuva cai, forte e pesada, pra rir da nossa cara. a gente cai na brincadeira, como o pingos que desabam sobre o mundo. vão rolando pelas ladeiras, se enroscam nas esquinas, param nas sarjetas e desmaiam com sua lástima. lástima é ficar até tarde, bebericando a conversa dos outros. ouvindo o prazer da alma, a coisa que agita dentro e fundo. ser o que corre nas veias, mesmo que seja ácido. e o preço que se paga, de longe não vemos. míopes e boêmios. assim seguimos, sempre com uma canção na boca. e o copo que espera, a gelada se esfria, o sorriso se faz. tudo é motivo pra mostrar os dentes, abrir as janelas, escancarar a alma. a alma passeia livre e lépida, feito vento noturno que levanta as saias das moças. tal liberdade que encontrei, não poderei nunca negar. sinto meu passado preso, presa nas garras da rotina, da coerência, do eterno bom senso. a moral e a ética que tudo apazigua. o calmo das nossas vidas entorpece nossos sentidos. se não há a tempestade, o conflito interno que acentua as faces opostas dentro de cada um, para depois bombardeiar e arrebentar, todo o resto é indiferente. qual liberdade essa que me entreguei sem poder? sem poder dizem sim e não, apenas me arrebatou, me invadiu e me acelerou. me acalarou. agora, gosto mais do som latino, do batuque do coração, dos passos invadindo, do calor da estação. sou mais um pouco de mim, sem saber que esse mim existia. talvez tenha inventado, entre tantos mundos e teorias, um outro eu se formaliza. e a essência, aqui, continua intacta? os outros me dirão. enquanto o julgamento tarda, vivo a vida que mereço viver. a vida que escolho, não o acaso que me conduz. sempre fui companheira desse deus egoísta e natante, que é o acaso. agora, sou eu. ou o acaso que me conduz mais, sem perceber, solta pelo ventos sem razão. a máfia me consome. aqui dentro, novas concepções são formadas, e não há nada igual que falá-las e vivê-las com esta corja de assassinos. assassinos da solução, expandindo o caos e a detruição. a detruição bem vinda pela vida, pelo amor, pela dor sofrida. a destruição de dogmas ultrapassados, de sentinelas sóbrios. quero antes o lirimos dos loucos. manuel bandeira, agora, me abraça com seus versos libertinos. vou me embora para passárgada. passárgada, querido manuel, lhe digo é isso: este estado de espírito que tento definir e nada encontro, esta energia que ultrapassa a mim mesma, e me transtorna, me liberta, me acoberta. sou protegida, sou sortuda. quero antes tudo isso que a vida mesquinha, que a existência sombria, como uma sombra que se proteja pelos exemplos (bons e corretos) dos outros. quero antes mim mesma que outros. quero antes ter os outros ao meu lado, que a solidão desesperada. quero antes isto, que nada, posso admitir: se vieram me culpar, e se vieram cuspir, eu vou dizer, eu vou dizer, eu quero dizer, quero ser assim, pois não cabe mais alegria em mim. e alegria essa, espontânea e rasteira, que é meu alimento, ar que enche meus pulmões. quero isto, quero a originalidade, e a espontaneidade. quero nunca mais fingir, quero ser, e crescer assim.

outubro 23, 2009

vem cá

o mundo na barriga. e eu olhei para ela, e que olhos eram aqueles, e que boca era aquela. toda ela delineava, saliva brilhava no beiço, era um só coração. eu olhei para ela, e que cabelos, se estendiam longos e desgrenhados, marrons, por todo o céu. ou seria o chão? seria a tempestade.
- vem cá
era vento, vulto e vácuo. o beijo surdo na orelha, e meus olhos fecharam, por instantes. quis ver ela nua, e só, para mim, e em mim. não quis soltar a cintura, e as pernas, minhas, dentre as delas, e todo o azul que sufocava. sentia o mundo - o mundo meu, no meu, e só meu - quis jamais ser. quis esquecer.
- esquece, vem
quis esquecer toda abstração, e toda preocupação, quis nunca ter ouvido a bomba explodir, ou o tiro ensaguentar a vítima inerte. quis esquecer a morte, e quis também esquecer a vida, e assim, ser só ela, ser só dela, ser só nela.
- vem, me beija
e a língua macia, escorregava, o pescoço aflito, como que sempre a bisbiolhetar. e as mãos, que me estorciam, me distorciam, faziam de mim seu boneco, pano e papel, quis me desdobrar em cima do seu corpo, que era miúdo, e era o mundo.
- shiu
escuta o som da noite enquanto a gente se esfrega, se escorrega, e se leva pela alma descorada. quis fundo, encontrar sua alma, e molda-la à minha maneira. e tive seu movimento estático, seu pulo exato. seus lábios percorriam meu corpo, meu corpo percorria seu fado.
- vai
quis ter seu corpo, teus fios se enrolarem em mim, e por aqui, assim, me enforcarem - e assim morrer seria delírio, de boca no seu lírio. quis a saliva molhando meu corpo, o suor que soluça da pele, a pele que arde e sofre. quis sofrer, por ter aqui, o céu em você. te tive.
- shiu
e de ter, esbranquiçar, minha alma se prepara à tona, a sua levanta-se já pronta. o mundo na barriga, o mundo se dissolve, volta tudo forma, cor, tom e timbre. vai, e nunca mais será. vai, e nunca mais terei. e quis gravar, dentro de mim, no âmago que tudo assoma, sua fotografia, o sorriso, e a boca, e tudo delinear, em bonita moldura para pendurar. e quis arranhar, com suas, minhas unhas, dentro da carne, o seu perfume, seu louvor, seu calor.
- não se vá
o suspiro último, e o pedido latente, o fim soluça e se incorpora. o fim imprescíndivel, e a nossa relutância do não, e o nosso desejo animal, e homem que somos nós - sem jamais aceitar o sol um dia se por, a lua um dia minguar. a lembrança persiste, em ondas, e o tiro ainda se dá, e a bomba ainda deixa surdo, e o mundo não cabe mais na barriga. jamais coube. a tempestade vai-se, e chega outra, pior. o pedido de bocas jamais serão atendidos, a alma já se foi, o céu as leva, o chão não quererá enterrar. o vento tudo ameniza.
- mas
em mim ainda existe o seu ar, um pouco do vento que tudo desorganizou. na barriga, ainda um mundo pretende se formar, quando pensa, sem pestanejar, em rever novamente, abaixo do céu, o seu riso, a sua saliva que escapa, e os olhos a me fitar. e ouvir, da sua voz, serena e doce, entre tantos escuros que escorrem e que percorrem nossos corpos cansados dizer,
- fim
que fim jamais será.

outubro 18, 2009

um eterno domingo

minha cidade é um eterno domingo. anda-se por tudo, e tudo não é tanto, e vê-se a mesma coisa. as casas todas pequeninas, todas quase iguais, janelas quebradas de bolas jogadas e tempos idos, portas rangendo, cortinas floridas, tinta desfarelando, infiltração nas paredes. dentro, o cheiro é de comida, é de café, é de gente, de lavanda. na porta, ficam as velhinhas, em suas cadeiras de balanço, a costurar, a costurar, surdas para o mundo. do lado delas, dorme um cão velho. um pouco mais pra lá, tem umas cabras. em casa a gente tem cabra, e troca o leite delas pelo da vaca do vizinho da frente. eu prefiro leite de vaca, mas a gente não tem tanto, e toda gente de casa acaba preferindo o que não tem. minha mãe bate o leite, sai margarina, sai queijo branco. tem feijão todo dia. tem horta, e a gente troca o que não dá na terrinha de casa. ás vezes, também, a gente compra, no armazém, uns leite condensados, coisa assim, coisa de lata, minha mãe fica toda espantada. tenho quinze anos e mal vejo a cor do dinheiro. a gente fica estirado na rua de terra, deixando o sol bater. o sol tem sempre. quando tem chuva, a gente sai também, que é pra correr e sentir os pingos d'água. e depois todo mundo recebe bronca, e tem que tomar banho quente, de caneca. eu gosto de banho quente, mas quase sempre tá quente demais para isso. a gente joga bola, as meninas pintam as unhas. junto, a gente vai no cinema. fico todo arrepiado de ir no cinema. aquela tela, coisa grande, aqueles filmes, tanta coisa no mundo, e a gente aqui, a gente aqui. minha mãe odeia o cinema. diz que desde que chegou pra cá, a gente pensa mais em beteira, pensa em sair, reclama demais, fala demais. minha mãe não gosta de falar. meu pai gosta assim. a gente não vê a hora de ficar mais velho. a gente vê, eles saem a noite, e bebem a noite toda. de dia, tá tudo desenhado na rua de terra, tem garrafa quebrada, sempre tem pai bravo, e os filhos dormindo, e os filhos dormindo. e eles odeiam a nossa turma, e a gente odeia eles, se bem que eu gosto da maria lúcia, menina bonita, dizem que dá pra todo mundo. só não dá pra pivete. já fumei cigarro. a gente tava à noite, noite fresca, lua alta, nada pra fazer, chegou o jão, diz que roubou do irmão. juntou toda a mulecada, a bola de lado, o cigarro de boca em boca, maior felicidade. aquele dia a gente teve té alucinação. meu pai disse que cigarro não dá nada, mas a gente viu coisa no céu. viu disco voador. aqui, todo mundo vê disco voador. todo mundo vai fazer uma fézinha pra mega-sena. todo mundo vai pra igreja, acende vela, ajoelha, e eu ouço as velhinhas querendo ganhar na mega-sena, e também pra quem tem doença, melhorar. tem um hospital e uma farmácia, que é do prefeito da cidade. que também é dono de umas terras de milho aqui do lado. toda a gente sempre vota nele, porque se não ele fecha o hospital, ele diz que sim, e as pessoas acreditam, porque todo mundo aqui odeia as doenças estranhas. quando morre gente, a cidade inteira entra de luto. passa o caixão em todas as ruas, e vai indo atrás toda a gente. as mulheres, os olhos virados, as mãos pro céu, choramigando um choro que parece uma canção. e os homens cabisbaixos e quietos, pela primeira vez, quietos. e depois vem a gente, meio entediado, ás vezes triste de verdade, as meninas chorandinho, a gente mostrando que é forte. é que a morte assusta mesmo. a gente já viu a morte também. no dia que a maria helena morreu, a gente viu um vulto entrado pela janela. tinha foice e tudo. se um dia eu vê a morte, se um dia vier pra mim com seus olhos grandes e sua boca cheia de dentes, eu juro que saio correndo. eu quero ver o que o cinema mostra, antes de morrer. quero ir pruma cidade que os dias sejam sábados, ou até segundas-feiras, mas não esse eterno domingo, passando, passando, passando.

outubro 13, 2009

a menina que não sabia cantar.

a menina pôs-se à frente do público. o público, heterogêneo e entusiasmado, olhava com interesse. alguns cochichavam indiferentes, outros não tiravam os olhos da protagonista, enchendo-se de pretensões e expectativas enfadonhas. a menina pousou seus olhos em um lugar, lá estava o homem que abria seu corpo e sua alma. os olhos, quase sempre calmos, dele não tiravam da imagem de sua amada. sequer imaginava que a sua volta existia um público que também queria extrair o mel dela. seu coração batia forte, rápido, talvez pensasse estar mais nervoso que a candidata à reprovação. não estava, não.
se dava o primeiro tom: o piano distante farfalhava as notas, o violoncelo dedilhado com vigor, a flauta em consoante harmonia. o plano de fundo montado, cenário muito do aconchegante. logo, todos se embalavam pelas notas, e esperavam pela voz. a voz demorava a vir.
os músicos, apreensivos, olhavam-se. já era hora da menina abrir sua garganta. já era hora de ela escancarar a alma. a menina, como perdida na compostura, olhava o chão, e sentia nó na garganta, vontade de chorar. todo o corpo era líquido: o suor por tudo escorria, e parecia que as pernas não tinham mínima consistência. os músicos improvisam.
os mais bem entendidos de música, ali, enchiam a platéia de caretas indesejáveis. os outros, que não percebiam a volta completa da introdução, percebiam pelo olhar teatral da menina. ensaiava uma tragicomédia que só podia fazer-se eles rir da protagonista. o único que nada percebia era o noivo, afetivo. há quem diria que ele só queria incentivá-la, mas enganam-se. os caminhos neurológicos de audição e percepção foram todos bloqueados: tudo fora contaminado pelo amor. os sentidos, para ela, em real, inexistiam, tendo apenas no corpo dele, lugar para admirá-la.
decorrida a segunda introdução, a menina, ao ver o rosto aberto em sorriso de seu noivo, como que ainda ouvindo as notas aconchegantes, começou a cantar.
e da sua boca aberta em ó, e os cabelos esparsos, e o jeito das mãos, e tudo fora desastre completo: o primeiro a era já uma catastrófe.
e as ondas de som que irregularmente chegavam sem cessar aos ouvintes, faziam irritar seus ouvidos - que se dizem musicias. eram ondas esparsas, abstratas, de ruído. é como avenida de capital, as buzinas, e o motor que arranca, e que pára, e os zuns da cidade que empobrecem o espírito.
era áspera, para melhor definir. exigiam que as vozes fossem doce, lisas, sedosas, som que vem do mar, da tranquilidade.
os músicos se concentravam para não rir. um mais libertário, pensava que fosse muito bem se acompanhasse com aquela voz baixo, guitarra e bateria. jamais piano, violencelo e flauta. que o clássico só aceita ouvinte puro e refinado, e abomina toda forma de revolução.
a catástrofe era completa pelo filme que se seguia: se filmassem a platéia, haveria descontentamento e irritação, haveria gente levantando-se, haveria farfalhos e cochichos maldosos, e até mãos que cobriam orelhas mesquinhas.
mas o amado, em seu estupor, nada disso achava. a voz da sua menina era ainda o mel que esperavam. a voz dela, era o canto que o fazia embebedar e apaixonar-se. a voz era lhe perfeita harmonia, e acalmava os ânimos, e lhe dava engrandecimento. orgulhava-se. olhava-a com extrema admiração, acompanhava os movimentos desajeitados do corpo - que tampouco ajudava na perfomance - como se deus estivesse nela própria.
e quando as luzes se acenderam, ouviram-se Graças a Deus, e poucas palmas ressentidas ressoaram. o amado, sorrindo ainda desmedido, batia forte as palmas, e sequer havia percebido a platéia amarga que o desaprovava.
beijou-a com fevor, lovou-a, e a chamou de passarinha.
ela, saiu envergonhada, a cabeça baixa, as mãos pendentes. as pessoas não se dignificavam nem a olhá-la, para não expor seu descontentamento ou ainda, ouvir justificativas daquela voz tão áspera e soturna, que até para falar, devia fazer sair o som das palavras de outra maneira.
disse ao homem para irem embora, e ele foi embebido, disse para saírem e fazerem amor, e pediu-lhe para que repetisse como a amava e como era linda e cantava bem.
e ele repetiu toda noite, com falas de teor poético, vassalo da dona, e quis ouvir os gemidos, que lhe eram doces e tenros, e quis com ela ficar e fazê-la sorrir.

e ela sorria, pois amava com amor, sem saber por que tanto merecia.

outubro 07, 2009

américa-menina

veja lá, América-menina
agacha-se, nua
esconde-se da própria sina!

sobre os olho muito negros
lhe caem as cortinas de um rosto sofrido
escondem - aqui - seu terouro escondido
mas!
basta sorrir para mostrar o ouro prometido

e o corpo bamboleia escuro
formam os quadris altas cordilheiras
escorrem pelas pernas largos rios
(e quente, dentro, fundo)
se encrespam suas florestas tropicais
e ah! que curvas derradeiras
os seios são cumes, e lá que moram os deuses

e é deusa de si,
é dona de si!

que olhos desavisados se deixaram levar
por estonteante mistério que ali se encerra
que olhos são esses, de malícia e fortuna
que se enamoravam com os olhos da moça-menina?

América-menina, por que tão distraída?

disseram-lhe que não era deusa de si,
ofereceram-lhe carícias
e carícia que carinhava
e explorava seu corpo de menina!
e a pele se arrepia, e o sorriso iluminava
e a alma estendia, e o amor invadia

e o tranco se abatia.
Ah!

América-menina, por que agora chora?

desperta o bicho feroz que dorme quieto,
chora agora a mão que te machuca

- quer mais, menina?
e queria gritar,
mas amordaçaram-lhe a língua,
e emudecia

menina, agora é moça, moça violada e sangrada.

o sangue que daí escorre,
a dor que todo corpo percorre,
e o medo que toma conta,
e o sangue que de si espanta

dentro de ti, reviram-se outrem
dentro de ti, remenda-se outrem

tem a alma remendada,
é negra, branca e índia
chorariam todos
pratearia, tu, se soubesse
e as lágrimas levariam de ti
quem te faz doer e te faz roer!

mas não chora, não
morde-se mais
quer sentir o sangue escorrer
pela dor da própria dentada
e o gosto da lágrima
e o gosto das gentes
quer arrancar-se de si mesma
desintegrar-se em harmonia
ser mais, ser outra, ser tanta

arrancaram-lhe os seios,
os pêlos,
os cabelos,
o amor.

(e o resto
vestiram
com uns trapos
uns trapos
de fumaça e
cinzas)

já não quererão seu corpo -
quando todo ele desmanchar -
velha vagabunda,
abrindo as feridas
e escarrando nas cicatrizes
desvairada e alucinada,

- branca, sou branca!

que a lucidez te abandona
e a identidade já não lhe serve,
e já não tem
braços pernas dedos mãos
(arrancaram-lhe os membos,
para permanecer estática)

e chora, e chora,
américa-mulher,
américa-puta,

(mas ri, e ri, e ri
como velha desdentada)

matará a si mesma
rindo sem saber
matará América
por já não saber
por já não ser
e sequer existir
América, mulher.

setembro 23, 2009

prece à chuva

ah! chuva que deságua
fúria dos céus que castiga a terra
devolve nos meus braços quem me falta?

ah! chuva que desaba
também seus pingos são lágrimas
traz minha pequena numa enxurrada?

chuva que chove soluço assim
vem de mansinho querendo o fim
que mal há em trazer meu amor para mim?

(para sofia)

setembro 20, 2009

unhas

é que hoje eu
eu que nunca quis
pintei minhas unhas

quis pintar meus dedos
meus braços, meu amor
quis tudo pintar
a alma de róseo
de vermelho
para não ser incolor
para não ser toda desamor

foi para atrair seu olhar
foi para trair meu estar

e se seus olhos
por acaso virem meus dedos

por acaso entenderia?
ah! que é que diria?

é que pinto para você
e é saber como declarar
como eu ando querendo
até demais o seu olhar

minha alma tremula
ao ver a cor que se pintou

que se entregar, para mim,
meu amor,
é como morrer,
é como morrer.

setembro 17, 2009

a vó.

a vó era branca, olhos azuis, nariz grande e adunco. se não fosse rechonchuda, seria bem uma verdadeira italiana. a vó se esfarela, derrete, o suor corre na pele alva. é a cozinha que fumega, esfumaça e fica feito fuligem. a vó mexe na panela, de metal, grande, um nãoseioquê, que sobe vapor hedonista, faz os sentidos se atiçarem, cheiro de comida quente e caseira. a vó tem tanto calor que, no trono aristocrático da ascedência, bem se lembra da escrava negra. pouco se lembra, mas era filha pequena de filha de barão de café. lembra das sementes pequenas, que desprendiam cheiro volátil e escuro, quando torradas, e além das tantas, fazia-a correr até a cozinha quando o sabor procurava suas narinas. lembra da índia, cabelos compridos, era chamada assim, cuidava da menina, rugas infinitas, falava português errado e cantava canção de ninar em língua desconhecida, da sua terra há muito extinta. lembra da negra, na cozinha, o suor sempre lhe cobria, o avental sujo, olhava a negra, pensava, que bom ter negra aqui em casa, que bom ter negra que cozinha, cozinha bem, faz bem esta minha vida. a forturna se perdeu, os rios lavram as pepitas, a plantação de verde mudou-se para cinza. lembra da mãe, enfastiada, soturna, dizendo-lhe tristemente, seu avô é um canalha, seu avô é um canalha, perdeu tudo, os jogos, as mulheres, a cidade é uma desgraça. a mãe tentou lhe dizer que a cidade era uma desgraça, destituía nobres senhores com nobres motivos, honras tradiconalíssimas, a locomotiva usava de papel-moeda para queimar e fazer andar aquele monstro sem perna. mas estas histórias são tão antigas, que a vó mal se lembra, ela gosta da cidade, a televisão, ela gosta de ver as coisas, as cores, o mundo todo passa pela tevê. ela gosta de ar condicionado, e gosta de invecionices da cozinha, e gosta de cinema, e de celular, aquela coisinha pequena, veja só onde chegamos, meu neto, que coisa maluca, mas que linda que é! a vó se entristece, porque o jeito que limpa o suor da testa, lembra a negra, que não sabia o que era tevê, e não sabia o que era celular, e tinha uma vida sofrida, porque vivia sempre naquele cozinha. a vó sabe que vê o mundo pelas coisas que o homem inventa, mas o homem ainda não a tirou de dentro da cozinha. e a cozinha que é cavernosa, umas pedras, uma quentura, um monte de coisas em cima das outras, que é escuridão só, que só ela sabe. a vó chega, a panela quente, a panela grande, põe no centro da mesa. hoje é domingo, toda a família se junta, as crianças gritam, o seu velho dorme em cima da mesa. tem umas filhas, uns filhos, uns genros aceitáveis, umas cunhadas de que não gosta, uns netos barulhentos, mas todos lindos, todos talentosos, todos cheios de vida, aspirando futuro. duas filhas ainda moram com ela, o desemprego, uma coisa brava, uma coisa triste que só, uma quis fazer artes plásticas, a outra quis ser dona de empresa, a empresa faliu, o mercado as iludiu. mais triste é um outro filho, enlouqueceu, virou alcoolotra, diz coisas que a vó não entende, a vó briga com ele, e ele foge, e ela chora. e cuida dele, ele lhe parece ainda menino, não sabe onde errou, só sabe que sabe cozinhar. a família se senta, a vó grita, quer que provem, é feijoada, do jeitinho que a negra fazia na casa do seu vô. tem tudo do porco aí filha, eu sei que você tem essas coisas de não comer carne, mas precisa de carne, filha, carne é bom, sempre foi bom, come o feijão então, o feijão é bom também. a vó está ansiosa, provarão da sua comida, nem sente fome, nem quer comer, quer ver o que vão dizer. senta-se, serve-se e serve aos outros, sente-se adolescente, só a cozinha é que a faz sentir assim. olha para seu velho, o acorda, diz para provar. quer que seu velho vibre de alegria, como antes, como quando casou, e fez pela primeira vez aquela feijoada, lembra-se como ele aprovou, tinha vindo da europa, era holandes, não conhecia comida do brasil. lembra-se que ele lhe beijou, e a levou para cama, e fizeram amor com gosto de feijão, com gosto de amor. a vó já se esqueceu como é fazer amor, só quer que ele dê um sorriso de gosto, um sorriso de feijão, que é como fazer amor quando ja se é velha o bastante para isso. ele sorri meio a meio, pouco comenta, perdeu o gosto de falar, perdeu o gosto de viver, não sente mais sabor em comida alguma. e ela pergunta, o que foi, meu bem, não está bom, não está bom, gente? e a filharada concorda, a vegetariana comenta que os grãos estão macios, todo mundo diz que está bom, está bom, mãe, está bom, vó, é preciso dizer, para ver ela sorrir, toda a família sabe disso, é preciso dar mérito se não ela fecha a cara, e finda o domingo de família, e o mundo se acizenta. mas o vô murmura, entre os outros, e ela não o ouve, e diz, tão triste, o que é que é, o que é que é, meu bem, olha aqui, você só reclama do que faço, nada mais te agrada. as crianças também se emudeceram, e toda a família fica apreensiva, é o desmanche, o vômito, o mundo vai se acizentar. eu queria que você soubesse, seu velho, eu queria que você soubesse, eu sou branca, sou italiana, filha de barão, sou vó e mulher, sou mãe de família, não sou negra, não, não sou escrava não, não sou sua escrava não, de ninguém, não. não é mesmo, disse o pequeno, oito anos, não é escrava, vó, você é nossa vó, vamos só comer, vó, brigada, vó.

setembro 09, 2009

amor-menino

meu amor de menino, hoje sei, se alguma coisa sei, era amor. amor-menino que é amor-primeiro, que é amor sem saber o quê. foi a sensação antes da definição. o amor sem saber sintomas, sem saber contratos. e, por isso, é amor, amor primeiro e amor eterno. seria exagero dizer único amor? hoje o prosaico e o vulgar invandem-me. buscam extensas definições, estatificam relações. hoje tudo há nome, tudo há recíproco. meu amor-menino não tinha nome, e o recíproco era simples. meu amor-menino tinha olhos amendoados, olhos redondos como duas luas cheias, pretas de noite, e amaciadas de crepúsculo. eram dois olhos de brilho, eram dois olhos de bem-querer. tinha os cabelos pretos, como não podia, lisos e aveludados. lembro-me como meus dedos (meus dedos também eram meninos) deslizavam pelas ondas aconchegantes daquele mar de fios soltos. afogaria-me naquele mar. mas quando se é menino, nada se sabe do desespero, e por isso amor é ponto, amor é tudo. tinha a pele café-com-leite, delírio de moleque, que meus olhos, minhas mãos, meu sexo se demoravam por toda aquela escama de que é feito o topo do paraíso. pensava mesmo, que naquele tempo o catolicismo me entrava pelas mentes e estrangulava minhas entranhas, que era pele alva de anjo. que anjo seria meu amor. que a voz que saía da sua boca, que a voz era canção, cornetas empilhadas na boca de anjos transviados. era um pedaço de algodão na minha boca. lembrarei-me desde o tempo que encostei minha boca na sua, e senti o lampejo de paixão que me reacendia. tinha gosto de algodão doce. e os olhos, assustados, muito me olhavam e se perguntavam, calados, que era aquilo que também sentiam. lembrarei-me até que meu fim destrua minhas parcas lembranças, como colocávamos as mãos no peito do outro, que era para sentir o coração bater rápido. e a orelha que também encostava para ouvir todos os sons que o corpo fazia. era um rir sem fim. brincávamos. na sacada da minha casa, com as flores como companheiras, fingíamos ser mil coisas. com espingardas, matamos as flores. e com capas, as replantamos. e nas noites cheias de estrelas, ficávamos a olhá-las, calados, tentando entender o mistério daquelas luzinhas, que só se acendiam de noite, mas que sempre estavam lá. um dia eu lhe disse que nosso amor era uma estrela. que cada estrela era um amor. meu amor-menino não entendeu, não gostava de palavras, entendia mais que eu que as palavras amarguram a vida, mancham de sentidos o inexplicável. e assim, enfíavamos a língua um noutro, na'lma de outro, e abraçávamos nossos corpos nus, sentíamos a pele que ardia, e era tudo brincadeira. o coração que batia, a língua que se dobrava, tudo era brincadeira. todo amor-menino não passa de infância derretida. a malícia inexiste, num momento havia beijo, noutro, brigávamos pelo brinquedo. era tudo grande festa, grande alegria no nosso sorriso. e que coisa foi, meu deus, que já não éramos tão meninos, mas minha alma, que sempre se lerdiava em deixar, em mudar, em se adaptar, quando foi que meus dedos descobriam no seu rosto os pêlos, como aqueles que cobriam a cara do seu pai. e aqueles pêlos se alastravam por todo o corpo, lembro com assombro, do quanto havia entre as suas pernas, circudando o pênis que para mim não era nada. e como sua voz angelical, meu amor-menino, transtornara-se, desafinada e grossa, potente e máscula. e meus olhos que agora, perguntavam, calados, à meu amor-menino, o que é que acontecia conosco. lembro dos seus olhos sérios a me responder, a boca fina num riste, e dizia-me na orelha, a mesma orelha, que seu pênis se endurecia cada vez que eu tocava-lhe a pele, e que tinha vontade de me possuir. e você, meu amor menino, que sempre foi tão desligado das palavras, que se demorara a começar a falar, e que apenas dizia o necessário, usava-as de jeito tão assustador. estou certo, meu primeiro e único amor, que as palavras nos afastaram. depois veio você, depois veio dizer que era errado o que a gente tinha. e eu lhe perguntava, e já sentia o desespero, o que é que havia de errado? onde é que havia ouvido que era errado?
é errado, eu sei, você não. melhor a gente não se ver mais. eu tenho nojo de você.
que é que te aconteceu, meu amor primeiro, que fizeram do nosso sentimento? que era tão bonito, e era tudo brincadeira, era uma festa dos sentidos, lembra-se? o coração agitava-se louco, as línguas brincavam no céu de outra boca, os pés formigavam, e tudo era uma sinfonia coreografada. era errado, meu amor-menino, foi o que ouvi, depois também. mas se minha alma lerdiava em crescer, em amadurecer, também era forte em preservar o sentido primeiro. e também jamais esqueceu o amor-menino, amor-primeiro, o único amor, que não tinha palavra, que não tinha malícia, porque não tinha errado, e tampouco certo. era amor-menino, meu amor, que se estragou pelos pêlos do seu bigode. eu não o amaria de novo, se não fosse a pele alva café-com-leite que me enrosquei.

setembro 02, 2009

1

olha, aquela, menina pequena!
os cabelos batem nos ombros
os olhos espreitam escombros
e n'alma não se vê resquício de pena!

olha, aquele, menino travesso!
a íris vira e se revira pelo mundo
diz que será pequeno vagabundo
é o canto que canta do avesso!

é que toda gente se sente ausente
e ouve-se amargura na voz que nina
é que toda tristeza se mete atraente

é que toda criança é feito ave afoita
tem na alma uma canção que atina
e rir da vida é não se sentir desfeita

agosto 27, 2009

varizes

a perna mulata era de um tamanho grotesco. e aquela mini-saia, uma indecência da modernidade, vermelha e pregada, de um mal gosto canino, deixava ver tudo aquilo que tinha a oferecer. vi e estudei os buracos roxos que permeavam toda ela, as varizes que se estendiam feito rios leitosos. rios, não. eram rachaduras. pediplanação em tal terreno pedregoso e seco. rachaduras em que corria certa amargura, e me dava tamanha repugnância. mesmo assim, transpirava sexo. era o cigarro acendido no canto da boca, e os peitos saltados, gordurosos, ensaboando a visão das minhas retinas masculinas. levei-a para o quarto. ela tinha olhos tristes, tristonhos, tristinhos de tudo. pretos, pretinhos, como toda aquela população parda e ingrata. mas cabia tanta tristeza ali, quanto não cabia nas rachaduras das suas pernas, que embora pareciam estar putrefadas, tinham agilidade o bastante para realizar bem o trabalho. eu, que era franzino, e sem dinheiro, e usava um óculos com a lente rachada, eu, que era branco, e só menino, um só homem sem ter mais distração, me afoguei dentro daquele corpo enorme, aquele um corpo negro, percrustando seus buracos, me enfiando nas suas depressões, tomando a água que dali escorria, pelas grutas soturnas, os pedregulhos encrustados, a dureza, e a moleza de esponja.
meti nela olhando nos olhos tristes. e todo meu ser também foi triste. gozei e lhe perguntei por que é que tinha olhos tão tristes. já disse o quanto eram me parecido como fossa, um mar de negrume, uma tristeza de dó, mas uma tristeza que se conforma, que se forma, e se torna parte do ser que a sustenta. demorei a descobrir que o som que saiu das suas narinas fosse um riso. como uma rajada de vento que tenta afastar besteiras inconvenientes.
deitei ao lado dela.
- você tem filhos?
- inté neto.
- é por isso que você faz isso?
- faz o quê?
- isso.
soltou sua risada novamente. levantou-se para ir. tentei insistir.
- hein?
- por que ocê me quis?
- você gosta?
- gosta do quê?
- de sexo.
dessa vez vi seus dentes. amarelos, e entre os espaços, a mesma profundidade dos rios que percorriam suas pernas. tudo nela eram aquelas rachaduras. tudo nela eram aquela réstia que deixava ver sua escuridão.
- eu gosto do que ocê vai me dar agora.
abriu a palma da mão. as linhas, as linhas da mão! tortas, entrelaçadas, como todas, que percorriam o destino cruel de todas as vítimas deste mundo epidêmico. mas a dela, negras, como não haveria de ser? como não haveria de ser o solo rachado, áspero, os fundos de não sei o quê que preenchia aquela mulher por dentro.
entreguei-lhe o dinheiro, assombrado.
- o que você tem aí dentro?
vestia a mini-saia. foi embora, sem me dar trela. sem me dar um pouco da tristeza dos seus olhos. deixou-me o rastro de seus pés. por onde andava, corria aquele risco no chão, aquela falha, o caminho sinuoso dos que tem dentro de si tanta seca, e tão pouco sangue.

saí do quarto, em desistência, em retirada. mal vi que atrás de mim, o chão também se abria, uma falha sinuosa e larga, que dava para ver o que havia por detrás do mundo, as mãos que sustentavam tudo aquilo que era vida - e que também era morte.
me disseram que tamanha era a escuridão que mal podiam enfiar os olhos na minha rachadura. ela tornava turva a mente, e a tristeza as invadia, e tudo era fossa, pediplanação, varizes entrecortadas que sangravam a seco o seio do mundo.

agosto 23, 2009

mas é que - ai!

mas é que - ai! - onde é que a gente quer chegar? tantos contratos assinados a léu. tenho mania de promover acordos comigo mesma, de estabelecer metas mal vencidas. tenho mania de fazer comprações absurdas e fazer ligações ininteligíveis. há de se tentar de explicar o inexplicável por vias tortas. por onde é que anda a minha vida? desperdicei dezenove anos ou tudo isso tem algo a me dizer? o que é que o silêncio desta casa vai me ensinar?
e as paredes rangem, e as janelas se lamentam, e as portas chorosas, abrem e fecham, à sua maneira. e os móveis, estáticos, sentem a falta dos passos, dos berros, das palavras. e se há aqui seres humanos há palavras jogadas ao ar - não adianta ser apenas pensadas. quando fico sozinha, já passo a falar comigo mesma, com os espaços de ar que me acompanham, com a sombra que me alenta. é que não falar implica um quê de loucura, de desvairo, de gente que ermita, funda, se afunda, um pouco de quê de perturbada. e falar sozinha nos parece mais conveniente do que deixar o silêncio reinar. esse rei gordo e espaçoso, um tanto orgulhoso, que é o silêncio, se deixa entrar pela porta da nossa casa, invadir nossa alma pelas narinas, fazer zunir o o seu assombro por nossos ouvidos, toma conta de tudo. e de silêncio basta a morte que nos é certa. a vida é som, e um tanto de cor, e um tanto de diálago. desculpe-me Charles Chaplin, que aprendeu a odiar com todas as forças, o som que poderia ter seus filmes, os dialágos que poderiam acabar com sua simplicidade sincera e sginificativa. desculpe-me senhor, mas não concordo com isso. cenas extensas sem dialágos, se não são explicativas pela imagem, me dão sono. o silêncio deve ser usado com agudez, com sutileza. no final de uma reticência, no escorrer de uma lágrima, na pausa de um sorriso desdentado. tirar o som do mundo por um instante - e os carros se calam, e os pássaros se emudecem, e toda gente pára, e o som sai, e a alma sai. seria bonito assim, o silêncio. mas não se durasse uma eternidade, pois assim, saíremos todos nós, loucos. enterraríamos nossas raízes, nossos pés inúteis, no chão acimentado e permaneceríamos a olhar-nos tentando traduzir o que é que se passa por toda essa falta de...
mas que? por que disserto sobre o silêncio? porque aqui dentro o silêncio se demora demais, é preciso expulsá-lo, é preciso que eu me complete de outra coisa, noutra coisa, me mova. um minuto sozinha é o suficiente para me relembrar a dor que trago sobre os ombros, e por detrás dos olhos castanhos muito dos escuros. mas quando passa a vida - e a vida, assim, é leve, fina, colorida - o sorriso se espalha, a dor se acomoda em lugares que não se acham, entre as vértebras que se dobram, no espaço entre os dentes, por debaixo das unhas, se enrolam nos fios dos cabelos. e a dor assim, é quase inperceptível, quase silenciosa. dá para se acreditar que ela inexiste.
e então toma-se todo o corpo, inerte, que quer expulsar de si aquele silêncio aterrador, e quando quer chorar não quer, e não sabe se as lágrimas são boas ou não. não sabe se os risos são bons ou não. não sabe se isto que leva nas suas concepções e idéias, esta coisa de vida, esta coisa de memória, não sabe se isto é bom, não sabe se isto lhe valerá.

não sei que idéias me tomam agora, que coisa que é essa, tenho vontade de escrever, mas tenho apenas de escrever sobre mim mesma, como necessidade de escape, de fazer surgir som dentro de mim. mas é que... é que... não sei o que é que é que seria que é. é que ai...
deixa pra lá.

agosto 09, 2009

carta para um pai que não a receberá,

eu queria lhe agradecer, veja bem, agradecer por... por ter me apoiado nas horas que mais precisei? ah... não. por ter me dado suporte, abraço nas horas amarga, conselhos que guiaram o rumo da minha vida? talvez não. talvez você não seja especialista neste assunto, ou seja a (falta de) intimidade que nos atrapalhe. mas, espera! eu não te culpo. os pais separados, embora tentem ser presentes (como você), nunca alcançam certo nível de invasão. sim, porque intimidade é invasão. e invasão é conseguida, às custas, de quem vive junto, se atracando e se consolando. isso que a gente chama de família. não que você não seja família. é uma parte, assim, da minha vida. eu lhe agradeceria, apesar de ter te declarado esta falta de descoro, por você existir. existir basta, pai. a sua presença é sugadora, é enorme. uma vez por semana, umas viagens de final de ano, estar quando eu preciso, com aquela certa comodidade, "estou aqui pois devo-lhe os anos que não estive, pois sou pai desta menina e mal a conheço", e me buscaria aonde judas perdeu as botas, se não dormisse antes, e me daria todo o dinheiro que ganha, se não se tentasse em gastá-lo antes. mas para mim, basta que você tenha se esforçado. há controvérsias - minnha mãe, minha avó materna, meu padrasto diriam. mas eu nunca levei em mim a imagem que eles fazem de você. para mim, você é pai, e isso basta. basta que tentasse, e até hoje tenta, ser meu pai (embora trate-me como amiga, por não saber direito como tratar uma filha de dezoito anos). eu vou beber coca-cola com você, pai, enquanto você bebe suas - três, no mínimo - cervejas e - uma ou mais - doses de ypióca. eu beberei coca, até não sei quando, para você não ver que minha infância se perdeu. eu tento entender quanto é difícil para um pai ver a filha crescer e estar pronta para receber a vida - sem outras mãos para lhe proteger. a coca-cola fica nosso tratado silencioso, tá? embora eu discuta de cerveja com você. eu sei que faz algum sentido. você foi meu herói, de alguma maneira. me machucou, de alguma maneira. já disse-me coisas que ainda consigo ver, arranhadas, na minh'alma condoída. mas quem não diz? todos tem a mania besta de não saber usar as palavras. de não saber manusear o coração dos outros. você é o cara do bolo de cenoura, o cara da caixa de bombons e do cinema, da pizza no dom cuca, do peixe em sousas, do sorvete na sergel (quanta comida, não, pai?). você é aquele que me levava para escalar as rochas de todas as praias, descobrir umas em outras, nadar em mares revoltados, subir na pedra mais alta só para ver o que se há de lá de cima. e que até hoje, quando vou para praia, olho as rochas, umas sobre as outras, eternamente ali, e queria ir até lá. hoje em dia, ninguém liga pras pedras, pai. ninguém liga para paisagens bonitas, para se arriscar em descobrir coisas. lembra que a gente andou 15 km em uma praia, e depois por dentro de uma mata, até achar uma tribo indígena? eu ainda procuro alguém que tenha a mesma disposição que você - acredite em mim. esse papo que a gente tenta ver alguma coisa de pai (ai, estes complexos!) na pessoa que gosta, eu acho que é verdade. não se esqueça que eu gosto de fumantes, embora acho que você deva parar. você deve me achar meio boba e certinha, calada sempre; mas é que eu não sei, não consigo falar tudo na sua presença. ela é enorme, mas me basta ouvir você, por algumas horas. eu treino - há tempos, pai - ser eu mesma na sua frente, mas é muito difícil. ainda hoje, minhas mãos suam, e eu não sei o que fazer. você é sempre um primeiro encontro, de uma pessoa que eu já conheço, mas que ainda me surpreende - embora eu não concorde com metade do que você fala, e que se eu tivesse coragem suficiente, viveríamos brigando. mas vivemos em paz, não é pai? há muito tempo em paz. então obrigada, obrigada por ser meu pai e estar aqui, apesar de todas as falhas e incoerências, tudo isso a gente perdoa, tudo isso a gente deixa... porque de alguma maneira,
existe certo amor.

(eu amo você, pai.)

(e não receberá, porque toda essa verdade é doída e deixemos em paz, assim, em paz é melhor).

julho 31, 2009

re-trato 1: o velho safado.

não há maior prazer, nesta vida mesquinha que deus e diabo nos colocaram, do que sentar ao lado de uma moça bonita no ônibus. quanto mais moça, mais bonita. quanto mais decote, maior deleite. de leite, nunca quis saber. não me apego às mães, nem às senhoras. um dia me perguntaram uns amigos, uns dos poucos que ainda coleciono, se eu não tinha vergonha de gostar tanto das menininhas. que eu tinha mesmo é que gostar das viúvas, das velhas, das senhoras charmosas. e eu lhes disse, para que gostar de um tanto de rugas e pelancas sem cor? e eles, assombrados, me compraram um espelho, por achar que faltava em casa, e me disseram, sem medo nem afeição, também é velho, e não tem dentes, também tem rugas e é muito feio. o que você tem de bonito, seu antônio, é a sua experiência. e também as senhoras as tem. experiência de cu é rola. a experiência que levei desta vida foi de perseguir meus prazeres. pois as dores vem e vão, sem que a gente chame ou reclame, e não há nada o que fazer contra elas. mas há de se sentir vivo, e de se sentir carne, quando o sorriso sorri o gozo intenso. e passado de mulher velha, não me importa. passado é coisa velha e sem valor, poderíamos amassar todas essas páginas, fragmentos trágicos que só nos deixam saudosos do que não volta jamais. essas velhas são monumentos de saudade, e saudade amarga a vida. essas velhas não tem dentes, tem peitos caídos como o quê, tem a boceta cheia de teias de aranha, e ainda tendem a ser moçoilas, fingindo inocência. todas as velhas são virgens. e - perdoe-me, senhor, por dizer tais imoralidades - nunca me apeguei às virgens. gosto do sexperienced, gosto de casais jovens em praças públicas, que se lambem em contínuo desassossego. sento, coloco o jornal no colo, que é pra não me importunarem por algum volume que surgir. se volume surgir, darei graças à deus. é o que eu digo, se me reeprimem na rua, sou velho inofensivo. tudo que quero é ver. nada mais posso fazer. que me custa ver umas coxas grossas, brancas, pretas, amarelas? uns peitos pulando para fora, pedindo para serem apreciados, por um dos melhores no mercado? e os rostos. também me dão tal prazer secreto - de ver surgir sorriso bengala e bobo de velho - os bonitos rostos. gosto de rostos sinceros. de olhos pretos ou azuis, desde que sejam atentos e comoventes. de sorrisos abertos, bonitos, escancarados, azulados. os narizes bem feitos, obra-prima do senhor. das orelhas com brincos compridos, da composição toda. e falar em brinco, muito eu gosto das ripongas. são as criaturas mais simpáticas deste mundo. sento-me com elas, e conversamos sobre todas as banalidades do presente. gosto de uma ninfa, em particular, lucinha, nada sei da sua história, nem ela da minha. quando a noite escurece, ela me deixa pegar nos seus peitinhos. ela se ri toda com meus elogios malditos, escancarados. diz assim, sem prazer, só risada 'as minhas tetas são pequenas, só você acha graça nelas' e eu digo 'as tetas são sempre tetas, menina, já pensou sobre escaladores de altas montanhas? são só carentes de tetas, se soubessem da vida, ficariam pregados em subir todos os tamanhos de tetas, a maior aventura que pode ser dada a um homem.' ela ainda se ri, e quando se cansa, tira minhas mãos, e me pede uns trocados para comer alguma coisa. elas furaram-me a orelha com um brinco de madeira, coisa de hippie, e dividem seu baseado comigo. meus amigos dizem que estou ficando louco, e eu lhes digo que se não gostam de louco, podem ir embora de minha casa, e cancelar o buraco de quarta-feira. eles nunca vão. são loucos por jogo de cartas, eu por mulheres. as mulheres são cartas, as novas - sempre as novas - pegamos-na com as mãos, desejamos aquelas que tão na mão de nossos amigos - comumente chamados de inimigos - e tudo que queremos é ganhar tudo. é ganhar todas. eu já não tenho potencial de observador, mas até que a dona morte - mulher formidável, embora me dê um pouco de medo - venha me visitar, continuo a procurar todas essas meninas, minhas meninas, e minha retina vai gravar para sempre a dança de seus corpos.

julho 28, 2009

sobretudo preto e cigarro aceso.

tive amores não-fumantes. e buscarei nunca mais tê-los. minha última, Violeta, ela se chamava. era uma menina doce, vinha de uma cidade interiorana e fazia faculdade por aqui. tinha olhos perdidos e sonhadores. depois que terminamos, encontrei-a à porta de minha casa, mal podendo se sustentar naquelas pernas curtas, e com um cigarro na mão. quando juntos, ela me proíbia de fumar ao lado dela, o que contribuiu para o término precoce do nosso relacionamento. perguntei-a por que que estragava seus puros pulmões com aquela fumaça da maldade. ela disse que aquilo a fazia lembrar-se de mim. e toda vez que tragava, sentia um aperto em sua cona, um delírio infindável, e se perdia nas minhas lembranças. depois dela, menina que nunca mais quis ver, decidi-me por me juntar só com mulheres fumantes. quero, assim, que apagem facilmente minha lembrança de suas cabeças, e de suas almas. quero poder ser livre, e quando o término for inevitável - pois é sempre - que saiamos, os dois, sem feridas tão produndas. alguns cortes na pele nos bastariam.
pensava isso, e andava pela rua. fazia frio, todo o céu era cinza, e poucas pessoas transitavam pelas calçadas. eu era sobretudo preto e cigarro aceso. tenho feições graves, masculinas, gestos ásperos, voz grave. vi-a na outra calçada. era muito bonita, visão cinematográfica. segurava um cigarro nas pontas do dedo, com leveza. atravessei, as mãos no bolso. a gravidade mantida nas feições.
- você fuma?
ela me olhou, divertida. era nova. a vida parecia-lhe um grande parque de diversões, ainda.
- não.
e abriu um sorriso cheio de dentes brancos e tentadores. os lábios eram carnudos e vermelho. o sorriso de uma predadora. de uma vampira, dessas que tem prazer em sugar a alma dos outros.
- e por que segura este cigarro, posso saber?
- para minha amiga.
- e por que assim?
indiquei a sua mão posicionada. puro fingimento. meu desinteresse pela moça já se alastrava.
- para ver quem me perguntaria se eu fumo.
riu, com uma gargalhada curta e pousou seus olhos provocadores em mim. tinha acertado. era vampira, felina, moça-menina; se eu era especialista em términos, ela em conquistas dissimuladas.
ouvimos passos graves logo atrás. a suposta amiga vinha, cabisbaixa. vestia preto, e apenas um cachecol vermelho que balançava com o vento que a tudo levava. seus passos eram lentos.
- ninguém tem fogo.
pareceu não se importar com a minha presença. tinha um corte torto nos cabelos, que lhe dava uma impressão de louca. eu sabia que não. ela era mais triste que louca.
a primeira, com o cigarro ainda nas mãos, indicou-me com o olhar.
ela me olhou longamente, pegou o cigarro, e apenas sorriu. não conseguia decifrá-la. não usou palavras para pedir o fogo que queimava no meu cigarro. apenas se aproximou. senti seu perfume de madeira. seus olhos eram negros e vastos, e usava forte maquiagem da mesma maneira. ela era toda ela, se isso fosse possível. não se deixava ser mais ninguém, apenas o que transparecia na alma. e por isso, era tão mais difícil descobrir quais eram suas táticas.
talvez não tivesse tática.
um silêncio arrebatador se abateu sobre nós três, estranhos, em uma rua vazia e fria.
- vocês aceitam um café? ou um chopp, quem sabe.
- um chopp. e você, lá?
respondeu a felina, abrindo mais uma vez o sorriso. eu já não olhava aquele sorriso arrebatador. se concentrava na sua amiga, mais baixa que ela, mais atarracada, mas incrivelmente mais interessante.
ela deu de ombros, e um meio sorriso, talvez pela comodidade de não ser taxada de antipática. andamos, os três. olhando as duas mulheres, pude constatar que eu me apaixonaria pela beleza da primeira. mas me perderia na tristeza da segunda, e com ela, a minha própria angústia encontraria lugar. e eu sabia que, dessa vez, eu saíria profundamente ferido, como teria querido Violeta. e a menina, só com alguns arranhões a mais na pele já tão castigada.
o mais sensato escolheria apenas se aproximar da primeira mulher. mas eu nunca fui sensato. a sensatez não prova paixões, e era essa, talvez a minha maior busca.
tragei meu cigarro, e quis puxar o significado da minha alma. veio-me só o gosto da paixão.

julho 26, 2009

céu cor de cobre

o céu cor de cobre
permeia o ar de ocre
e o roxo dos edifícios,
tudo cobre.

há fios demais:
é o céu dos pardais
é nosso marasmo sem paz.

(cantam as gaivotas
entoam suas revoltas,
mas ninguém jamais volta
pro azul que se gosta.)

amarelam-se os rostos
acizentam-se os postos
- arrancaram-me os tatos.

quero quero não mais quer
bem-te-vi não te vejo:
não te quero
nem te desejo.

explode no céu uma luz
todo o povo ela seduz
- é luz de pólvora e chama.

chama lá os enfermos
sem perna e sem termos!
para dar-lhes rua dura
e céu noite de estrelas.

é, para mim, gravura
apenas uma pintura
- coisa que se atura.

é feita de sólida solidão
por matar seu artista pagão,
e manchar seu corante
sem a poesia de ser amante.

cidade mundo aqui chora,
se pinta como cor de amora
estende o fim que se demora.

e os corpos nas ruas
vivos se queimam
e ainda brilham, ofuscam
as luzes nuas.

amanhece a chuva,
lavaram as curvas
- a vida é tão turva.

a luz era só a noite
a noite era só a morte
a morte era só um corte
o corte que é sua sorte.

gaviões negros satisfeitos
abutres riram-se todos
urubus em prosa rasa
e o corvo tudo abraça.

julho 24, 2009

cilada

a produção cinematográfica indpendente está morrendo e eu nem comecei a vivê-la. saiu hoje, matéria na Ilustrada, o panorama está péssimo. tampouco, não precisa-se avaliar as produtoras fechadas nos EUA e na Europa, embora os fatos do primeiro mundo ecomm aqui neste país brazilis, apenas as opções de filmes para assistir que temos. Campinas, um milhão de habitantes, quase nada de cinema nas ruas, poucas cinematecas. está tudo concentrado nos shoppings, com seu gosto peculiar às grandes massas, as superproduções juvenis, o vendável, o entretenimento não-saudável. e eu aqui, acreditando no futuro do cinema. e eu aqui, acreditando nos frutos do cinema. mas isso me fez pensar no papel que o audiovisiual tem. é necessário querer transformá-lo mais que mera diversão, em fazê-lo como arte, que visa desarrumar a alma do espectador?

isso me faz lembrar uma profesorra de português minha, no época do boom do Tropa de Elite. ela disse que aquele filme, além de ser violento e ter muitos palavrões, condenava tudo que podia-se assistir ao jornal todos os dias. na hora, fiquei olhando para ela, inconformada. se eu tivesse colhões - ai, que droga de cromossomo X - mas se eu tivesse colhões, teria lhe dito umas poucas e boas. teria levantado e lhe dito que, embora não seja fã número um de Tropa de Elite, justamente por tal obsessão pouco prática e reflexiva dos jovens, achava extremamente importante que notícias transformassem-se em arte. ora, então, senhora, ler Cidade e as Serras é uma besteira, nos dias de hoje, estamos enfadonho das modernidades das cidades. ora, então, disse-me uma vez... a senhora... que seu livro preferido era Dom Quixote. bom, eu digo que qualquer ser humano sabe muito bem da parte que se cala, e da parte que fala, do ser que sonha e aquele que é prático. somos feitos dessas metades, e não é preciso ler Dom Quixote para descobrir. por que a senhora está tão bravinha? sim, eu sei, são obescenidades o que acabo de falar. tanto é a sua colocação infeliz. esta mesma senhora, disse que não queria ler A Insustentável Leveza do Ser porque o filme era muito pornográfico. muito... quê? onde a senhora enfiou a sua extina juventude? onde é que se foi um pouco do seu hedonismo, um pouco do seu Dom Quixote, ora essas, libido, a senhora não tem? acho que só tem cu para enfiar tais opiniões sem fundamento.
para ela falta libido, para mim colhões, mas nós duas temos cu. acho que uma pessoa assim não deveria dar aula de literatura. como é que ela sente, como é que ela pulsa, como é que ela entra na alma desavessa dos livros que lê? mas deixemos a professora, voltemos ao assunto principal.

acho Tropa de Elite fenomenal, como qualquer outro que explore, um pouco, da condição que grupos marginais sobrevivem e como isso se densenrola na ordem social das coisas. acho que o cinema é o um dos meios mais fáceis de atingir o público, sim. pois exposições de arte necessitam tirar aquele estigma de gente culta que frequenta tais lugares, necessitam ser mais abertas, mais cultura. e os livros dependem das pessoas. dependem que elas comprem, se interessem, se dignem ir até o fim, terem tamanha coragem de se ver descritos nas linhas, e continuar a comer, mesmo assim, o que é amargo. os livros são deixados de lado. o teatro, hoje, é uma arte de requinte, que tem que aspirar a vontade de ir, a vontade de se envolver. todas as artes tem estigmas e sofrem preconceitos globais. a população emergente, que é a maioria, é excluída do que é arte, que é direcionada para as classes médias e altas da população. e nem estas classes dão o digno valor. o cinema não tem estigma, ainda. o cinema é cultuado, por todos.

mas aí fica a questão: o cinema cultuado não são todas as superproduções, que se enchem de clichês e roteiros pouco surpreendentes, que vem com valores mastigados para o grande público? o panorama da arte são nuvens cinzas que tudo cobrem. que saída temos, nós? a arte tem que ser salva, antes de sua morte completa. pois não chamarei de arte aqui o que é grotesco, grandioso e puramente vendável.

julho 18, 2009

em branco.

não sei como chama isso, mas é algo como cansaço de ser triste. a tristeza absoluta que transborda todos os poros e toma conta de todo o corpo, atinge a alma feito faca, e faz nascer lágrimas nos olhos. é como dormir por horas, acordar, e querer dormir mais. e dormir nunca é suficiente, pois seus sonhos vem visitá-lo, e a cama é desconfortável, e revira-se em você, dobra-se com o lençol, se esparrama pela dor. é como sentir fome, e toda comida ser intragável. é como querer sorrir, mas todo riso parecer hipócrita. essa tristeza que tem dono e motivo, mas não se vê fim, e por isso é absoluta. nehum livro de auto-ajuda poderá te explicar. os seus membros parecem pesados; seu corpo todo é chumbo. essa tristeza não-cíclica, que se apela ao divino. pede-se ao sol, ao vento, à lua. faz-se macumba e simpatia. medita-se com contas sem fim. reza-se pai nosso, lendo o papel na sua frente. você até iria em um culto. mas não. toda tentativa de apelação parece inacabada, frustrada, vencida pelo cansaço corporal. o peso da alma é o peso do corpo, sempre latente. um topor de querer fechar os olhos até que tudo passe. espero que tudo passe. e que tudo termine bem. a única coisa que se consegue repetir para si mesma são coleções de frases clichês. uma luz infinita, inventar memórias de um futuro-sorriso. mas ter sua memória afetada pelo horror das visões soturnas. as visões enterlacam-se. quero dormir. dormir. e tem que se viver. tem que se sorrir. tem que continuar. o torpor quase vence. não se morre, pois não se pode. se você morrer, alguém precisará de você, lá, quando você ainda tiver força para segurar a mão pequenininha, escondida na sua própria, e chorar de ver seu riso abrir-se. então continua-se. o cansaço tenta, mas tenta também a possibilidade. a sonolência avança, mas sabe-se do sonho. as orações, alguma hora, fazem efeito. farão efeito. terão que.
tudo terminará bem. tudo vai passar. tudo terminará bem. está tudo bem. ok. dorme aqui comigo. fica quietinha, dorme aqui comigo, minha pequenininha.

julho 16, 2009

vontade

vontade de ver inúmeras boas propagandas, porque elas são tão plásticas quanto me sinto
vontade de escrever ininterruptamente para preencher o vazio
vontade de não escrever para ofender minha própria vontade
vontade de não ser, não fazer, não crer
querer que tudo dê certo, se vingar de um deus oblíquo
vontade de ir, sem ter por onde começar
não querer ler outro livro, por sentir os fantasmas do recém-chegado
vontade de me enfiar entre páginas saborosas de fatos absurdos
não vontade de ver filmes
não vontade de rir
odiar o olho que brilha por muito olhar essas telas
essas telas piscam, repiscam, revoltam, e brilham
as telas ofuscam a alma repartida
vontade de estar quebrada, vontade erótica inexplicável
vontade de ter você, sem te conhecer direito
ódio, ódio platônico para verificar a vida em mim
vontade de não viver, desaparecer por uns poucos
de não ter paz, de estar numa ilha, robson cruzué
vontade de montanha, de neve, de bolha de sabão
de chorar, e segurar o choro, prender na garganta
de escalar as escadas do céu e encontrar o gigante que a tudo supervisiona e dizer-lhe
ei, dê me uma única vontade, uma vontade que me valha
pois estou gasta, senhor, estou gasta de não-vontades e falsidade
estou gasta senhor, de mim mesma, dessa minha pele, dessa minha alma mesquinha
dê-me outras palavras preu recomeçar, dê-me outro caminho
faça voltar o tempo das pegadas, faça-me fazer a dor por vias certas
ah! vontade de descer no submundo e me colecionar as almas doloridas
e dizer-lhes baixinho, num sussuro fúnebre, muito me admira vocês, queridas
podem me dar uma forcinha? vou voltar lá pra cima e preciso
e preciso de seu arrepio, de seu susto, preciso de seu sorriso maldicente
veja que vontade de apelar ao infinito
e que vontades fracas são estas
se o infinito nada tem a ver com o terreno que aqui se estende
e com minha sina que não se move
um trem que anda e anda e anda e anda
mas eu estou na estação
eu não estou na estação
eu subi no trem
pra onde ele vai, moço?
vontade de te ter, moço
entre as lenhas do vapor deste trem
e me desfazer no apito que soa e na fumaça que se funde aos céus
e me fazer conhecer tudo que há contigo, moço
para onde eu vou, moço?

julho 14, 2009

é preciso muito ócio.

nestes dias percebo, e não posso negar diante da desvirtude que é a humildade sem propósito, o quanto meus pensamentos tem-se exaltado, saltado, de um canto para o outro, irriquietos, criando concepções para tudo, entendendo cada instante que meu corpo responde com suas reações biológicas, analisando friamente situações ordinárias. isso se deve, mais uma vez penso, ao ócio que esses dias de férias absolutas me proporcionam. é claro que isso está muito errado, pois uma vestibulanda que se preze não deveria ter férias absolutas, mas vejo que... por aqui escrever essas bobeiras sem sentido... perdi já o gosto de estudar, até minhas queridas prioritárias, como história que ainda está parada lá em Roma decadente. mas deixemos essa consciência furtiva, que ás vezes aparece feito fantasma dentro meus pensamentos acalorados, recobrando-me objetividade na vida. ela deveria entender que sou muito pouco objetiva, meus atos, meus sentimentos e tudo mais que pertence à mim é quase tudo subjetivo, quase inentendível, nebuloso até para eu mesma. e talvez por isso me deixo perder-se no mundo aqui que existe dentro da nossa mente.
logo, a conclusão máxima, é que um filósofo, em dignas condições de poder ser chamado de um, tinha tempo (e dinheiro) de sobra. estes seres iluminados, taciturnos à luz do dia, ignorados pela grande parte da população que prefere idolatar profetas com suas certezas imediatas, deveriam (ou devem, essa mania do passado me persegue) andar por aí, para pensar como o mundo deve ser e o que fazer para explicá-lo. eu, na minha santa ignorância graçasadeus, sei pouco de filósofos. acho mui interessante este ramo primário das ciências, mas me contento em observá-lo a distância. o que sei de filosofia está na metade do Mundo de Sofia que consegui ler, duas vezes, e que me fez aprender corretamente a principal discussão de Platão; o que me dá devidos créditos quando alguém cita o seu nome. de resto, nada sei. quando leio artigos que se referem a estes pensadores, penso: Webber? mas o que Webber fazia da vida? ele andava por aí, colecionava seus pensamentos, escrevia-os (como não faço), publicava compilações e era um filósofo? máque? como alguém se torna filósofo, deus do céu? por que existem mil ensinamentos de auto-ajuda do Einstein se meu esterótipo dele era um físico genial que nunca saía de seu laboratório, cuja única foto que conseguiram capturar foi de sua língua infantil e lunática? como Einstein, em sua santa e deusificada genialidade, entendia de como seguir na vida? vê como meus pensamentos saltam instantaneamente de um assunto a outro, sem encontrar solução? zero numa dissertação de vestibular, eu diria. mas como é que se acha solução para tudo?
de tantos filósofos que temos, o mundo parece muito mais misterioso do que o era. é claro que o conhecimento acumulado é infinitamente gigantesco, mas creio que as dúvidas se tornaram a melhor maneira de responder aos segredos do mundo. temos um filósofo Sicrano que diz isso e aquilo, e o Fulano que diz aquilo e isso; diz-se que a credibilidade dos dois é importante, tem-se o terceiro estudande de Filosofia que os confronta, e disso só sai mais pontos de interrogação. as visões de mundo são tantas, se intercalam, e nada explica. a verdade é que, para grande maioria, a explicação mais visível é a sua própria. comunistas e sua crença cega em Marx, crentes prósperos da Igreja Universal, indigentes e suas filosofias sórdidas e desprezíveis, artistas e sua mania de explicar o mundo por subentendidos, acadêmicos e a credibilidade inata nos livros científicos, trabalhadores cansados que querem assistir à novela, gente que acredita mais em Mega-Sena e Big Brother do que em Deus, seminaristas conformados à deriva, chefes políticos envoltos em brumas de corrupção, jornalistas e suas meia mentiras (e por que não meia verdades?), ícones desapropiados dependentes, favelados e sua ambição narcotráfica, gays e sua luta ideológica, neonazistas ocultos por imagens aprovadas pela sociedade, prostitutas e sua sorte abandonada, adolescentes ansiosos pela próxima festa, crianças espantadas com o mundo visto pela primeira vez. cada indíviduo não está nem aí para o que acham os mestres da arte de pensar, pois possuem em seu cerne, também, o proveito de utilizar as faculdades mentais. das coisas mais banais às concepções mais complexas e reveladoras, defendo uma filosofia transmutável e pessoal. e dessa maneira, sei que defendo, juntamente à esta liberdade, largar o mundo ao caos. e que assim, ficará impossível implantar qualquer ismo, fazer acreditar qualquer religião, montar o mundo de qualquer forma social e imaginável. pois o inimaginável do outro, escondido por seus olhos atribulados, é um mundo que deve ser respeitado, que deve ser consolidado. este é um mundo de caos, onde prostitutas dão à luz do dia, velhos fumam maconha no meio da praça, arrogantes não mais contém seu ódio invisível, jovens destroem monumentos públicos. haverá conflitos por toda a parte, haverá citações horrendas, haverá mais pastores do que já estamos cansados, haverá mais panfletos políticos. mas os pastores, como os arrogantes, e toda a gente poderá ver o que há dentro de cada um - e não poderá corrigir, pois dentro de si mesmo sabe o que há de sujo, e que ainda segue, sem um olhar para trás, pois a sua própria ideologia que vigorará. o mundo que eu defendo é horrível, e só pode ser visto em literatura, já que faço parte, um pouco, dos artistas que vêem um mundo veemeente e utópico, à sua maneira egoísta, e o expressam por recursos sórdidos, como o uso correto das palavras dispostas em frases argumentativas. sou profeta da destruição, pois sou profeta da liberdade, e esta, cruel senhora de olhos rapinos, quando atingida por completo, por todos os poros que tangem à pele de todo (e qualquer) ser humano, se proliferará em destruição atômica, lenta, mas atômica. e isso, posso me explicar, é que tenho horror à tortura, a tortura de tudo que podem imaginar - a tortura de nos impor sistemas repugnantes, de formentar nossas mentes com idéias que não são nossas, de nos impor sentimentos que jamais nos pertenceriam, de fazer brotar vontades estranhas à nossa alma, de impedir nossos desejos, de demoralizar a corrida pelo nosso sonho sem nem darmos o primeiro passo, de nos oferecerem o pior pesadelo, forçarem a ir contra nossa ideologia interna, aceitar os preceitos arrogantes do outro, da fome, da imundície, e da limpeza exagerada quando se quer sujeira, do frio, das pancadas, das obrigações, das responsabilidades, do tempo, do cárcere, de estarmos tão cansados que nem mais nos pergutamos, a aceitação plena do que é normal, mortal, ético e racional, de nos esquecermos das perguntas, de nos privar de conhecimento e cultura, de nos privar de ócio, de dar ócio a quem estora de energia, de toda e qualquer tortura. e tudo, meudeus, tudo parece-me uma tortura, uma tentativa de me reformular inteira, desde os ossos até a alma, até meus sentimentos, que deveriam ser irracionais e conduzidos cegos pela bombeamento rápido do sangue pelo meu corpo, e que são controlados... são amordaçados. e por isso, a liberdade, a liberdade é o que mais carece este corpo jovem e já dilacerado, destas mãos que escrevem - talvez não tão bem - mas com ardor, com esperança. com esperança de que ouçam, e de que a liberdade possa ser praticada, mesmo que seja vil; pois toda a maldade que ela desencadeará, não deve ser tão grande quanto essa maldade que nos é imposta - e nem nos damos conta.