janeiro 19, 2010

dos urubus

mas olhe, veja bem, acompanhe a cena: o nobre está para morrer. como sabem, todos, que a morte ronda seu espírito? acham que o sabem. o velho agoniza na cama há dias, de uma febre de não se-sabe-o-quê, peste negra, febre terçãa, no fim, acaba tudo sendo castigo de Deus. e os outros, como que avisados por este Deus misterioso, postam-se perto do seu quarto. velhas mulheres de preto reviram os olhos, e choramingam rezas antigas e cruéis. os conselheiros, mais perto da cama, espicham de rabo de olho, como répteis aguçados, um pouco temerosos de não mais participar da corte, e um pouco gananciosos de certa herança, e a língua guardada dentro da boca - mas ah! se fossem lagartos, todos veriam - o veneno doce da vingança. há uma infinidade de pessoas, não se sabe daonde, que ali ficam, vestidos de negro da cabeça aos pés. sobrinhos e sobrinhas, com olhares de malícia uns para os outros, que ninguém é de ferro enquanto espera a morte chegar. filhos, filhas, netos entediados. a mulher, se já não morreu antes, ajoelhada do lado da cama, desde o dia que seu marido tossiu sangue, tem sim os joelhos doendo - por que não teria? - e entende que Deus escolheu aquela hora pro seu marido. não foi, Senhor? então por que não leva este marido que me deu uma vida de desgostos d'alma, de uma vez? enquanto isso, os olhos vermelhos, chorosos, os lenços brancos molhados, uma encenação que se faz passar por real - o corpo da gente já sabe quando é preciso encenar. e mesmo que a morte esteja muito ocupada nos campos de batalha, nas grandes guerras, entre as crianças adoecidas, com os pobres jogados em valas comuns e sem tempo para chorar em grandes enterros, é empurrada para tais castelos suntuosos. é empurrada - sim, como não seria? - se há tanta gente ali, o padre já pronto, o quase-defunto já confessara seus pecados, falta o tom da morte para o contínuo das histórias. acho eu, vendo desta óptica de hoje, o ontem, acho eu que toda essa morbidez, que toda essa pretidão que veste o mundo, todas as preces baixas antes da hora, aceleraram as mortes destes velhos nobres. tudo isto já é morte, não? imagina se o velho passa a sentir bem, recobre-se a cor, não mais pálido, não mais fraco, e recomeça a assinar papéis e desfrutar de cortesãs selecionadas, hein? não é mais possível, pensa a morte, sem seu canto, calculando os números atingidos. e por qualquer que seja o motivo, cai-se o nobre, morre-se, depois de palavras histéricas, afundadas em roncos roucos e soluços tardios, poderá pedir perdão à mulher? poderá avisar que cuidem da amante prenha e amada que chora na choupana destroçada? poderá chamar o filho e rogar-lhe preces de sucesso para a continuidade da tradição familiar? revelará um segredo escondido à sete chaves? ou apenas, morrerá, enfim, sem nada a dizer, ranzinza e enfadonho de viver a vida, de provar dos mais bem feitos vinhos, das mais formosas tetas, dos mais famosos bailes, dos maiores desgostos de filhos que se enveredam por caminhos da burguesias ou pensam em se casar com raparigas. não é assim, não? então, é melhor deixar o mundo para que sigam o caminho deles, ? e morre-se assim, e no fundo, toda a corja, respira, cansada dos trajes pesados e quentes, cansada de toda formalidade. e o que resta? restarão as intrigas, as disputas, os mal-explicados, uma amante miserável.
restarão um filme inteiro, não? em tempos que a moral e a étnica não eram das mais bem explicadas, e toda essa chatisse do tempo de vocês, toda essa justiça que só cai em injustiça, e essa legislação que nada legisla, tudo isso não existia, mas no fim, dará no mesmo, não?

eu, como contador da história, e não da História com H maiúsculo, pois nada mais entendo que fuxicos e tento decifrar as feições malignas, eu, como vencedor dos tempos, e não do Tempo, não senhor, não sou Deus, não sou profeta, sou mero observador, de todos os tempos: eu... lhes digo que quase nada disto mudou. os pobres continuam a ser enterrados em valas, terrenos comuns, jogados ao mar, e dura pouco seu luto, e dura pouco sua intriga, e dura pouco seu sexo. do resto, necessita-se sobreviver. e quando a sobrevivência já é garantida, diria eu aos nobres, diria eu ás classes altas de todas as sociedades estratificadas: aí vem-se a vida. e o que é a vida mais do que busca pelo prazer, por amores demorados e chatos - quando não platônicos, ah, que horror - disputa por status e tronos, intrigas entre irmãos, entre sócios, entre corporações, ambições e sonhos, tudo isto não é a vida, meu caro? então aproveite bem a vida que lhe foi dada, e em vez de observar - como fiz isso, embora tenha trocado por esta chata eterninade (porque a história é um ciclo enfadonho) - faça de tudo para criar confusão, neste mundo, a confusão serão seus passos, a busca de si será seu maior apreço.
mas... veja.
se você for pobre, caro rapaz, esqueça-se de tudo que disse até agora, esqueça-se de tudo, para não pensar que há gente capaz de criar confusão, que há gente capaz de criar enterros, sim, inventam-se os enterros, os lutos! esqueça-se e siga, jamais tenha se encontrado comigo: pois sou bobo da corte, sou palhaço pago pela elite, sou o interesse de quem interessa, e nada tenho a dizer a você.

janeiro 17, 2010

os olhos que deixei escapar de mim

então você tinha aqueles olhos. costumava pensar que viviam suas retinas num constante entardecer: a hora mais bonita do dia. entardeciam-se, preguiçosamente, amarelavam-se, avermelhavam-se, de todas as cores explodiam, para jamais escurecer. tudo recomeçava, dando-me vontade de beber tal líquido que era feito aquilo. e esses olhos me olhavam com tanto carinho! nunca mais me encontrei com olhos que repetissem sua análise minuciosa de mim mesma. ia percorrendo cada poro de pele, cada pigmento de cor avermelhada, que é a minha. via seus olhos se divertirem com meus fios de cabelo, parecia saber percorrer um a um, separá-los, mesmo que eu não conseguisse nem com a ajuda de uma escova. seus olhos tudo percustrariam. mas não eram policiais, ah não! transbordavam de amor incontido, iam pouco a pouco, delineando uma versão de mim que servia à você. concentrava-se no meu nariz, um pouco arrebitado, perpassavam carinhosamente pela minha orelha - um monte de pele retorcida de maneira confusa. olhavam muito a minha boca, uma linha fina de boca clara, cor-de-rosa, sem batom; parecia adentrar dentro da boca, observar a gengiva vermelha, os dentes não tão brancos que ainda conservo inteiros, a saliva transparente que se esparrama em ritmo compassado, iam os olhos garganta dentro, o muco, os músculos, iam corpo adentro, tudo percorriam, dentro e fora; mesmo com a boca fechada, eles viam - não viam? iam os olhos, de uma ternura e de uma malícia incompreensível aos meus - olhos um pouco apáticos, numa eterna noite sem estrelas - iam os olhos conhecer o caminho do meu corpo. subiam os seios com delicadeza, desciam os vales, se deliciavam nas costas curvadas, contavam as vértebras, corriam pelas pernas, pela pélvis, pela vagina também adentravam! ah, que lembrança destes olhos! fazia-me mais excitada só de olhar lá dentro do que quando queria sexo, e fechava os olhos - tão queridos! - para gozar. lá dentro, seus olhos viam tudo, e eu não tive vergonha, porque eram olhos de um amor brando, um amor com trajeito de eterno. até as unhas dos pés, pintadas de esmalte incolor, percorriam os olhos entardecidos, um pouco tristes com o fim do corpo. e os pêlos da pele, procurava a raiz, e dos cílios, e dos pêlos do nariz. uma pinta ou outra que tinha no corpo, achavam os olhos vorazes, uma mancha de nascença por muito tempo se concentravam. tu tinhas olhos de artista! ou eram olhos de namorado.
mas que olhos o quê, nunca soube retribuir tanto olhar - tanto amor! - para dar. dos seus olhos me despedi, e não deixei mais que me desnudasse com um olhar abusivo. preferi outros olhares, por aí, de dias ensolarados, olhares inconstantes, tempestuosos, que me descabelaram, e me fizeram morrer um pouco. com eles eu morri, com os seus só vivi. e só hoje percebo os olhos que deixei escapar de mim, a preferir olhares frios, distantes, azuis escuros, negros e pardos. e só hoje te digo, sem medo:
nunca mais encontrarei olhos que me olharão do jeito que os seus foram capazes, olhares de um amor pueril, intenso e machucado. e dos seus olhos, não quero mais saber - não, a vida já é dor sem voltar para trás - mas também, não importa: jamais irei me esquecer, destes olhos de entardecer.

janeiro 13, 2010

escreva.

meus olhos já doem de olhar para a tela luminosa do computador. é que preciso achar algo para escrever, mas não há nada, tudo repete-se, e aqui dentro, há um vazio criativo. um hiato. mas é que é preciso escrever, é preciso navegar, entende? por estes mares já muito navegados. algo dentro de mim grita, esperneia, uma criança mimada que crio há muito tempo, e diz: vai, escreve. e eu lhe digo: mas o quê? e ela retoma: escreve. sem argumentos, sem justificativas. ficaria a pensar, quem é que mete uma criança dessas dentro de si mesmo? uma criança de perda de tempo e mimos inúteis. a gente a cria como garantia, eu mesmo respondo. em certo ponto, as metas parecem confortáveis, como num ano novo, e é preciso garantir o futuro dos seus sonhos, é preciso garantir a loucura que foge do real... e foi então que decidi: escreva. sem mais motivos, e aí já se cria a criança não-esperada.
e a partir disto, as metas internas se intensificam. alimenta-se, a criança cresce, gorda, dentro do seu ventre, da sua cabeça, daqui a pouco, ela é sua alma. até poderia ser bom abandona-la, numa lata de lixo, porque nem tantas pessoas ligam para esse tipo de criança, se foi esquartejada ou se foi despejada, só sentirão os outros se você foi prestigiado por gastar palavras no papel. e como isto não é meu caso, poderia sim... deixá-la à deriva. ela morreria, sem mais. e eu seguiria a minha vida.
mas já não é mais possível. não sei se é cordão umbilical, não sei se é ligação cósmica energética, talvez um contrato de adoção irrevogável, hein? mas ela está ali e é impossível despejá-la.
por isso é preciso escrever, sobre qualquer coisa. sobre arco-íris no fim da tarde, sobre a prostituta que chora na esquina. nem que seja metalinguagem, poema curto, frase de efeito, história longa e cansativa.
é preciso dispor as palavras, uma a uma, feito arquiteto, engenheiro, matemático. é preciso doar sua alma, a parte que cabe à criança enorme, que chega a ser maior que você, que atinge todo o mundo e quer a tudo engolir e traduzir nestes curiosos sinais gráficos.
é preciso escrever... só isso basta. mesmo a mim, tão pequena assim, neste mundo literário, neste mundo de blogs, basta para que seja cumprida uma meta de vida, uma meta do dia, certo entendimento de si mesmo.
por isso, tenho aqui uma meta a registrar, para dois mil e dez e para o resto:

escreva.