novembro 17, 2018

sobre a morte, ainda

1. estou lendo a antologia pessoal do borges; nunca tinha lido nada dele, embora sua sombra sempre me acompanhara. uma vez, mais jovem, numa feira do livro, rodei procurando pelo o aleph, rodei a internet também, e encontrei o aleph do paulo coelho. fui desistindo. tenho a mania da sorte, do acaso do encontro com os livros e borges nunca me aparecia num vitrine ou largado num sebo atolado. tampouco, ninguém me emprestava. que é que tem nesse homem? eu me perguntava, lendo sobre ele, imaginando uma precisão maravilhosa, que eu não entendia. finalmente, me emprestaram; de certa maneira, não me julgo por esperar o livro me encontrar numa encruzilhada do destino: alguns livros devem ser lidos em certos momentos da vida. isso minha mãe me disse, quando me deu o pequeno principe, leia devagar para entender, ela disse, leia de novo quando mais velha, também sobre alice no país das maravilhas, sobre o mundo de sofia. isso não me eliminou a ansiedade de ler certos livros, na verdade só a fez crescer. ter certa idade para ler certo livro me acompanhou e me fez abandonar livros grandes, por saber-me incapaz de continuar naquele tempo. já não acredito na idade, nem do tempo com que se demora nas páginas, mas existe, de forma borgiana, um tempo, algo, um destino de encontro de livros, que nos despertará para um zahir ou um aleph dentro de nós esperando para ser desbravado.
admiro muito quem presenteia com livros: ás vezes acertamos, ás vezes não. mas um presente é sempre um um bom momento para fazer o acaso mostrar seu rosto.


2. mas sobre a morte, ainda. até agora, o conto que me estupafou não foi nenhum dos quais ouvi falar, do que me contaram ao longe da vida. por isso, nunca saberei se é um conto importante ou não, mas é um que o próprio borges gostava - e isso não significa muita coisa, porque muito do que eu li no livro tinha uma reminiscência de autor tentando fazer justiça com contos que colocou seu empenho e coração e nunca receberam o prestígio equivalente de volta. o conto é o sul. de uma delicadeza que nunca deixa o leitor antever o que está em jogo: a última visão, sonho ou vida de um homem que morre. ao final, eu estava tocada. com aquela familiar, mas estranha, sensação de que nos despiu de nossa própria carcaça e com um toque leve e sereno de dedos escorregou sobre nossa carne macia, desprotegida. o corpo arrepiado por dentro, o silêncio do mundo orquestrando um estopor sereno. o pé ou a mão se contraem levemente, como que incomodados desse estado quase paranoico, contrário à sobrevivência - como se tivéssemos a beira de uma morte, o punhal no estômago, o sangue nos dedos e os olhos ao longe, alegres e finalmente sem medo. 

3. lembrou-me o capítulo da baleia de vidas secas de graciliano ramos. este, tão conciso e triste (e que provavelmente, na primeira vez que eu lera, aos dezessete anos, deixara-me naquela mesma situação: despida de mim) que poderia muito bem ser um conto isolado. no de borges, um homem com um passado e um nome que remete à ele: Dahlmann, um passado que se transfigura num sonho, num desejo de uma vida, voltar à estância do Sul que viveu e morreu o avô, que em Buenos Aires chegara de navio. no de graciliano, uma cachorra com um nome que não é seu, se não um símbolo da seca da família que a apadrinhou: baleia. seu último sonho, no entanto, não corre ao mar ou coisa que o valha, senão imagina o mundo que sempre viveu do modo como deseja: preás para caçar e fabiano, seu dono, gigante. os dois, em terceira pessoa, no seu tom impessoal e distante para, de maneiras diferentes, encontrar-se com o último desejo em vida, numa visão real que não deixa ebulir dela o que há do sonhado, do delírio ou mesmo da morte. Dahlmann, que sofre num hospital, melhora e é levado num carro, o mesmo que o trouxera ao hospital, à estação de trem onde poderá ver novamente a estância que tanto sonhou ver. o trem que o leva é um trem que corta o tempo, que chacoalha e solta fumaça para trás, para um mundo esquecido e deserto, para um mundo de homens com punhais que se matam em um duelo. Baleia, doente, sente-se caçada por Fabiano, suas pernas falham, e então vê os preás, vai para o seu paraíso. o paraíso de nenhum dos dois é feito de leitos de rio de leite e frutas num pomar: tem íntima relação com tudo o que viram, tudo o que conhecem até ali. se baleia, ao morrer, nos entrega seu sonho num movimento vertiginoso de graciliano do simples narrar de uma história para seu fluxo de consciência, borges alterna o narrar, ainda que sempre distante, com os pensamentos de Dahlmann, que segue sem suspeitar seu último sonho. quem decreta aquilo ser um sonho é borges. de um modo menos conclusivo e mais idílico, graciliano faz o mesmo.

4. o momento antes da morte. quando li o sul, então, pensei o que sofia viu antes de morrer. levando a fogo estes dois modos de encarar a morte, tenho fé de que nossa última percepção de mundo, se por obra de Deus ou da nossa mente, seria nosso mundo ideal, feito das coisas que vivemos e que estão em nossa memória, mas decoradas graciosamente com nossos desejos mais irreais, mais sedentos, íntimos. me deparo, então, com o problema posto. sofia tinha 4 anos, e são destes quatro anos que são feitos sua vida. desses quatro, dois anos ela  deitou-se em camas de hospitais, sofreu cirurgias, ficou enjoada por causa dos remédios; e também chegou em casa e brincou como qualquer outra criança. também desejou muito tudo o que as outras crianças tinham, escola e parquinhos. até agora, parece relativamente simples. mas se tenho como modelos Dahlmann, homem construído a partir de uma linhagem, que fez da sua vida uma elegia ao avô materno por gostar da terra argentina, homem símbolo de uma nação e de um certo viver e baleia, uma cachorra, que seus desejos mais complexos são simples como o amor incompreensível que sente por seu dono e pelo cheiro delicioso dos preás que gostava de caçar, mas que, sem passado e sem entendimento, é um animal vivendo no seu eterno presente. eis a questão: a criança não estará entre um e outro? como codificar a vida e o desejo de uma criança?

5. é difícil escrever a partir de uma criança, embora lembre-me agora de um conto de guimarães rosa que não me lembro o nome, o da criança vidente, mágica, que morre tragicamente. justamente, é um pouco mais fácil escrever sobre uma criança que morre acidentalmente, em que o fluxo garantido de sua vida é interrompido. no caso de sofia, que agonizou algumas semanas e viu seu corpo desfaceler pouco a pouco, o que sentia? sentia o hálito próximo da morte? sabia, exatamente, o que é a morte? baleia não sabia ao certo, a não ser a ideia instintiva da morte, a ideia mais do perigo da não existência do que a morte de um ser vivo. Dahlmann sabia como sabem os homens adultos todos, mas sua ideia de morte estava ligada aos punhais e batalhas, à aventura, ao assassinato antes da morte entre as paredes de uma prisão. outro problema que coloco aqui é como acessar o narrador de uma criança. uma criança sabe e não saber sobre tudo que nos rodeia, sabe como sabem os animais, mas um pouco mais que eles, porque a dimensão existencial da vida começa a nos penetrar desde que, imagino, aprendemos a nos comunicar. porque uma criança, como um adulto, usa para se expressar das palavras; e estas são responsáveis por criar um sentido da vida que é além do primário, faz-nos imaginar e instiga-nos a buscar símbolos, a entender uma vida através da metáfora. afinal, uma cadeira chama-se cadeira, mas a palavra cadeira por si só não quer dizer nada, se não estiver ligada à imagem de uma cadeira. a criança tem dentro dela um mundo de imagens mesclado entre imagens da morte existencial, as imagens do alcance e do submundo e as imagens do que é simples e raro, as imagens do seu presente, ainda não codificados com subterfúgios psicológicos ou filosóficos. o homem vive do passado ao futuro e o animal no eterno presente; a criança vive entre eles. ao tornar-se um homem, abandonará sem perceber as relações simples que tornam a vida fácil e surpreendente. a curiosidade do seu olhar pouco a pouco dará lugar a uma presunção de quem já viu muito e deseja ensinar ao outro. mas ela, enquanto criança, não é um cachorro. entre os seus, se esbalda em presunções e criações de mundo. minha problemática aqui é resgatar como uma criança se sente, para poder me afundar na sua última visão da vida. mas eu já não fui uma? de certo, embora, as impressões tenham se apagado pouco a pouco e sobrado alguns lances de dardos da literatura. com que olhos eu olhava o mundo, a morte? o primeiro a morrer na minha infância foi o cachorro de minha avó, benny. o segundo meu avô paterno, wilson. benny já estava doente, e como baleia, fora sacrificado - não com armas e a aventura ardilosa do sertão, tão parecida com o mundo do o sul  de borges, mas numa maca de veterinária, com uma injeção. meu avô morreu de infarto repentino, dizem, na cozinha. minha avó conta que o encontrou caído no chão com uma bacia perto. sempre imaginei que ele caíra com a parte de trás da cabeça na bacia de metal, na saída da cozinha. meu pai disse: seu avô ia andar todo dia, estava se cuidando. e também, mais tarde: seu avô fumava dois maços de parliament por dia, depois parou quando o cunhado morreu de cancer de pulmão. na minha rasa história da infância também morreu o cachorro e o homem cheio de passado. mas não me lembro da suspresa, e não me lembro de sentir angústia. fiquei triste, mas a angústia, aquilo que nos faria pensar: o que é isso? o que é a morte? parece que não me acometeu.
bem, a verdade é que um ano após meu nascimento meu tio, irmão de minha mãe, morreu. eu não me lembro dele, e por isso, não o contei como os primeiros seres que realmente tinha afeição e que morreram na minha vida. mas talvez a chave não seja a afeição, mas sim a ideia da morte. mesmo com um ano, eu devo ter sentido o que é a morte. eu devo ter sentido o luto, e também a luta dele, que morreu de aids, devo ter visto o rosto magro no fim da vida, embora tenha esquecido. seu tio te deu uma boneca linda, meu pai me disse, e você foi lá e rabiscou toda a cara da boneca. eu me lembro da boneca, mas não sei se a imaginei recortando as tantas imagens de boneca durante a minha vida ou se a vi numa foto que era criança. era uma dessas antigas, com a cara de cera, as bochecas lustrosas e dois olhos de gude com cílios espetados, a boca miúda no meio, com aquela cara de terror. os cabelos de nylon quase reais em duas chiquinhas e o vestido amarelo. não me lembro da cara rabiscada, mas a refiz no meu imaginário: as canetinhas de diversas caras obstruindo a cara da boneca. você rabiscava todas suas bonecas, disse meu pai. por quê será? que criança eu fui e que eu pensava ao riscar o mais próximo de um rosto humano, embora inumano? riscava porque o sabia falso ou justamente porque ela tentava imitar o real e era possível estragar seu rosto? riscava para tirar dela a vida suposta que enfiavam ali? riscava porque os humanos, hora ou outra, acabam por morrer e deixar a terra para sempre? 

6. o que me fez pensar, e o restante do livro do borges ajudou, nos seres que matei desde que sou gente. um periquito, um ou dois peixe beta, um ratinho de estimação. todos por inanição. não são homens adultos, nem sequer cachorros - animais mais próximos de uma condição humana aos nossos olhos. o primeiro me aterrorizou. eu insisti para a minha mãe ter um bicho e se não fosse cachorro, que fosse um periquito. com onze anos ela me disse que eu teria que alimentá-lo. claro, esqueci. como esqueci do beta e do ratinho, mais velha. uma manhã antes de ir a escola, ela anunciou: o periquito morreu. e o que você fez, perguntei assombrada? ela embrulhou num jornal e colocou no lixo. eu não sei se essa é uma memória inventada, mas lembro-me de que no meio do lixo havia um amassado em jornal. dentro estava o corpo do periquito. esta morte pareceu me definir e me impactar mais que a do cachorro, que não foi minha culpa. embora tenha conhecido intensamente o conceito de culpa e vergonha naquele instante, isso não me livrou de matar outros bichos, menores que um periquito na cadeia da afeição, da mesma maneira. mais velha, eu não senti remorso, mas lembrei do periquito. o engraçado é perceber que eu, tão inofensiva e não afeita a facas punhais e armas de fogo, eu que como mulher não tenho um passado a qual me espelhar pelo gosto do perigo e do sangue, tenha matado um bicho ou outro. todos porque, talvez, me considerava superior a eles ou que a natureza ia prover o que lhes faltava, ainda que estivessem enjaulados, presos em aquários e caixas. e que por isso, não podiam lutar pela sua sobrevivência. tinham de esperar a mão de deus, minha mão. e ela não lhes chegou. e que, sem se importar se eles tem alma ou não, não fiz disso um carma, a não ser com o periquito, quando fui criança. ter a morte nas mãos, mesmo que uma insignificante, foi infinitamente mais angustiante que ver outro morrer, pelas mãos de outro deus. meu tio morreu, talvez, de um gripe ou pneumonia, o anjo da morte comandado pelo avançado estado de fraqueza do seu corpo provocado pelo vírus hiv, um deus inventado por alguém. benny morreu de velhice e câncer, porque tinha de morrer - o deus natural que dá a vida e a morte sem se importar com que resta no meio delas. meu avô, de um infarto fulminante, o deus talvez bondoso do acaso insuspeitado. minha irmã, de um câncer destruidor alocado no cérebro - deus em todo seu acaso cínico e terrível, um deus medieval do antigo testamento que cobre a terra de água e manda um irmão matar o outro. minha tia-avó morreu de hepatite, amarela, e esquecida. minha bisa heny, morreu de demência, amarrada numa cama num asilo, depois de uma vida vibrante, o deus da decadência, o mesmo da minha tia-avó. o deus fulminante e bárbaro matou a mãe de meu padrasto, que eu gostava tanto, regina, contorcendo seu pâncreas sem motivo algum. o periquito, o rato e o peixe, porque não lhes chegou a comida que deveria chegar. agonizaram; quase todos.

7. talvez em algum outro momento, eu tenha matado um humano, um igual. feito-me deus e diabo ao mesmo tempo. não com sangue nem com um estouro de bala. mas, aos poucos, continuamente, como uma mulher que mata seu malfeitor como pode, ao longo dos anos, para se ver livre dele. além dos bichos, matei inúmeras plantas. ás vezes, eu as olho agonizando, com as folhas murchas e tristes, pedindo por água, e não coloco. um instinto terrível vive dentro de mim sobre matar o inocente, aquele que depende de mim. talvez eu tenha matado um filho. sem ser deliberadamente, apenas tocando o barco da vida e sentindo o olho sangrar toda vez que o olhasse agonizar. o que a planta, em sua mudez existencial, percebe ao morrer? mais de uma vez matei elas afogadas. a água mofou e corroeu suas raízes e eu chorei porque, daquela vez, queria fazer o bem, queria amar demais e vê-las vivas. mas eu não podia compreendê-las, suas folhas despencavam desinteressadamente. todos os dias, cuidar de minhas plantas e da minha gata é confrontar com meu eu-assassina. a assassina da inanição e dos maus tratos. é quase cômico como mora dentro de mim este tipo de assassino, de deusa: feminina, passiva-agressiva, afoita ao sangue mas afeita à palidez. quando fico desesperada, deixo minhas plantas morrerem, minha gata suja. um deus poderá ser um também um humano que em suas aflições deixa seus dependentes morrerem displicentemente? este deus não sabe como amamos os outros que aqui vivem. este deus não entende o amor, e sobretudo, não entende o medo da morte. todos dias, esta deusa se depara com sua última visão de vida. está presa num delírio sanguinolento de seu último desejo sem jamais falecer. 

8. sobre o último desejo de minha irmã, que avivou seus olhos antes de morrer pacificamente e tediosamente numa cama de hospital, algum dia escreverei. por enquanto, devo escrever sobre uma criança que morre tragicamente. entender seus mecanismos, antes de me afundar nesse poço lamacento que é fazer da própria vida ficção. da própria tristeza e história, um delírio escrito.

outubro 17, 2018

inverno no mar

termino verão no aquário de lygia agora. nos últimos capítulos, ela narra alguém que sofre a morte de outro. durante todo o livro, a morte assombrava longíqua; mas o exercício de narrar um luto recém passado, eu não lia faz tempo. o calor do momento, a véspera, como diz. não a memória, o fantasma. isso eu não fiz. ainda.
um dia quis contar a vida inteira de sofia e parei em determinado ponto. talvez tenha percebido que é impossível resgatar toda a sua história - ou todos os detalhes da minha memória antes que ela se perca completamente. eu quis também perguntar a quem tinha acontecido e montar um retrato, um mosaico, um livro - só para estar entre nós. algum tipo de alento. 
não chorei com este livro. a noite caiu feito narrado no livro, a gata preta fica do meu lado na esperança de carinho. eu sei que ela me ama. eu mais uma vez não sei lidar com seu amor. com o amor de ninguém. mas agora estou tranquila, eu sei que posso amá-la em sua medida. não é preciso se desesperar.
minhas plantas estão bem, mas todas verdes, verdes demais. não consigo cultivar flores. a roseira que era a esperança da primaveira fez cair as folhas. um botão amarelo nasce do camarão. é preciso cuidar para que ele resista.
tentarei contar essa história sem muito drama e fugir da narrativa de culpa que criei para mim mesma. há anos, essa memória da culpa persiste e me desgasta. mas eu não preciso dela. sofia não precisa dela.
no seu último mês, sofia estava bem magra, frágil e perdia as funções cerebrais pouco a pouco, falava enrolada e um dos olhos fechava, tomado pelo tumor. neste mês, eu chorei deitada no travesseiro, rezei desesperada, mas só dormia sonhando com cemitérios. só dormia pensando no seu enterro. no limite do sonho e da lucidez, o sonho parecia ou premonição ou desejo perverso. o cemitério vinha-me primeiro em negativo: como quando choramos demais, os olhos criam aqueles feixes e bolas redondas de luz que ficam piscando. e o cemitério vinha assim, como negativo.
inesperadamente, era a única imagem que me fazia descansar. que me dava paz. 
eu tentei afastá-la, pois achei que pensar assim era como pedir por sua morte. era como se eu tivesse desistido, antes dela, como se eu não fosse capaz de olhar o seu sofrimento. mas quem sofria era ela! ainda penso um pouco assim, em como fui egoísta. 
mas meu corpo preparou-se um mês para sua morte. disso, eu tenho certeza. não foi menos duro quando recebi a notícia de sua morte.
a notícia é a narrativa a qual me acostumei: no domingo, vi ela nua, magrinha, os ossos aparecendo, nana me dá banho. eu já não aguentava olhar sem os olhos querer chorar. na segunda fui pra são paulo. fui à aula de manhã e a à tarde, no cinema com uma amiga. durante todo o cinema, o celular desligado. no ônibus de volta, liguei e me deram a notícia. sofia morreu enquanto eu estava no cinema. peguei um fretado para campinas onze da noite, opção mais rápida. cheguei e já tinha passado horas de sua morte.
eu não vi sua última luz, sua última calma. eu não falei com ela. por anos, me torturei com isso. mas como foi receber sua dor?
eu chorei muito no ônibus. chorei de culpa e rezei. chorei e disse a mim mesma que eu já sabia, mas a dor dilacerava no peito. no fretado, os universitários iam rindo e vivendo sua vida, jogando baralho. eu juro, a vida continuava estúpida enquanto eu me acabava, chorava alto e queria matar eles. eu queria que eles ficassem em silêncio. por um momento. nada. tive raros momentos de silêncio desde que sua morte chegou como um terremoto. como um terremoto em terras instáveis. as pálpebras inchadas, as lágrimas ressecadas no rosto. como quando secam e deixam aquele rastro no rosto inchado. eu chorei todo o mar que se chora sozinha, sem ninguém a me confortar. quando cheguei em campinas, já estava quase seca, cansada. minha mãe, eu não sei. eu não sei quem confortou ela, mas não fui eu. nem eu, ela. o júnior eu não sei. minha família inteira, eu não sei. tudo era silêncio. quando foram me buscar era silêncio no carro. a sensação de querer apenas rodar, rodar em silêncio que raíza fala, é isso. talvez seja isso. o apartamento que morávamos tava cheio de gente. não tinha muito espaço para luto. a família inteira do júnior, cumprimentei, todos daquele jeito. não me lembro como foi abraçar minha mãe. minha mãe, mãe dela. até hoje não sei como ela sofreu. por isso quando se diz com dor, eu mal me importo. ela tinha de arrumar tudo para os parentes, onde dormir, o que comer. e aquela dor no rosto do rastro das lágrimas como um rio intermitente. eu dormi no chão, num colchão num chão. acho que me lembro dela arrumando, dela me dando um beijo de boa noite. ninguém parecia saber consolar ninguém. todo mundo precisava de conforto e não havia ninguém a dar. minha mãe, tinha ainda que arrumar tudo, as provisões. ela estava calma. ela sempre esteve calma, de certo modo. nunca a vi se desesperar, não me lembro. talvez por isso parece que passou ilesa. não. passou dolorida e calada tendo que cuidar do marido cheio de drama. meu crédito não foi perturbá-la. foi tentar cuidar da minha tristeza sozinha. e o dela? quem cuidou de você, mãe? talvez por isso se fez tão triste na morte de meu avô. porque finalmente não tinha que cuidar de ninguém. podia se charfudar na tristeza. falar da morte do outro é acabar falar de um vivo. mas falar de um vivo é tocar na sua morte. se falo coisas clichês, não me importo. dormi no chão e devo ter chorado mais. mas lembro-me de ter dormido. como uma pedra. e que o dia seguinte, tomávamos café da manhã, todas aquelas pessoas, tentando descontrair. as coisas ainda tinham o cheiro dela. o cheiro dela eu senti durante muito tempo depois. associava-o como a um leite. ora doce, ora azedo. ela cheirava a leite, embora tivesse quatro anos. muitos anos depois, andando na rua, eu sentia aquele cheiro. as coisas rosas dela. os gorrinhos e chapéus, os brinquedos rosas. fiquei com a tartaruga, guardei a lagosta. a lola, os pequenos bonecos da lola. aquele bebê laranja que fala. sofia, sofia. quais eram seus brinquedos favoritos? quase todos, eu acho. de uns cinco ou seis, todos, eu acho. aquele elefante grande, não era? a cortina verde do quarto da antiga casa, esvoaçante, meio transparente. o berço branco com a cômoda branca quando você era bebê. o caixão branco. na porta um artesanato desses de bebê escrito sofia. sofia, sofia. como era seu sorriso? assim tortinho com os dentes separados. não era. bem alto. e os olhos azuis bem céu. bem alto. os brinquedinhos miúdos, você gostava. aquele de madeira de construir casa. massinha. as bolas. as bolas grandes, não as pequenas. aquela cortina verde, por quê me lembro tão bem. a cama no meu quarto que dormia. as duas chupetas. as duas chupetas, uma na boca outra no nariz. eu não me lembro direito como reagi a sua morte. será que isso importa? estou perdoada? acho que estava anestesiada. sofia. todos foram embora de casa e no enterro foi tão pouca gente. não era enterro, cremação. era lá em são bernardo. isso eu me lembro. o carro andando lento. sofia, amava palavra encantada, xuxa. o carro na estrada e todo muito quieto. e ninguém sabia o que falar. como é que o corpo foi para lá? eu não sei, eu não sei. era um cemitério simples, desses com gramado e cruz com flores no chão. nenhum túmulo, nada, só isso. muitas flores. o céu estava azul, a grama verde, as flores de todas as cores. a sala era pequena, e no meio, o caixão branco. como só fui perceber agora como se pareciam o berço e o caixão? que horror à madeira branca. que horror, sofia. o caixãozinho, como eu tinha lido algumas vezes. e você lá dentro. de olhos fechados, pálida. e você lá dentro, a carequinha proeminente, sem o azul dos seus olhos. e a roupinha, talvez rosa, um vestido. então eu senti mais uma vez a dor. dessa eu me lembro. aguda, atravessando o peito. porque fazia alguns dias que eu não te olhava. e antes disso tinha te visto viva, nua, indo tomar banho. e agora estava ali, vestida, maquiada talvez? e fria. fria demais. toquei na sua mãozinha. eu amava tanto sua mãozinha. eu segurava sua mãozinha na hora de dormir porque pensava: eu não quero esquecer nunca como é a sua mão. eu já pensava nisso. era inevitável, eu pensava o tempo todo. um pensamento me escapava e eu não sabia controlar. a gente dormia de conchinha, você dentro de mim, com suas duas pepetas. pepetas, agora sim, me lembrei como você chamava. veio tão claro, agora. e da mãozinha, eu queria reter o calor e lembrar como eram: finas, alongadas, as unhas diferentes da minha, porque eram mais angulares, mais estreitas. e a mão parecida com a da minha mãe. sim, eu segurava e olhava pra elas e as unhas transparentes com as pelinhas soltando ao lado, e pensava: são como as mãos de minha mãe. porque minhas mãos são de meu pai. gordinhas atarracadas unhas curtas e fracas dedos pequenos. e você tinha a mão dela! a mão dela como uma criança. como segurar a mão de sua mãe criança. e ver essa mão se despedir desse calor. lembro-me da fachada do boldrini agora, com os brinquedos de animais na frente, o céu azul, o calor de campinas, as nuvens rondando brancas. toda vez que lembro de sua mão, essa imagem também vem junto. agora, sinto quase o cheiro do leite. há tanto tempo, sofia. eu ás vezes não sei me aproximar da mãe, sofi. ás vezes acho que essa história que de certa forma a gente viveu juntas, sem nunca comentar direito, uniu e distanciou a gente  de um jeito sei lá. como se estivéssemos dentro demais para nos ver direito e por isso longe. entende? como num útero. é isso que penso agora. como num útero. nunca tinha me atentado que morei no mesmo lugar que você, no quente e úmido útero da mãe. e que era um bom lugar para se viver. eu não me lembro, é claro, nem você, mas me parece agora como é confortável, como exala um calor que eu gosto tanto. o calor dos edredons. os filhos da minha mãe amam uns edredons, se quer saber. mas é mentira, minha mãe me disse um dia, faz pouco tempo. e eu não consegui sequer reagir. eu fico dizendo que amadureci e sou adulta, mas não sei dizer essas coisas ainda. não sei ser sincera e limpa como ela. ela disse, estava lembrando de como você me ajudou com a sofia. estava me lembrando de como você me ajudou com o gabriel. obrigada mari. eu fico feliz que tenha ajudado, mãe, porque ás vezes acho que fiz tão pouco. pronto! eu quis escrever sobre a vésperas de uma morte e tô aqui destrinchando a relação com a minha mãe, igual no livro. mas ela é viva. é preciso dizer algo dos vivos. ela testemunhou tudo isso. eu não sei o quanto ela tocou sofia, quando ela morreu. quanto ela conseguiu abraçar um corpo que vai se esvaziando de vida. quando eu toquei, a vida toda tinha escapulido. ás vezes me assombrava esse negócio de cremar, porque vai que a pessoa ainda tá viva. mas era tão fria, e não qualquer frio. fria mesmo, fria de um jeito que eu nunca tinha sentido antes, fria como pele de cobra de lagartixa. as unhas transparentes cruzadas. eu chorei muito, sofia, porque você finalmente se foi. porque sua mão não era aquela, quente, e meio enrolada em concha quando eu pegava no seu sono. você não estava dormindo, a morte não é sono nenhum. porque seu sono era cheio dessas coisas que são vida. a mão em concha os dedos relaxados. sabem? eu chorei e a dor era muita. e depois, minha mãe me deu para ler um livrinho, onde contava a história de um passarinho que voava. não houve pregação, nem nada pesado, nem rendenção católica, e tocava palavra - fugiu me o nome da banda. eu não lembro como era o poema, mas era algo de um passarinho. passarinho, como gabs ama. por quê será que a reinventamos passarinho? como quando jogamos suas cinzas no mar e uma gaivota nos acompanhou e minha mãe e junior disseram, é sofia... eu também acreditei que era ela, naquele momento. eu precisava, porque doía, doía. a cinza voando manchando o mar azul esverdeado. seu olho, sofia. precisamente tudo isso. e seu olho. eu cheguei a desconfiar daquela cor desde que você nasceu: porque era poético demais, sofia. é céu, é mar. que ódio. e azul eu digo que amo. sinto obsessão pela cor. eu mal percebo, mas. também não tem que se justificar tudo pela psicologia, mas, quando colocada assim em linha. passarinho, então. porque voam? e agora veio-me a lembrança de que desenvolvi esse terrível medo de altura. como se eu fosse morrer. será que não sei morrer, sofia? quero dizer, não saberia criar asas, que nem você? que criei horror à morte, sofia? o poema do passarinho e a música infantil não diminuíram a dor. quando o caixãozinho branco subiu meu coração pulou da boca. que desespero. eu me lembro exatamente: que desespero. que vontade de pedir que descessem de novo, que deixassem aqui, que não levassem, que eu ficasse abraçada com ela, que ela poderia estar viva, que iam cremar ela viva, como sabiam, não tinham casos? por favor. eu nunca mais quis ver isso, e vi o do meu avô e de novo senti desespero. que coisa idiota o caixão subir!!!! que coisa mais imbecil do mundo. deixa lá e a gente vai saindo, não adianta? não adianta? eu não me lembro como foi voltar. mas deve ter sido lento, silencioso, cheio de dor. eu não me lembro como foi viver depois. lembro-me que viajamos e a vida retomava seu curso interrompido por acesso de fúria e choro do junior. nós rimos bastante naquela viagem. mas era pra ter sido feita com ela. e não em sua homenagem. durante toda ela, a urna nos acompanhou. eu nem sabia, mas nos acompanhou porque só no final a gente soltou ela, junto com as sempre-viva. as sempre viva, quando encontrar umas vou comrpar. guardei umas florezinhas dentro de um colar com um saquinho que enfiei na minha cabeça que não ia tirar do pescoço para me lembrar para sempre, como um livro a moda antiga, sim, óbvio, eu mal aguento usar colar um dia. então eu fiz a tatuagem. eu escolhi seu desenho e fiz e fiz também porque eu amava seu traço, viu? eu amava que as pessoas eram assim sempre tão gordinhas. tão parecidas comigo, diferentes de você. e as pessoas acham que é um fantasminha. ai sofia, não. era só o jeito que você desenhava viu? nada de premonição sinistra, coisa idiota, tá? eu me lembro como desenhou uma vez essas pessoas de preto e vermelho e pintou bem forte. eu tive medo do seu desenho sofia. porque entendi por ele que você sofria. sofria de não levar uma vida normal. uma vida de criança normal. eu peço desculpas por isso, mesmo que não seja minha culpa, tudo bem? eu espero que sua estadia aqui tenha sido boa. que a companhia tenha sido boa. que se lembre de mim com carinho. é tão difícil não virar espírita quando a gente tá nesses momentos. já já eu viro a cínica racional. não importa. qualquer coisa pra confortar. a dor que me aflinge se esplaha por toda a caixa toráxica, como se envolvesse meu coração e os ossos que o protegem, e assim apertando-se tudo, como se os ossos fossem esmagar o coração, é uma dor funda, do centro do peito e também dos lados, sufocante. essa dor que eu sinto agora eu senti tantas vezes tão pior, sofia. é como se me apertasse tanto que o ar tem de se comprimir para passar e o pescoço fica teso e o ar não vem e o coração dói dói mesmo. apertando-o até que não sobre nada, nadinha de mim. mas eu tenho um corpo fora de mim e uma tatuagem do meu lado esquerdo e a dor vai se diluindo pras outras partes, vai se dissolvendo pelas células. é a única forma de viver, sofia, espalhar. a gata pula bem aqui agora. nem tudo é coincidência e poesia e eu sou uma tutora um pouco má e distraída. mas arrumo esses novos problemas pra esquecer da memória antiga e dolorosa. da minha culpa. e de tudo mais.
foi dia primeiro de junho, e não era calor como no livro. era frio. mas não me lembro de sentir frio. e depois quando viajamos era nordeste e era sempre calor. mas o céu estava claro e azul como é o céu de inverno. 


outubro 15, 2018

antes que a vida se torne ordinaria

antes que a vida se torne ordinária demais.
o lugar é seco como uma cidade de um filme de faroeste. as casas são baixas e tudo é baixo para encontrar lá longe a cordilheira e mais próximo, vigilante, o vulcão. tudo é pó e poeira e fica-se com a roupa toda suja em dois minutos. amanhece frio e lá pelo meio dia o calor é insuportável e lá pelas seis bate o vento frio novamente. o céu anoitece já estrelado e o frio dá as caras. 
primeiro, vimos o céu num lugar sem luz. a van que nos levava ia titubeando no chão ruim, do lado passava o mato e casas no meio do mato, quem vive aqui? sem a luz do poste duas ou três manchas da via láctea nos sorriem tímidas. as estrelas continuam altas, pequenas, mas brilham sem lua. 
levadas de manhã por entre montes de pedras, lava embrutecida de vulcão e uma vegetação rasteira verde amarelada. tudo é marrom, amarelo, verde. num morro, guanacos comem da planta, tem o corpo marrom e a cara preta. o vento zune nos ouvidos. a todo o momento, o vento zunia, ora grosso nos ouvido, ora assobiando. nas pedras, os desenhos dos antigos povos atacamenhos. lhamas, pumas, e um macaco, um macaco-deus com riscos do lado. lhamas grávidas de lhaminhas dentro e etc. a rica rica cresce do solo, suculentas gordinhas de galhos duros e espinhosos. a montanha de pedra de lava se ergue em verde, branco de sal, marrom e um leve roxo do cobalto. trouxe uma pedra verde e uma da lua, como um cristal. os picos pontudos apontam pro céu sempre azul demais, sem nuvens. as encostas são cheias das pedras que vão se juntando umas às outras.
a cidade continua baixa e empoeirada.
na madrugada, a van nos busca. uma lua minguante bem sobre o horizonte, clara no horizonte donde nasce uma luz fraca e opaca, as estrelas ainda sorriem de luz branca. os contornos das montanhas são riscos duros no céu escuro. adormeço.
das entranhas da terra, saem as fumarolas brancas, e de algumas um jato intenso com água fervendo. os geiseres vem ao amanhecer frio e se despedem no calor do dia. no campo das fumaças, uma construção abandonada, um projeto de retirar energia daquilo. dentro do solo correm os rios de lava, fervendo. a água bule dentro da terra, mostra o magma demoníaco e com cheiro de enxofre de que é feita. um lago de águas termais - dizem - um lago de águas quentes e sulforosas saindo da terra onde os gringos se banham felizes até demais. não nos banhamos. o frio continuava cruel às nove. na volta, um vado, um pântano. as águas baixas por entre os pedaços de verde musgo donde os patos andinos, os gansos andinos e não mais que tipo de pássaro mergulham a cabeça na água e comem não sei o quê. o pássaro andino de olhos assustados e cara preta como um pinguim, o corpo branco. os patos de bico azul e os cines todo em negro elegantes se coçam. do lado do pântano, as cordilheiras em neve e as secas, o vulcão a assobiar. num pueblo de resistência ou turismo, as antigas casas de pedra e as novas, as casas baixas, a carne de lhama no espeto.
no sol quente, as lagunas escondidas continua fazendo frio por aqui tudo é planície. o vento não se escora em nada, o deserto é seco e nem a vegetação amarelada existe, só pedra. perto das lagunas o sal vai aparecendo. onde tudo uma vez houve mar, agora há crostas de sal em pedra que rasgam a pele. as lagoas não se vêem de longe, tem de chegar perto, andando pelo caminho do sal. são de um azul claro cristalino. a primeira azul escuro e as outras azuis tão claro quanto uma piscina. se abrem como buracos eternos no chão da onde a água vem do fundo, misturada com sal. mais sal que água. entramos no frio e no vento da lagoa de sal, para boiar. cheio de brasileiros falando e gente com medo, inclusive a gente. demorei para parar de boiar propositadamente, é difícil confiar no sal. daí quando deitei a cabeça na água vi aquele céu azul rachado de nuvenzinhas rarefeitas brancas e as pontas das cordilheiras lá longe e já era hora de sair. minha cara tava toda branca. a água evapora e sobra tiras de sal grosso por toda a pele. 
perdemos o óculos da dira e aparada num mirante de umas nuvens cor de chumbo se avolumando no céu não foi boa. tudo estava seco e estranho, sem vida. 
cedo nos levantamos para encarar com temor 4 dias de uyuni. a fronteira do chile com a bolívia é só quarenta minutos chegando perto do vulcão que antes só vigiava. consegui não dormir até ver ele de perto, as nuvens rondando o gigante, a terra escura se encurvando para o alto sem pico, uma cratera. quando acordei, havia neve na fronteira. tudo estava branco e demasiadamente frio. nunca tínhamos visto neve, mas o frio era muito para ir lá fora. a fronteira não é nada, um pedaço de terra extenso entre o vulcão e o nada aberto da bolívia. o chile tem suas cordilheiras dos lados, mas na bolívia tudo é mais extenso, um horizonte de terra. dois latões de lixo esmaltados de azul e amarelo, o pássaro de cara preta que chamamos de chuu ali esvoaçando e pousando, as 4x4 esperando os turistas com as mochilas coloridas. seguimos com maxx o guia boliviano de pele queimada de sol, dente de ouro e boné de lado. 
primeiro a lagoa branca, enorme. ao seu lado as montanhas refletem-se. branca porque rasa e cheia de sal. um depósito de água leitosa no centro da terra, entre os morros. sem nenhum animal, apenas água terra e mineral. sem nada que perturba um infinita paz que é feita de violência. 
depois, a lagoa verde, mais escura.
e finalmente os geiseres de la manãna, na cratera de um vulcão ativado. as fumaças brancas saíam de sulcos fundos da terra daonde um água espessa, ora vermelha como lava, ora amarela boiavam. a terra dentro destes buracos fica toda enrodilhada, como pequenos círculos, como uma pele queimada. a terra vai sendo queimada pela brutalidade da água quente. o cheiro de enxofre é um insulto, as fumaças nos atravessam e a terra parece ora oca ora firme. de dentro da terra sopram os vapores solenes. como uma música que precisa ser cantada.
nas águas termais da bolívia entramos, quente, dando a vista a um pântano com aquele mesmo musgo amarelado e uns flamingos longíquos. 
na laguna colorada, dezessete mil quilômetros quadrados de uma lagoa ora transparente como a água deve ser ora vermelha. roja. milhares de flamingos rosas se alimentam dos crustáceos que comem bactérias cheias de betocaroteno e logo se vê os flamingos que mais comem mais rosas, quase vermelhos e outros com manchas ainda incipientes no manto branco. os flamingos tem as pernas finas e dobram para trás, ficam em grupo, como se conversassem, mas apenas enfiam os bicos na terra, se coçam ou dormem em pé. milhares de flamingos. na água transparente sua penugem branca e rosa se reflete e os flamingos se duplicam sem fronteiras, tornando-se quase uma miragem, um bicho que não é ele mesmo. uma imagem. eles não se importam se são tal imagem tão devastadora de se olhar. em que a beleza foge aos olhos e estes tentam se dar conta de tudo que jamais virão isso novamente, ao menos que voltem. mas tem-se a impressão que é único e vai terminar, ainda que estejam ali há milhares de anos milhares se alimentando. terminará para nós.
na estrada a paisagem não é menos exuberante, pedras, e o verde amarelo, e as montanhas, que se abrem nu solavanco mostrando sua face branca e marrom. a montanha se ajusta ao olhar da perspectiva movendo-se e mudando de forma conforme nosso olhar de automóvel olha. uma sombra escura pode ser de um peixe ou uma cratera, não se sabe. a vicunha toda marrom come da folha amarela verde. nada daquilo é assim se testemunhado por olhos em movimento. a fenomenologia existe mais no deserto do que em qualquer outra parte.
o pueblo villa del mar não dá pro mar. entre um pântano com seus musgos e água rasa donde a lhama bebe e come e uma formação rochosa empilhada para cima, duas ruas de casinhas baixas e simples. o céu é frio e estrelado, bonito se deixado a se olhar. o quarto é grande, mas debaixo de cinco cobertores e um saco de dormir sinto-me sem ar. a altitude faz e o calor forçado no frio falta o ar. as bolivianas que atendem só balançam a cabeça ou nem isso, desviam os olhos, saem rápido antes que possamos decorar suas feições. cholas com suas armações na saia enorme, tranças compridas e bem feitas com pedaços de tecido entre o cabelo, meias grossas de lã laranjas e sandálias mal nos olham. nós é que as olhamos, como se fossem flamingos. elas, também, não se importam em ser olhadas e continuam a viver num mundo onde há apenas lhamas, terra, rocha e campos de quinua. céu estrelado e turistas, de toda parte do mundo, vindo testemunhar a beleza que é rotina. ou a miséria que aos olhos dos outros, é bonita. será miséria sua vida? ou é esse adjetivo que damos comparando ao conforto de nossas vidas? ninguém está imune de despejar coisas estúpidas para cima deles. seja a beleza que é estonteante, a miséria que deixa triste. nada escapa e tudo continua sendo pó.
dira deu um mal jeito e o segundo dia se fez mais triste.
formações rochosas se intercalam: na itália perdida, uma cidade de pedra esculpida pelo mar e pelo vento. lhamas pastam em paz. três lagoas formam uma só refletindo as pedras marrons. são de lava. a pedra é um processo inerte do planeta: se forma, se deforma, ali está. é bonita, mas é bruta. tem de se admirar por sua brutalidade por sua capacidade de nos aguentar escalando-a para ver o horizonte de pedras e montanhas. o ser humano põe os olhos em tudo e quer crê que viu tudo isso a partir deles, quer crê que sentiu a beleza apertar-lhe os bagos, os ânimos, as veias.
o ar que se respira é pouco, mas frio, percorre o corpo. a sede sempre é tanta e a água mal encosta na boca pede mais. os lábios se racham de calor e frio e a pele craquela pouco a pouco.
não sei por quê queria ver tudo isso e agora que escrevo perde ainda mais o sentido. quis sentir conexão com sua namorada, com a terra? quis ver.
pouco a pouco vamos nos aproximando do deserto de sal. 
tenho medo de altura e escalei pouco. a nível do chão, porém, considero que vi o que queria ver, patos de bico azul e a água parada refletindo o céu de pedra. as pernas finas e o bico encurvado do flamingo a cara de algodão da lhama assustada a folha grossa amarelada. 
quis ver o que eu não vi antes, qualquer coisa que fosse, vida, a vida mais vívida porque próxima da morte. num deserto onde tudo aponta para a morte, animais como a biscate coelhinho canguru se esconde na sombra da pedra vivem. os indígenas viveram e vivem. na montanha vê-se as linhas que são muros de pedra que dividiam as casas dos povos pré incas. os povos viviam em encostas, meio inclinados, bem divididos, donde a água do pântano só lá embaixo e em cima só o sol que tortura. muito longe do mar onde já fora mar. então o ar tem algo de mar: o sal. o vento continua sua sinfonia desde o começo do mundo. das lhamas e alpacas fazem suas roupas quentes e elas mesmas precisam disso tudo. como deus é bom e darwin estava correto, como darwvin é bom e deus não existe, como darwin nunca existiu e deus dorme debaixo da pedra. o planeta é um mistério infindável, do magma vaporoso até o céu escuro de estrelas. quis vir para testemunhar ainda jovem a profunda velhice e soturnice da terra, os rasgos e as rusgas de sua face, seus olhos fechados de noite contrariados. o que é implacável, insólito, instável, que expulsa o homem da terra que continua fincando com suas sandálias de couro e mais de lã tranças negras debulhando no chão. em uma paisagem onde tudo paira eterno e imutável sabe-se deformado e em constante mudança, terra erodida, força da água nas pedras, vento que esculpe, vulcão cospe, tectônicas que fazem tremer e abrem falhas na terra. tudo lento mas visível como se rápido, como se víssemos de outra constelação o acelerar do tempo da terra. tudo visível mas tão sólido quanto uma cordilheira como se não fosse possível pensar que antes ali não havia nada. mas agora ela existe gigante e bruta e arregaça os dentes brancos a todo o momento como que querendo nos engolir como se dissesse que sempre esteve ali e sempre estará. tudo na natureza de um egoísmo pungente, que parece se maravilhar consigo mesmo, assassinando seu rosto em múltiplas lascas que voam para quilômetros distante. 
chegamos a um pueblo onde um hostal de sal nos esperava, os tijolos de sal com cimento do lado e o chão de um sal maior que o grosso titurado. dava para frente do deserto longíquo onde não se via nada além do branco. lá longe umas luzes assinalavam uma usina tecnológica de extração de lítio. o lítio da minha pilha que escrevo nesse teclado no meio daquele sal todo e eu nem tchum. reto e infinito, quando a noite caiu em seu manto habitual de estrelas o céu ainda refletia a luz que brotava como magia do horizonte. 
acordamos ainda no escuro e subimos uma isla no meio do deserto de sal, um vulcão feito de rochas do fundo do mar, que ainda mostrava os corais enbranquecidos e envelhecidos pelo tempo e pela poeira. cactos de cinco metros grossos cheios de espinhos por toda a parte. o sol nasceu lá do final do horizonte onde o teto branco reto e infinito de alguma maneira parece terminar. e iluminou todo o branco deixando rastro de luz e um céu azul. 
no meio do deserto nada se vê. a não ser longe as montanhas refletidas pelo branco arredondando-se onde tudo, aqui, não tem fim. não tem fim o horizonte do sal, como é o mar quando o olhamos da praia, não tem forma as montanhas que se refletem em si mesmas e parecem boiar, miragens. tudo é branco e o sol tudo lava, cegando nossos olhos escondidos por óculos de sol. nos divertimos tirando aquelas fotos. 
tudo aqui um dia fora mar e agora o sal em quatro ou oito camadas grossas se sustenta em cima de água. buracos se abrem no sal pela pressão da água e por ela escapa a água com jeito de congelada e os cristais de sal. morte. lembra-se da morte, do que há depois dela, talvez. um nada branco congelado, não leitoso, não confortável. senta-se no sal e fica-se branco e gelado e a pele queima de sol. beija o branco.
formam-se no chão de sal como que octângulos deformados. craquelados, parecendo ceder á água sem nunca ceder, firme e frágil em sua essência.
sexual.
depois disso não havia quase mais nada para ver além de trens velhos, cidades de faroeste, uma simpática boliviana perguntando se gostamos. este é um pueblo muy chico. a linha do trem até antofogasta no meio da poeira.
surreal e selvagem.






julho 30, 2018

os homens inscrevem a política no meu corpo

1. os homens inscrevem a política no meu corpo. foi o que eu pensei quando ele perguntou, pela segunda vez, o que eu achava de tal candidato. houve um tempo em que eu tinha alguma certeza quanto às minhas escolhas políticas, em que eu sabia exatamente de qual espectro pertencia. mas tudo isso foi esfumaçado, e não só em mim. minha falta de certeza coincide com o buraco político no qual o brasil entrou (buraco mesmo, não abismo, talvez vala, mas buraco, coisa que cede na planície da terra, não gruta, coisa que se faz por alguém, talvez, mas não se sabe quem, pelo desgaste, das intempéries e das rodas do carro e o asfalto mal colocado, da terra historicamente porosa, buraco, enfim, é a palavra exata, ainda que pouco poética), e também, com a minha saída da universidade onde minha política se fazia numa assembleia caótica do movimento estudantil, num ato a qual nem mesmo concordava com tudo. sempre temi ser, e mesmo assim, sempre fui a massa, disputada pelos lados, pelos berros, das entidades. minhas formulações, no entanto, eram cheia de dúvidas. falei e fui enfática e tenho a mínima ideia do que defendia. em casa, vivi à sombra das opinões políticas de minha querida tia, de esquerda, e vi minha mãe, que também era, mudar abruptamente de lado, junto de meu padrasto. meu pai, por outro lado, sempre rosnou tudo aquilo que eu sou contra; não exatamente de direita, pois tal formulação pouco importa para ele, mas desumano, sobretudo porque indignado com as tragédias da sua vida - como os bandidos que ameaçam sua segurança, acreditando então em punição e higienização (ou seja, cadeia e morte). há imenso prazer em ser de oposição; tendo este pai, ao menos, eu sempre soube o que era contra - embora, se me perdesse nas contradições da sua fala, não saberia colocá-lo em nenhum estereótipo pronto. me cansei também, do lugar do berro e da indignação, da política juvenil. se me esforço para pensar, diante de perguntas de tais natureza "em quem você vai votar?" e vejo onde é que me enfiei (escuro, mofado, úmido, grotesco, o buraco), penso em construir alguma solução de novo - qualquer coisa que eu possa ter fé. nada. repentinamente, parece-me impossível solucionar qualquer coisa, ou mesmo, formular uma proposta pragmática que, errando, chega-se a algum lugar melhor que este. então penso, tímida, "era melhor você fazer algo, mariana, não precisa querer acreditar na política institucional, mas algo, qualquer coisa. ler uns livros, ir num ato que seja, procurar o conselho do seu bairro." não vou mais nem nos atos que defendem bandeiras que acredito piamente, como a legalização do aborto ou da maconha, não fui nem na marcha das mulheres lésbicas e bis, mesmo sendo uma. escolhi inconscientemente uma vida política estéril, com um estranho formigamento interno que sussurra: há coisas além. a arte, a crítica substancial da vida, o entendimento histórico que prefere fabular do que berrar, estar nos meios, permitir-se permanecer em dúvida. 
2. indo à flip comecei a ler um livro de ensaios da virginia wolf, o valor do riso e outros ensaios, em que na apresentação o autor discorre sobre as formas reflexivas, as pausas, o texto cheio de perguntas ao leitor, travessões e pontos e vírgulas, com que virginia escreve seus ensaios. e logo no primeiro parágrafo explana, a partir do ensaio da própria, mulheres e ficção, virginia assim escrevia a fim de reinventar a linguagem escrita dos homens, com suas frases pesadas e pomposas, ou seja construídas em cima da certeza, para uma escrita feminina, uma conversa derramada em papel. em que seus ensaios são produzidos em cima do "indício de que os mundos estão em mutação violenta; de que toda verdade é provisória, pois as possibilidades de ser são infinitas". legal. eu, leitora feminina, projetada nas ânsias de virginia apresentada desse modo, senti-me acolhida feito deitar-se numa cama já quente pelo calor do sol. na própria flip, a homenageada hilda hilst teve um tratamento um pouco semelhante quando se dedicaram a falar de sua política. numa mesa fora da programação principal, falando de seu teatro feio em 68 - o país pegando fogo, então - assinalaram-o completamente político e contra as autoridades, ainda que hermético, difícil, construído por meio das alegorias, rescendendo a becket. fiquei com a impressão de que, embora hilda nos fosse pintada feito louca, corajosa e excêntrica (assim, como virginia também é, autoritária e quase mimada), no campo da linguagem e da política as mulheres escolhem os meios. ficam com as dúvidas, com a amplidão, abrem-se aos horizontes, permitem-se ora dizer uma coisa e depois tropeçar noutra. nas mulheres, admite-se o perambular. mas também, uma vez lendo sobre a vida de walter benjamin me deparei com dois fatos inusitados quanto à sua praxis, o primeiro: a militância lhe fora introduzida por uma namorada, membro do partido comunista, e depois, ele tendo largado essa militância ativa, para poder escrever. há uma lista evidentemente enorme de escritores que saíram da militância partidária ou que não se adaptaram a coletivos políticos ou que foram perseguidos pelos próprios partidos que lutaram para eleger, como lukács, camus, marguerite duras. esta última, na edição da cahiers du cinema dedicada à ela, intitulada os olhos verdes, faz dois textos de aborrecimento com a política, um sobre um colóquio de escritores que tentam escrever uma carta, espécie de manifesto, e outro sobre a impossibilidade de um escritor de se manter fiel à um partido. para duras, quando um escritor milita no partido, ele perde sua liberdade e não pode mais escrever. só o que pode escrever é o que é estrito pelo partido, e como bem sabemos, partidos são pragmáticos o bastante para aparar todas as arestas, travessões, parenteses e reticências. um escritor, para duras, deve ser, primeiramente, livre.
3. sob esse pressuposto, vejo-me embasbacada diante das tentativas das pessoas de desmoralizar ou mesmo de desculpar autores por suas escolhas políticas. desde exemplos amargos como o apoio de borges à pinochet (e borges é um gigante da literatura, descansa no seu firmamento ás vezes acometido por fedores de peido quando alguém relembra essa característica de sua vida) e, evidentemente mais leve mas não tanto menos constrangedor, a recusa de escritoras como hilda ou adélia prado de serem chamadas de feministas. para hilda na flip, ovacionada, retratada através de anedotas feito pinceladas certeiras que compõe um mito sólido e venerável, e, evidentemente, mortíssima e por isso calada diante de novas perguntas ávidas, desculparam-lhe. disseram "há que se entender o contexto, o feminismo dos anos noventa." e depois "hilda é uma escritora sem rótulo, sem caixinha. vocês não conseguirão defini-la, colocá-la numa caixa." já adélia, vivíssima, não foram ainda capaz de perdoar o inimaginável crime de não se considerar feminista. a necessidade do perdão que as pessoas tem para com estes "velhos", nascidos em outras gerações, coloca a nós, leitores contemporâneos, sabedores da terra e do céu das opressões, superiores aos escritores. deixe o escritores e sua arte, parecem dizer. são bonitas e grandes, as coisas que escrevem. colocando-os feito deuses no olimpo, acabamos por perdoar suas fraquezas ou maldades, justificando-as, num processo engraçado de concomitante sensação de superioridade e inferioridade. é impossível olhar nos olhos de um poeta e ver um igual ou nos é impossível admitir que as fraquezas deles são aquelas a quais estamos também vulneráveis, sempre a um passo curto de encontrar dentro de nós, o mal? para que lemos, então?
4. bem, a cama quente pelo sol da forma reflexiva e cheia de dúvidas que virginia escreve a qual me deitei, já não me parece tão gostosa assim. por que é que sempre dizem coisas do tipo das mulheres; mesmo das mais porretas; se os homens, quase todos eles, tem uma conduta de vida semelhante à elas? será a linguagem usada por um e outro? por que é será que eu mal consigo exprimir um pensamento se não for em forma de pergunta, como esse parágrafo inteiro? e, no entanto, esta é a única posição que me cabe, porque sim, virginia, não há verdades, ou se há, elas mudam velozmente, e temos sempre de nos mover para captar seus anseios - seus olhos, de relance, que seja - e sim, duras, não é possível imaginar mundos, se enlamear da sujeira e da beleza deles, se estivermos ligadas a um mundo tão correto e quadrado quanto o político. 
5. mas os homens inscreveram a política no meu corpo. como sempre fui predisposta a ouvir e conversar, a ponderar, como nunca demonstrei que estivesse aferrada à alguma posição política (a não ser aquela enorme guarda-chuva a qual as pessoas designam esquerda), acabei sempre sendo alvo das conversas políticas dos meus amigos homens. não é como se eles falassem e falassem e eu estivesse calada o tempo todo - no fim, não tive amigos homens tão estúpidos assim - mas eles querem saber minha opinião. este fato sempre me intrigou, eu não sei se é porque visto minha própria pele, mas desde adolescente tenho a impressão que homens me procuravam para conversar, diferente de como faziam com minhas amigas. ainda hoje, estranhamente, sinto isso às vezes. eu não sei dizer se inspiro um interesse sexual insípido, bem pouco, mas o bastante para eles quererem iniciar uma conversa e não sei se é a forma com que respondo, sempre tentando ouvir e parecer honesta e humilde numa conversa, que eles continuam. nem todas as vezes é sobre política, simplesmente é sobre os assuntos que rondam a cabeça deles, aquilo que lhes apetece discutir e discorrer. eu estou longe de ser uma enciclopedia e ás vezes acabo tendo de pensar em coisas que nunca sequer fui atrás para tentar emitir opiniões válidas, inteligentes ou ao menos fazer as perguntas corretas. esse mecanismo durou tanto tempo que, nos últimos anos, não precisavam nem se dirigir diretamente a mim, mas eu comecei a ficar encantada com este modo de falar: há pesquisa em forma de dados, citações, fontes, opiniões fortes ditas de maneira doce e mesmices faladas de forma engajada, há um sibilar que não possui na minha fala e por isso me deixa estupefata. antigamente, essas ditas conversas, esse modo de falar, guiava meu prazer sexual - e só agora consigo visualizar isso. hoje, no entanto, me relaciono com uma mulher há um bom tempo e este interesse que os homens vêem em mim e que acabo respondendo, tornou-se uma curiosidade, algo meramente intelectual. as conversas que travo com minha namorada vão desde essas formulações indecisas, filosóficas, quase nunca um debate acalorado, até uma irritação exausta que nos resumimos a mandar tudo pro pau no cu. nessas e sem querer, eu enfiei o pau no cu da política do brasil, e da minha própria.
6. é curioso que o autor da apresentação da edição brasileira do livro de virginia trata esse modo de linguagem, reformulando, perguntando e refletindo cada vez que emite alguma máxima trata esse fator com carinho e admiração. primeiro, deve se tratar por ser virginia, outra gigante que tem sonhos perturbadores no céu, depois, imagino, a algum interesse editorial. com a recente ascenção da discussão feminista e de gênero nos meios culturais, no resgate das obras empreendidas por mulheres de todas as área e do interesse estratégico em lê-las, estando em projetos práticos como o leia mulheres e editoras voltadas a publicar somente autoras, parece bom tratar com carinho esta linguagem particular e denominá-la, enfim, como feminina ou feminista. há pouco tempo, e mesmo dentro da minha cabeça, essa minha característica de ouvir e não ter opiniões fortes me pareceu uma volutabilidade, remetendo à uma certa submissão das mulheres, sendo nosso pensamento muito mais volúvel ou moldável do que aquele proferido pelos homens. e esta característica sempre tivera tons obviamente negativos, gerando desconfiança nas mulheres que ocupam alguma posição de poder. em a síndrome da cinderela, livro dos anos 80 que considero controverso, a autora luta especificamente contra essa fala insegura, cheia de rodeios das mulheres, que denotam insegurança, e somatizam um certo pânico em ocupar uma posição de chefia; exemplificando com casos de mulheres com cargos poderosos que acabam recuando, mudando de área ou desejando casar-se para retornar a uma vida tranquila, sem ter de tomar decisões ou grandes sobressaltos. inúmeras vezes eu li em textos feministas que o modo político das mulheres difere dos homens justamente por sua capacidade de ouvir e entender; e por isso seriam mais aptas e melhores na política. ou no cinema. no livro feminismo y cinema, por exemplo, a autora cita textos dos anos setenta e oitenta de coletivos de cineastas feministas que comparam a linguagem masculina ao falo - reta, direcionada a um só objetivo, sem deixar-se permear pelas contradições - e por isso fariam um cinema pobre. e a linguagem feminina seria então como uma vulva - redonda, que acolhe as inúmeras possibilidades sem descartá-las, fazendo um cinema muito mais rico, pois contraditório e vivo. todas essas explicacões que buscam aliar o biológico (a forma do órgão reprodutor) a linguagem me parecem obscuras, obtusas e evidentemente perigosas - cair novamente nas diferenças entre homem e mulher é mais fácil que tropeçarmos numa rua esburacada. 
7. mas não é óbvio que todos os escritores que valem a pena e mais fortemente aqueles que se consideravam militantes mudaram inúmeras vezes a forma do seu pensamento, buscando sempre a liberdade da humanidade? não são esses que estão retratados no corredor da história como os grandes contribuintes para o pensamento? é realmente válido nos determos sobre as diferenças de linguagem entre homens e mulheres? 
8. os homens disputam a política no meu corpo. quando eu os ouço falar, de maneira correta, explicativa e cuidadosa, sinto como se eu fosse um território a ser disputado. mas o que tenho eu de tão importante assim para ser disputada? acham eles imprescindível que eu me aproxime mais do pensamento e da ideologia que defendem? no fim, sou eu mesma, perdida no escuro deste buraco aonde me enfiei por escolha própria, preservando minha liberdade individual (e nesse mote, acirradamente feminista e política), que me incomodo com o fato de não ter nada a ser defendido a não ser um conceito básico de liberdade pelo outro, de um bem-estar comum e da busca de um senso de comunidade que nos faça ainda mais sensíveis, que construa com mais maestria nossa própria subjetividade. nos últimos anos, fui lentamente me afastando de assuntos como qual a estratégia política para diminuir o desemprego, ou a revolução comunista, a interferência ruidosa do Estado nas nossas vidas para me dedicar a temas como o prazer e a finitude, o desejo e a morte, o sentimento pungente da autodestruição e da autosalvação. o Estado em absoluto não me interessa, e pensava me diferenciar das pessoas que gritam todos os políticos são corruptos! a política não presta para nada! mas no fim, tenho mesmo algum projeto que me diferencie deles? ou estou mergulhada nessa mesma indiferença, buscando explicações concisas como um niilismo em relação à vida pública, um derrotismo diante das inúmeras pessoas vulneráveis - os mendigos, os pobres, os viciados em crack, as travestis, as mulheres morrendo em salas de aborto clandestino, os negros encarcerados sem julgamento - e as execuções trágicas que tem cor, gênero e sexualidade. a sensação que diante de tanta informação e de tanta dor resta somente um estafamento, uma incapacidade de me surpreender e sentir. as lágrimas que deveriam verter dos meus olhos se transformam numa incômoda dor na nuca que nunca passa. tornei-me pouco a pouco o oposto do meu desejo de mundo, aquela sensibilidade provocada pelo senso de comunidade, com o pensamento dormente e a ação interrompida. levo uma vida confortável onde é possível ser apática às dores e aos problemas do mundo. não os esqueço, evidentemente, mas não os disputo. enquanto mulher, mais uma vez, sou disputada e não disputo.
9. é importante pensar, então, nas mulheres que estão na política e que por isso, exige-se delas aquela linguagem certeira, cheia de dados e fontes, inteligente, aguçada, coerente e firme. e pensa-se numa característica evidentemente masculina que emana delas; e se não percebemos isso, acabamos por massacrá-las. manuela e marina não são levadas a sério. os discursos confusos e obtusos de dilma, uma mulher que trazia em si o evidente masculino, enroscaram-se no seu pescoço levando-a a um enforcamento. lula disse que dilma é teimosa e inapta. no entanto, poucas pessoas refutaram-no. as críticas, que endosso, a esse discurso giraram em torno de lula se eximir e dissociar sua figura com a de dilma, alçando seus vôos eleitoreiros, mantendo intacta sua figura de gênio e mito. mas é ainda com resistência que vejo como saída escolher uma ideologia e um partido que me apeteça e panfletar firmemente. antes, prefiro analisar a situação à luz fria de que todos os seres humanos tropeçam, mudam de opinião, encontram-se com suas sombras e por mais que discursem, acabam por praticar pouco em sua comunidade. é preferível que os discursos sejam cheios de dúvidas, suposições e contradições, não importando a qual gênero pertence esta linguagem, para assim refletir com exatidão as ondas que embalam o pensamento e a história humana. minha política, pouco pragmática, vai de encontro a este estado onde será possível e não-condenável o ouvir paciente, a volubilidade, e a formulação de perguntas antes das respostas. infelizmente, eu não sei se isso serve à economia.




junho 15, 2018

receita de bolo de cenoura

primeiro, as cenouras. essa parte não é lá muito fácil: a receita diz duas médias, mas serão três das pequenas ou uma daquela bem grande, na dúvida, escolha as médias. tire a casca e corte-a em rodelas. essa é a parte mais irritante de se fazer o bolo de cenoura, sem dúvida. descascar suja tudo de casca laranja e cortá-la crua é difícil, segurar a faca com as mãos pequenas é sempre um risco. mas respire e lembre-se que o bolo de cenoura é a coisa mais maravilhosa que há, e para isso, tem de cortar aquele legume laranja, pontudo e feio cuja maior missão na Terra é fazer um bolo gostoso que não tem seu gosto. bem, depois, quebre os ovos. quebrar os ovos exige cuidado e atenção, e pode ser assustador, quebre-os na ponta da pia ou da mesa mesmo, deixando um pouco de gema amarela sujando o local. jogue tudo dentro do liquidificador: as cenouras, os ovos, duas xícaras de açúcar, uma xícara de óleo. fazer um bolo é uma magia. duas xícaras de farinha, faça com calma e se divirta. puxe uma cadeira para perto da mesa, suba e observe a massa laranja se remexendo toda. uma colher de sopa de fermento, muito importante. unte a forma, com carinho, acariciando nela a manteiga e depois jogando grosseiramente a farinha em cima, batendo de um lado e do outro. cuide para que tudo esteja esfarinhado. despeje a massa na forma untada e faça questão de limpar ao máximo o liquidificador com uma colher, e depois um garfo, e os dedos, porque não se pode perder bolo: temos de ter muito bolo para comer. muitas vezes o bolo de cenoura era o nosso jantar. deixe a massa descansando um pouco e observe as bolhas de ar estourando na superfície. a ansiedade está cada vez maior, mas seu pai disse que é importante a massa descansar assim. o forno ligado e lá vai a forma. agora, a dor. esperar a massa ficar pronta é o cúmulo da ansiedade que um pequeno ser humano pode conhecer. o tempo todo, imagine e lembre-se do gosto do bolo de cenoura e se postre em frente ao forno acendendo a luz dele o tempo todo, vendo a massa crescer. vá ver tv e se distrair, para o tempo passar mais rápido. sem conseguir se distrair, pergunte quando vai ficar pronto. e de novo. e a cobertura! é preciso fazê-la. leite, nescau e açúcar. muito leite, muito nescau, muito açúcar. mexa devagarinho o leite quente em fogo baixo vendo ele se colorir de negro. continue mexendo e mexendo. até quando tem que mexer? eu perguntei, cansada, os braços já doendo. ele respondeu: já tá bom, ué, pensei que você gostasse de mexer. o que ele não entendia é que aquela cobertura nunca ficava igual ao da padaria. aquela casquinha crocante. vou contar o segredo, mas depois esqueçam que eu falei isso: pouco leite, chocolate e muito açúcar. você pode fazer um brigadeiro também. mas aqui eis o verdadeiro tesouro do bolo de cenoura perfeito: quando você jogá-lo sobre a massa, ele entrará dentro formando fios deliciosos de chocolate e deixando-o macio. vamos ver se a massa está pronta. primeiro, feche todas as portas e as janelas. nenhuma corrente de ar pro bolo não murchar. um bolo bom tem de ser grande, fofo. ih, não cresceu dos lados. nunca cresce dos lados nessa forma retangular. as janelas estão fechadas, a cozinha é quente, calorosa, confortável. tudo aspira afeto: a proximidade do bolo, a ansiedade para ver se deu certo e o calor do forno esquentando a pequena cozinha. enfie o palitinho para ver se ele sai limpo. se tem coisinha ainda, espere mais. mas agora, ele está perfeito, porque não quero falar da agonia de ter de botar de novo ele no forno e esperar mais, a ansiedade em seu pico mais agudo. e, depois, grandes chances dele murchar tristemente. um pouco, é verdade, ele murcha. você prende a sua respiração e sempre espera que um dia conseguirá tirá-lo perfeitamente, como ele estava na estufa. faça furinhos com o palito de dente por todo o bolo. aí sim, derrube lentamente o leite com chocolate e veja ela sumir se embrenhando dentro. peça seu pedaço. agora você irá comer a melhor coisa do mundo. as mãos e os pés são pequenos, os olhos redondos, de jabuticaba, o sofá puído, ele é vermelho, e vocês comem muito bolo de cenoura, metade da forma, até não conseguir mais. ele colocará ainda o bolo entre dois guardanapos e você levará um último pedaço para a casa de sua mãe. sua mãe também faz bolos de cenoura, mas não deixa você cortá-las nem mexer muito o leite quente. mas ela também faz aquela cobertura bem líquida, só que coloca menos açúcar, menos chocolate. a casquinha crocante do bolo de padaria continua um mistério. o bolo é bom gelado também, mas não há como ser melhor do que quente, recém-saído do forno. as horas de espera e ansiedade valerão a pena, você vai guardá-las com tanto afinco na sua memória que para sempre as sentirá quando fizer o bolo de cenoura, sozinha, na sua casa, com suas mãos crescidas, mas não menos desastradas. 

maio 31, 2018

rede

deitei-me na rede junto à janela, o dia estava azul e claro, convidativo. mas ali estava a rede à minha espera, e todas as plantas que eu coloquei em volta delas; tudo isso eu planejei. e escolhi as plantas que recendem, para então sentir, como agora, o cheiro delas perturbando suavemente as minhas narinas: o alecrim, o manjericão, talvez esse doce venha da lavanda, e o cheiro verde, da terra, próximo do perfume reconfortante das matas fechadas, das roças bem cultivadas, o úmido e as folhas apodrecidas, a sensação calma da natureza. tudo isso eu tentei recriar, dentro da minha casa, talvez, para que não fosse preciso sair. antes de me deitar na rede, eu tinha pensado em ir ao largo, sentar-me próxima de uma árvore, mas a quantidade de pessoas lá sempre me inibe; de maneira geral, eu não gosto de estar entre as pessoas, as desconhecidas. não as multidões, eu gosto delas, mas as pessoas sentadas, numa praia ou numa praça, que te olham com curiosidade e querem vir falar com você.
eu estou ansiosa por terminar a minha casa, e eu não sei bem porquê. deitada na rede, depois de cansar de ler, eu pensei que sou infeliz. mas essa infelicidade vem da mania irritante que eu tenho de me olhar sempre em terceira pessoa, de ver o meu próprio corpo deitado na rede e gostar de ver, mas não gostar de estar nele. da minha constante incerteza se eu deveria agora estar nessa rede ou lá fora ou ter arranjado um programa qualquer ou ter convidado alguém para me visitar ou me convidado a visitar a casa de alguém. eu sou infeliz porque não me sinto bem, quase nunca, com as minhas escolhas. tentei escrever, antes disso, e abri os textos e olhei e fiquei enojada. não tenho segurança alguma de saber se o que eu tô escrevendo é uma bobagem, para os outros, e nem para mim mesma. perco, com muita facilidade, a dimensão da minha vida, perco o fio que eu achei ter encontrado por permear.
vivo num estado de ansiedade constante e calma sobre a pessoa que eu quero ser. ao me deparar com meu trabalho real, me escondo, e as ideias fogem. qualquer comentário me desanima. e deve ser porque minhas expectativas são sempre muito altas.
minha imaginação, às vezes, não me serve de nada. só para me deixar triste.
fiquei na rede até que a luz acabasse e eu não pudesse ler direito as palavras do livro. o ritmo fácil e doce que Natalia Ginzburg escreve me dá vontade de escrever, porque é direto, sem rodeios. todo o tempo que eu li Meu nome é vermelho não tive vontade de escrever porque tudo é complexo e baseado numa admirável pesquisa histórica, coisa que não tenho aptidão, ou na verdade, tenho preguiça. apesar de ter lido rápido as 560 páginas do livro, eu ás vezes lia e relia uma frase com medo de perder alguma coisa. comecei a ler Natalia assim até me tocar que eu poderia tentar ser fluida. tenho esse costume de ler e reler os parágrafos e sempre acho que é sinal de Alzheimer, déficit de atenção, dislexia, depressão, ansiedade, o que seja. sempre.
a luz foi caindo aos poucos e eu admirei este estado que visito frequentemente, muito provavelmente mais do que uma pessoa produtiva visita. admirei, mas não no sentido de admirável; é um estado lamentável. a queda da luz me deixa melancólica. vezes sem fim eu chego cedo em casa do trabalho e fico no sofá fazendo qualquer coisa, como no celular, até que a luz do dia caia e a casa esteja mergulhada em sombra. tenho mania de deixar as luzes acesas sempre - mania não, mas algo muito interno à minha personalidade de distraída e desleixada - e as minhas contas de luz são exorbitantes, mas quando o dia me oferece sua luz, eu a aproveito até que não reste mais nada.
é extremamente triste. sempre me vejo num ambiente sem vida, escuro, indistinguível - a bagunça em cima do sofá e da mesa não importam mais - e as sombras dos objetos no crepúsculo criam formas pavorosas. eu sinto uma letargia tão potente que não consigo simplesmente me levantar e acender as luzes elétricas. tudo está quieto, com exceção da cidade que nunca se cala, não tem ninguém em casa e o dia não esta mais azul. eu gosto muito dos dias azuis. mas não é prazeroso, antes, há dor. como se as luzes finalmente terem caído eu possa enfrentar meus demônios: meu medo, meu temor diante da vida; meus fantasmas, meus desejos interrompidos, a infelicidade, minha insignificância diante do mundo, das pessoas que eu amo. finalmente, acessei meu estado interno. depois de um dia inteiro vigilante com a minha própria figura e as minhas ações, brigando com as vozes internas que me mandam ser útil e criativa ou se não conseguir, pelo menos lavar a louça. mas mesmo assim, me vejo: e é por isso que escrevo. aliás! como é gostoso escrever sem ter que revisar e tomar cuidado com as repetições, com a pontuação. desde que eu levei a sério esse negócio de escrever, o prazer foi escorrendo pouco a pouco para sobrar aquilo que os escritores sempre contam, quando falam de seus métodos: disciplina, o próprio método, o trabalho de cortar e acrescentar, de se fazer entender, de criar belas metáforas, palavras contraditórias em harmonia, fazer efervescer o centro do texto sem deixar aparente, etc, etc. tudo isso é trabalho e não há prazer. mesmo agora, preciso pensar, e ás vezes parar de escrever, mas é outra coisa. isso não tem finalidade. dizer isso agora encheu meus olhos de lágrimas tímidas: fazer algo sem finalidade é realmente prazeroso.
isto me lembrou o que eu queria escrever e não veio corpo, outro dia, estava andando na avenida angélica e pensei ter alguém nas minhas costas, virei-me assustada, e nada. como estava calma e talvez, até, contente - tinha passado uma hora no parque buenos aires, fazendo hora, ouvindo um casal de lésbicas se beijar nas minhas costas e lendo o meu livro e sentindo a grama penicar minhas pernas - pensei em escrever sobre a sensação quase constante que tenho de alguém me observando.
na rua, numa padaria, e principalmente em casa, no trabalho. em casa, eu me assusto e acho que são os fantasmas. olhando daqui, enquanto escrevia, a cozinha com a luz acesa a minha direita, em perspectiva, sempre parece esconder alguém.
eu não sei se são os fantasmas, mas me ocorrera falar que são os meus demônios. vezes sem fim que me assusto com minha própria sombra. pode ser que você me ache uma menina tímida e desmiolada, que tem medo de tudo e não tem coragem de encarar a vida - em parte, isso não deixa de ser verdade - mas pode ser também que eu esteja sempre alerta demais para poder ver os meus demônios.
porque, se são fantasmas, continuam sendo minhas sombras - Sofia, que eu lamento esquecer e lembro com tristeza, e que eu queria ter um altar, mas tenho vergonha o suficiente para não fazer isso, sua voz me chamando, sua alegria e o trágico curso da vida que a levou e logo Gabriel, o irmão vivo que nasceu depois e por conta da morte dela, que eu gostaria de ser mais presente e poder amar com todas as minhas forças, mas que algo, uma culpa, ou essa insistência em perguntar se ele existiria, se Sofia tivesse viva, se eu pudesse ter os dois, e mesmo assim, me culparia pela ausência em suas vidas, culpa que não é forte o bastante para me fazer voltar para Campinas, porque aqui em São Paulo, me fiz, fiz meu lar, fiz minhas escolhas, refiz eu mesma. talvez meu avô a quem chorei pouco em seu luto, meu avô paterno que morreu há tanto tempo, minha tia avó que me estimava muito, o irmão morto de minha mãe que não conheci, minha bisavó, que idem, chorei pouco e tive medo quando a vi amarrada na cama do asilo; de forma geral, eu fugi dos mortos e dos prestes a morrer - essa é uma revelação pessoal bastante importante. explica, finalmente, minha culpa mais intensa em relação à Sofia, quando ela estava já tão mal e eu insistia em voltar para São Paulo, e quando atendi tarde demais o telefonema da minha mãe porque resolvi ir ao cinema. fiz e com certeza farei coisas estúpidas como ir ao cinema em tempos dolorosos. quando descobri que Sofia tinha um tumor, e no sábado, fiz uns dreads idiotas. eu não consigo lidar com a dor, e nem ver a morte nos olhos do doente ou do idoso. eu até consigo, mas não quero, me afasto e não quero tocar neles. para me defender perante vossos ouvidos julgadores (aqui está uma reminiscência clara de Orhan Pamuk) eu gosto de lembrar deles alegres e com vida. no fim, coleciono poucos momentos, mas como sempre os revisito espero que tenham se cristalizados na minha memória para nunca mais perdê-los. os fantasmas, os mortos - então - são a passagem da vida, a corrida inexorável do tempo, minha memória falha. quando acho que os vejo, estou vendo como que relâmpagos da minha memória, ou da falta dele. de maneira geral, há tanta coisa para se fazer em vida! visitar todos os países, principalmente os que descrevem nos livros e nos filmes bonitos, conhecer as pessoas ilustres - não as famosas, mas as pessoas que reacenderão o fogo apagado em nosso peito, realizar um sonho, perseguir um objetivo, fazer o jantar e trabalhar com afinco, ser boa para os outros, não exigir tanto deles e saber lidar com a solidão e também manter viva a memória - dos mortos e também dos vivos distantes, e também as lembranças que me constituem para que eu não caia por aí de tão leve que está meu interior. pode-se perceber que viver me enfastia.
talvez por isso eu creia ser infeliz.
os fantasmas, ou alguém que está me observando, poderão também ser meus temores e principalmente meu orgulho, a ânsia de ser alguém para o mundo, de ser imortalizada, de ter alguém que se lembre de mim, que me leia, de ter espectadores a me olhar, de ser amada e amar. vezes sem fim num dia eu me decepciono porque não me amam como eu quero. e tantas vezes mais eu não amo outros como eles querem. quando isso acontece, eu sou birrenta, e choro, e ás vezes grito, e fico pensando: tudo está terminado, eu serei triste e só. dependo muito dos outros, de alguns outros e não quaisquer outros, e sei que preciso só tomar meu prumo, costurar este fio e seguir sozinha como são todas as pessoas.
bem, ás vezes não há sustância.
não é que eu me sinta leve, é o oposto - me sinto pesada e a esse peso devo às pessoas se cansarem de mim. tão pesada quanto uma pedra estagnada. para me mover, tudo parece difícil, trabalhoso, hostil. 
talvez essas sombras que me perseguem, seja minha leveza, meu próprio espírito escondendo-se de mim. 
gostaria de voltar a falar do cair do dia. toda essa história dos fantasmas me surgiu um dia que não tive tempo de escrever e por isso, agora, não sei dizer ao certo o que eu queria. hoje, verdadeiramente, penso que são meus próprios olhos me olhando, como sempre. 
o cair do dia é muito triste e lúgubre e nada consigo fazer, mas é como se eu me resguardasse. minhas energias só ativam pela cor total do céu, ou seu azul ou seu preto. as nuvens cinzas me desanimam e a chuva, quando não é intensa, me irrita. ainda assim, fico feliz ao constatar isso. alguma relação profunda com o tempo, o tempo das coisas e a maneira da natureza, eu guardo. o fim e o começo da luz é o tempo do resguardo. quando animais diurnos se escondem e os notívagos saem, quando as plantas descansam do seu incansável papel de processar a luz do sol. um respiro.
por quê o respiro do mundo provoca em mim melancolia?
talvez seja o contrário, e esteja desalinhada. mas estar desalinhada é a única forma de existência que eu conheço. o crepúsculo vadio provoca em mim a rara vontade de ser eu mesma. de escrever sem ser para os outros, de fumar três cigarros em meia hora. de não me observar atentamente. 
meu medo, no final de tudo, é realizar tudo e não ser feliz. eu não sei porquê direito, racionalmente nem acredito em felicidade. mas estar em constante desacordo e não conseguir fazer o que eu deveria, o que eu deveria? pensar na minha morte é cada vez mais angustiante - talvez essas sombras seja ela mesma me espreitando, então - o fato de que estou me aproximando lentamente do dia que expirarei. quando era mais nova, gostava de imaginar a forma que eu morreria, quando eu comecei a fumar fazia piadas sobre morrer cedo - ainda faço, mas logo depois sinto um peso dentro de mim. quanto mais os anos passam, mais próxima ela está, e mais difícil é falar dela com aquela leveza. porque falar da morte é falar da vida, e a vida, muitas vezes, não é um campo aberto da imensas e coloridas oportunidades, mas uma trilha cada vez mais fechada, restrita. ainda me resta o alto para olhar e lá em cima, um céu. o céu é o último refúgio dos sonhadores, das pessoas insatisfeitas e infelizes, dos loucos e dos mendigos, porque não há limites nele. eu gostaria de morar no céu, onde tudo se abre em infinitas dobras de tempo e espaço, onde tudo é distante e as preocupações se dissipam feito fumaça. 
mas no céu não poderia realizar. e meu egoísmo, meu orgulho, meu ego - meus diabinhos - dançam embaixo dos meus pés pedindo atenção.
tive vontade de terminar com Deus me ajude. mas eu não acredito em Deus. 



maio 13, 2018

não adianta

não sou. não sou mais. a existência que te faz acordar, que te coloca no prumo. não preciso. você me olha, agora, desconfiado ou seria porquê tomou uma distância segura o suficiente para me olhar? para me olhar de fora. por não estar encostado às minhas entranhas, por não estar respirando junto das minhas costelas. eu vejo como você me olha. sóbrio. outrora eu achava que não tinha brilho para você, mas agora sim, agora eu sei. vocês falam demais quando amam demais. ao revés do que manda meu sol, meu dourado escorpião entalado na garganta, não amo intensamente. 
mas perdura.
quando eu digo que busco, busco tanto, as tais conexões - o que é conexão para você? perguntou minha terapeuta. na hora não soube responder. é me fazer entender e entender o outro. não sou boa com as palavras.
oralmente
(alguma confiança na minha escrita tem de restar - pode ser que eu me transforme na loba solitária que eu sempre temi ser, mas, ainda assim, poderia falar pelos bilhetes Olá Senhor Porteiro, o Senhor poderia receber esta entrega para mim? Ela é demasiado especial, por favor, me deixe saber quando chegar, estou ansiosa Oi amiga, sinto tanto sua falta, lembra-se quando a gente tomava banhos juntas? não, eu não tinha tesão em você, mas acho triste ter que parar de tomar banho juntas só porque crescemos, saudades, Mari.) 
é me fazer entender. e entender o outro - eu disse. e aí tentei me explicar: é conversar, cozinhar juntos, ter um momento. não. ela me disse: são coisas simples que você deseja, então. será? ou eu não me expressei direito. é não ter olhos de ave rapina sob mim, é olhar você com olhos esbugalhados de peixe ou planta, é florescer no silêncio depois de cada ponto final, é rir na mesma sinergia. é estar absorta num único universo, desmanchar as rígidas linhas da sociabilidade, encontrar. 
não é tão simples assim, Amanda.
eu precisaria, primeiro, me esforçar. voltar ao estado infantil, ingênuo, crente, ouvir as palavras de um velho como se fossem as suas primeiras. oferecer. meu corpo, meu ouvir, minha casa. abrir. entregar. 
e vê-lo desabrochar. que também me olhasse sem intermediar, e. que eu não fosse julgada, não por obrigação, mas pela consonância do entorno. tudo está em equílibrio. soltar. 
sentir amor.
como se sente o amor? como ele ae âmago? não é esse engasgar na garganta, ou essa tensão, nem mesmo essa condescendência. existe? é possível? sentir o amor.
sinto-me distante disso, com você. mijando, eu pensei: estou sozinha.
é um alívio, também.
mas me dá medo.

como se tivesse sido deixada num campo aberto. existe, claro, o campo aberto e tudo que ele oferece: o horizonte, o espaço. finalmente, o espaço.
não existe você. seu colo, sua sombra, seu hálito, a proximidade.
talvez eu tenha entendido agora o que quero dizer com conexão. intimidade, talvez, o que as pessoas chamam por. sentir-se íntimo. o que é? sentir-se próximo, seguro, confortável, escarrar-se dentro do corpo do outro.
eu não escolhi abandoná-la. a intimidade. ou escolhi minuciosamente, secretamente de mim mesma, jogando sem consciência. vocês também escolheram. se afastar, me olhar à distância. 
não se apaixonar por mim.
não adianta nem me abandonar, porque mistérios sempre há de pintar por aí, pessoas até muito mais vão me amar, até muito mais que difíceis que eu pra você, que eu que dois que dez que dez milhões, todos iguais. até que nem tanto esotérico assim, se eu algo incompreensível, meu deus é mais. mistério há sempre de pintar por aí. não adianta nem me abandonar, nem tão ficar tão apaixonada que nada, que não sabe nada, que morre afogada por mim.
escrevi esta música agora, ouvindo-a. é um bom exercício, como se eu pudesse de fato gravar as palavras na minha mente de uma vez por todas.
eu te amo.
nana.
eu, sobretudo, não quero esquecer. mas ando me esquecendo. deliberadamente, esquecendo. dói demais lembrar de tudo.
tudo bem. você pode ir. e não que eu precisasse te permitir alguma coisa, mas de alguma forma, você espera isso.
você espera que eu ofereça a minha permissão. não sei se é para ter paz, aplacar a culpa, ou poder me amar, talvez mais ou melhor, de alguma forma madura. pouco apaixonada. e eu digo: sim, não deixarei de te amar, mas pode ir.
eu ficarei bem, sozinha, embora meu peito doa, pequeno, apertado. não tenho escolha, também. 
é isso que vocês me oferecem.
é isso que eu cavei, é o que eu busquei.
também eu não aguento carregar vocês nos ombros. preciso viver.
o vento chama.



janeiro 04, 2018

praça dom josé gaspar

no banco, o namorado alisa a ponta do cigarro de maconha e na outra mão acende continuamente a chama de um isqueiro transparente, a chama explode e apaga, sua namorada repentina larga-se em cima dele de forma tão lânguida que se faz mais melancólica que romântica. à vista, quatro jovens estão sentados, uma dupla de frente para outra, um come da marmitex de alumínio; uma dupla joga baralho, pela compenetração e pelo gesto displicente mas inseguro de descarte das cartas o jogo é buraco, um deles que segura a carta tem os cabelos longos crespos presos num rabo de cavalo e é maior e mais claro que os outros três; é uma cena admirável; atrás deles uma barraca de camping se ergue, lá vive um casal ou até mais gente, o cachorro deles late, carregam seus celulares puxando energia do poste de luz próximo, o quadro suave quase se desvanece com a aparição repentina da cavalaria da polícia militar, embora nem tanto. são três cavalos que levam seus cavaleiros de coletes amarelo fluorescente e farda, eles trotam calmamente por entre os meios da praça; nenhuma tragédia prevista desmorona: o namorado alisa ou guarda a maconha; os jogadores continuam silenciosos; o fio entre o poste e a barraca não é cortado. o som do latido do cachorro é interrompido pelo eco dos dezesseis cascos batendo no chão: por um minuto, nenhum ônibus atravessa a av. são luís e tudo que se ouve são os cascos no trote, como se este tempo fosse atravessado por um outro, aquele das carruagens e dos cavalos, dos homens bem vestidos, dos namoros nos salões ou flertes ali perto, no theatro municipal, das casas dos jogos onde o mesmo buraco, com as mesmas regras e a mesma compenetração, era jogado. os cavalos atravessam a praça, um é castanho escuro, do tipo comum, outro branco e da bunda gorda, dum branco sujo de poeira da cidade tornando-o quase acizentado, e o terceiro, castanho claro, tem as pernas anormalmente longas e torneadas, é magro e forte, e seu cavaleiro policial em consequência situa-se mais alto que os demais. o terceiro cavalo embora de primeira vista imponente era um tanto desengonçado, suas compridas pernas não harmonizavam com o corpo robusto de um cavalo e o rosto, imagino, também seria mais alongado que o normal, o nariz bem longe do rabo e o dorso bem longe dos cascos, a cada trote, o cavalo, bicho destinado a correria e guerra, tinha de pensar onde é que iam suas pernas, como é que gingava o corpo; mas tal característica, nem de longe, fazia-o de menor auto estima, pois olhando de cima para seu colega branco e gordo, ria satisfeito e seguia esguio. mais adiante outra barraca de camping e três homens deitados próximos riem divertindo-se, inúmeras pessoas usam o celular, um vento refresca o sol ardido do verão, as árvores chiam encostando-se com suas folhas verdes umas nas outras. na av. são luís, depois do Rembrandt, depois da portaria do Louvre (visitantes, favor identificar-se), passando por um gay vestido à moda (camiseta rosa e meias pretas até a canela), por uma mulher tanto escura quanto alta e masculina feito um segurança, com a mão no bolso da calça e um andar firme e em nada feminino (seja pela graça ou por seu caráter eminentemente vacilante), por três jovens vestidos à moda (piercing no septo, colar grande, black power) cantando parabéns pra você, um morador de rua esconde-se debaixo de um cobertor vermelho vivo. ao seu redor, quatro ou cinco pombas beslicam-o, sem ele sentir, ou comem dos restos do seu salgadinho aberto: nenhuma parte do homem ou da mulher está a vista, alguns moradores de rua, quando se escondem debaixo de seus cobertores encolhem de tal maneira que não podemos adivinhar gênero ou idade, nem se estão vivos ou mortos, se conseguem dormir estufados por um cobertor ou se estão demasiados doentes e por isso precisam do calor, se respiram. não sabemos sequer se não há ninguém ali embaixo, e o que é tal volume uniforme e se ele sente ou não as pombas que ciscam em cima e dos lados dele; o segurança da ótica da frente olha para o volume, não de maneira fixa e obstinada, mas com olhos tristes ou cheios de dúvida (pois o tom que os olhos assumem, se estamos tristes ou duvidosos, é muito parecido) que vão e voltam, tentando desgrudar do volume vermelho vinho da calçada mas sempre a ele retornando, como que também esperando que dali surja o ser vivo ou que ao menos alguém declare: morreu! sua gravata vermelha, parte do uniforme de segurança, voa com o vento. ele desvia os olhos do chão e olha nos meus disfarçando a ruga entre os olhos, recompondo o antigo olhar carregado de emoção para um neutro, imoral, sem julgamentos. talvez não estivesse a pensar no volume vinho, talvez estivesse a repassar em sua memória alguma dor, talvez estivesse tentando domar um pensamento obsessivo que teme tomar-lhe o corpo todo e o olhar de uma estranha desviasse-o de qualquer solução ou enigma, como quando cavamos um buraco demasiado fundo e a única forma de continuar é continuar cavando-o, pois já não temos meio de cobri-lo, e a resposta fosse o escuro e úmido do seu fundo, embora quando chegamos a esse ponto, seja esse sempre um fundo falso, sabemos que é possível cavar o buraco até o nunca, até as extremidades da terra, e o escuro não será suficiente, tendo que nos contentar, sem delongas, com aquele mistério, com aquela rachadura para todo o sempre. e ele voltou a superfície e me encarou com olhos nada suplíces, nada doces, nada rancorosos, nada indagativos, nada.