abril 13, 2016

descrição obje-subjetiva de espaços (exercício) I - ponto do mackenzie sete da noite quarta-feira

ao atravessar a consolação, larga avenida de três ou quatro faixas em cada mão, descem três ruas à esquerda: a primeira é a rua maria antônia, conhecida por bares frequentados por estudantes do mackenzie, e por isso, bonitos e bem aprumados, com boas fachadas; em seu meio se ergue o tusp, teatro da usp onde se situava o curso arquitetura e ciências humanas da usp outrora, é um monumento branco ladeado com colunas enormes grandes, reto e quadrado; as colunas formam vãos com degraus onde se sentam os estudantes do mackenzie atravessando o limite do bar mais próximo com cervejas; talvez algumas pessoas de teatro ou interessadas em mostras de cinema recluso aos finais de semana, esperando a hora do dito espetáculo de arte, pequeno, de amigos; a rua é bonita, arejada e limpa, há docerias, residências, é charmosa, há verdadeiras padarias, mais ou menos verdadeiras, ainda guarda um quê de bairro, um quê de centro. a próxima rua é a doutor cesário motta, muito íngrime, de cima da rua se vê ela descer, rua de bares de mesas de plástico amarelas, mais baratos que os da maria antônia, as mesas ocupam toda a calçada, os bares se parecem todos por conta da cerveja patrocinadora, enfeites há as placas anunciando o bom preço do litrão, prédios residenciais talvez não deixem a vida noturna da rua se estender pela madrugada, tem jeito de happy hour, de universitário pobre ou de universitário rico que se sente mais a vontade em mesas de plástico na calçada. a próxima rua é como uma curva, esquisita e quase invisível a primeira vista, se denomina amaral gurgel. é nela que eu descerei; entre a cesário motta e a amaral há vivamente uma banca de sapateiro com os dizeres "faz-se botas para motoboys"(muitas motos inúmeras motos atravessam a consolação), uma simpática venda de suco de laranja a quatro reais e salgados a dois e casquinha de sorte a um e cinquenta, uma loja de skate, responsável pelas pixações que flutuam nos prédios da região arrozfeijãoeganja, acabou de reformar para um bar a lá homem que ouvem rock'n'roll, com luzes baixas e amarelas, um balcão, uma mesa de sinuca, mesas descontraídas, bancos não cadeiras, os mesmos homens que antes pareciam vender agora riem e jogam sinuca, são barbudos, usam óculos; sentados um degrau a frente três moços parecem imóveis e iguais como estátuas, os três usam bonés, e por cima dos bonés, apoiados em suas abas óculos escuros, os óculos são do mesmo tipo, daqueles alongados ao rotos, os bonés são modestos mas tem cores como verde ou rosa junto ao branco, estão velhos, eles estão quietos, a posição da sua perna é a mesma, os óculos, os bonés, olham para um ponto fixo: na curva acentuada que forma o fim do minhocão com o começo da amaral gurgel, uma descida estranha e escura, sempre decorada com destroços, ocorre uma batida policial; há três policiais e três revistados; um dos moços, negro, alto e magro feito uma tripa, acaba de ser liberado e atravessa a rua com um olhar fixo a fim de se perder na multidão de luzes que é a consolação - é preciso sair do beco o quanto antes. um moço gordinho, branco e de óculos se explica para o policial, tudo que eu ouço é a palavra "escola", um policial toma nota, um moço com a mochila da forma turismo passa por eles, passo atrás, receosa do espetáculo; olho para frente, ali está a entrada de trás do mackenzie, faculdade particular de renome, presbiteriana embora ignorem isso, que toma toda aquela região e dá o nome ao ponto, e dará o nome ao metrô que vem sendo construído há muitos anos. um segurança está na porta, um homem com roupas formais entra, eles se cumprimentam, uma moça loira e branca e pequena, é nova, vem em direção a porta, ela está sorrindo  sozinha como quem pensa nalguma coisa muito boa que aconteceu ou que está prestes a acontecer, ela é simples, imagino-a bolsista, apaixonada; olho seu sorriso como quem quer se desfaça, mas ela não olha de volta para mim. a amaral gurgel é uma rua com duas faixas em cada uma das mãos e sustenta as colunas grossas do minhocão em seu meio; por isso há a calçada, a calçada abaixo do minhocão e a calçada novamente. é uma rua suja, abafada e desagradável, de chão de cimento, dizem que ali foi a primeira rua a receber as calçadas com o símbolo de são paulo em preto e branco formando um desenho geométrico de mil são paulos uma brotando da outra continuamente, em mil novecentos e trinta e alguma coisa, mas foi a primeira a ser trocado também, dizem as autoridades, para um chão mais permeável; embora a criadora do desenho em um concurso simpático da cidade esteja triste que as calçadas de são paulos brotando em são paulos, preto e branco como blocos imutáveis e resolutivos, estejam continuamente desaparecendo, é sabido que há sempre perigo de enchentes na cidade e se haverá maior permeabilidade no cimento só um especialista poderia dizer, ou se é apenas contenção de gastos; também não haveria nenhum interesse em manter aquela rua intacta, que outrora deveria ser até que simpática e pela localização, endinheirada, já que ela abriga em suas calçadas lojas do extremo submundo, uma mistura homogênea composta de bairro em centro. são elas os postos de gasolina (há 2), as mecânicas (há muitas) e os butecos, estes literalmente em cada esquina e também no meio da rua. estes não são sequer como os bares da cesário motta, mas antes um tradicional buteco, apertado, gorduroso e sujo, que exibe em suas estufas os salgados fritos e pedações de torresmos e frango frito, o balcão, os banquinhos, onde um ou outro homem encara a pinga, não há mesas na rua; de final de semana surgem ali festas de aniversário, karaokês improvisados e churrascos; há apenas o buteco, todos parecem o mesmo, entrar em qualquer um, penso eu, daria no mesmo, a variar da identificação com quem te atende, com a simpatia, com o preço. passo por uma unidade da santa casa que não sei para que serve onde se lê uma placa senhores pichadores doamos para instituições filantrópicas favor não pixar obrigado santa casa e as pichações brotam ali, são nomes próprios em letra específica; as grandes colunas de cimento do minhocão também abrigam grafites, mas são artistas, desenhos gordinhos, frases de impacto e amor, como venha de bicicleta, veracidade, pequenas poesias, respiros no cotidiano oferecidos pelos artistas das colunas do minhocão, provavelmente convidados, ali estão há um tempo, não os apagam, é uma vergonha; uma moça talvez moradora de rua sentada em uma canga ou coisa assim parece pouco se foder para os grafites, uma mãe e uma menina atravessam onde não há sinal e pelo perigo e adrenalina envolvida na coisa, a menina grita, o grito ecoa e o que era um grito espontâneo de liberação de energia torna-se um uivo, um choro, um gemido, um pedido de socorro; por conta da acústica criadas pelo enorme minhocão que é o teto parcial da amaral gurgel tudo ali reverbera e se intensifica, onde uma bolha de opressão simples e puramente pela existência da vida se torna concreta; os carros passam zunindo, os ônibus furam os tímpanos, e ainda há as ambulâncias, que são muitas, não sei se pelo número de feridos da cidade ou da proximidade do hospital, apitando quase constantes e deixando seu rastro de agudo por onde correria; os gritos ali dados são sempre assustadores, tudo ali se faz pela maldição, o carro e o ônibus parecem zunir dentro do seu próprio corpo; uma vez estive com uma amiga que tinha sofrido uma síndrome do pânico na região e a busquei para levá-la para casa, paramos no semáforo e ela pareceu desmoronar e eu soube exatamente o que ela sentia; eu também sentia; um desespero absoluto, como se ali o atirassem e o prendessem, embora as vias se abram, tudo está condensado, o ar esvaído. pela noite adentro, essas ruas, mais calmas, com o minhocão fechado para os carros, ganharão rainhas mais benevolentes, as prostitutas travestis, que enchem o ar com os seus corpos e um falar alto, ás vezes embriagado, ou um sussurro de negociata; elas oferecem companhias quem por ali volta tarde, quem anda desavisado, para os traficantes e toda a gente se aconchegar, elas abrem a rua como lares. por enquanto, pessoas atravessam, e muitas delas estão sentadas nos degraus dos estabelecimentos, fumam cigarros, com fuligem na cara. todos os estabelecimentos são cobertos por fuligem e graxa, o cheiro é de gasolina constante, ainda há os barulhos de dentro das mecânicas, tudo é sujo e se desgasta, pastilha e concreto. próximo a minha casa, tem um dos meus lugares favoritos, que eu gostaria de ter fotografado junto a esse texto, a la breton; é uma placa de neón na vertical, colada à parede, onde se lê HOTEL o neón é verde, e a linha de néon em volta do HOTEL, um retângulo, pisca entre verde e azul arroxeado, o azul neón. há outras placas de neón na rua, todas de hotéis de meias noites, mas o E do HOTEL está ao contrário; se lê HOTEL para quem está dentro do hotel ou para a própria parede, talvez para alguém que fique na recepção. cria-se um efeito interessante, intensificado pelo neón que pisca, um certo estranhamento, um distanciamento sutil. neste E ao contrário parecem se operar as ambiguidades, as coisas sem sentido, aleatórias, crias de acaso que estão em todos os lugares da cidade; lembra a mão do homem, do homem que colocou e do homem que mandou ali colocar, e o homem que ali mandou colocar satisfeito de poder ler, de dentro da onde está, HOTEL sem nenhum estranhamento, perfeito, conciso. a contrariedade se apresenta à rua, ao andarilho, ao que não entrará no dito HOTEL. lembra-se um quê de loucura proclamada em neón. mais adiante, na esquina, um estranho imóvel se ergue, é um conjunto de escritórios que desemboca numa venda em que se trabalham apenas mulheres, um lugar em que deveria reinar o boteco, mas ali, vende-se tortas salgadas e café, há jogos americanos amarelos nas mesas, não está aberto, as cadeiras também são amarelas, há água de coco, é limpo. mas o estranho deste conjunto é que suas paredes são feitas de porcelanato, ali onde abriga uma imobiliária que se chama centro vivo, as paredes e os chão repentinamente não são de pastilhas desgastadas cobertas de fuligem, não permitem ser pichadas, não é sequer concreto; o porcelanato, por sua vez, brilha de forma estranha e nunca é possível estar sempre limpo, mantendo o estilo decorativo da amaral gurgel: a gordura. ainda assim, reto como é, parece criação de ficção científica da classe média do terceiro mundo; é o mesmo piso que cobre a minha cozinha, recém-reformada e vê-los formar paredes sempre me dá a impressão de estar vendo a minha cozinha na vertical. por fim, o caminho está se encurtando; mais a frente um enorme monumento se ergue, com dois ou três andares, todo coberto de trepadeiras; um letreito eletrônico indica 24 HORAS na porta obscura, o que me fazia pensar que era um motel de luxo, mas descobri sendo a maior sauna gay de são paulo; ali um ou outro homem desacompanhado se escora, um casal de gays bem arrumadas atravessa a rua. é da mesma contrução que se abre num buteco, numa esquina quem nem é esquina, mas uma curva-esquina, embora qualquer uma seja motivo; uma de um piso amarelo e que mesmo estando a duas casas de diferença nunca coloquei meus pés: o lugar carrega uma aura obscura, está sempre vazio, é pior do que os butecos apertados de esquina na amaral gurgel, uma lousa branca há muito tempo ali diz em uns garranchos yakissoba 6 reais coxinha + sujo 3 reais, a caneta parece que quase foi apagada, mas ali permaneceu para sempre; os preços se congelarem numa inflação inexistente; eu palpitaria que este espaço é o limbo dos mortos do qual falam os espíritas, ali eu não entro jamais.