novembro 17, 2018

sobre a morte, ainda

1. estou lendo a antologia pessoal do borges; nunca tinha lido nada dele, embora sua sombra sempre me acompanhara. uma vez, mais jovem, numa feira do livro, rodei procurando pelo o aleph, rodei a internet também, e encontrei o aleph do paulo coelho. fui desistindo. tenho a mania da sorte, do acaso do encontro com os livros e borges nunca me aparecia num vitrine ou largado num sebo atolado. tampouco, ninguém me emprestava. que é que tem nesse homem? eu me perguntava, lendo sobre ele, imaginando uma precisão maravilhosa, que eu não entendia. finalmente, me emprestaram; de certa maneira, não me julgo por esperar o livro me encontrar numa encruzilhada do destino: alguns livros devem ser lidos em certos momentos da vida. isso minha mãe me disse, quando me deu o pequeno principe, leia devagar para entender, ela disse, leia de novo quando mais velha, também sobre alice no país das maravilhas, sobre o mundo de sofia. isso não me eliminou a ansiedade de ler certos livros, na verdade só a fez crescer. ter certa idade para ler certo livro me acompanhou e me fez abandonar livros grandes, por saber-me incapaz de continuar naquele tempo. já não acredito na idade, nem do tempo com que se demora nas páginas, mas existe, de forma borgiana, um tempo, algo, um destino de encontro de livros, que nos despertará para um zahir ou um aleph dentro de nós esperando para ser desbravado.
admiro muito quem presenteia com livros: ás vezes acertamos, ás vezes não. mas um presente é sempre um um bom momento para fazer o acaso mostrar seu rosto.


2. mas sobre a morte, ainda. até agora, o conto que me estupafou não foi nenhum dos quais ouvi falar, do que me contaram ao longe da vida. por isso, nunca saberei se é um conto importante ou não, mas é um que o próprio borges gostava - e isso não significa muita coisa, porque muito do que eu li no livro tinha uma reminiscência de autor tentando fazer justiça com contos que colocou seu empenho e coração e nunca receberam o prestígio equivalente de volta. o conto é o sul. de uma delicadeza que nunca deixa o leitor antever o que está em jogo: a última visão, sonho ou vida de um homem que morre. ao final, eu estava tocada. com aquela familiar, mas estranha, sensação de que nos despiu de nossa própria carcaça e com um toque leve e sereno de dedos escorregou sobre nossa carne macia, desprotegida. o corpo arrepiado por dentro, o silêncio do mundo orquestrando um estopor sereno. o pé ou a mão se contraem levemente, como que incomodados desse estado quase paranoico, contrário à sobrevivência - como se tivéssemos a beira de uma morte, o punhal no estômago, o sangue nos dedos e os olhos ao longe, alegres e finalmente sem medo. 

3. lembrou-me o capítulo da baleia de vidas secas de graciliano ramos. este, tão conciso e triste (e que provavelmente, na primeira vez que eu lera, aos dezessete anos, deixara-me naquela mesma situação: despida de mim) que poderia muito bem ser um conto isolado. no de borges, um homem com um passado e um nome que remete à ele: Dahlmann, um passado que se transfigura num sonho, num desejo de uma vida, voltar à estância do Sul que viveu e morreu o avô, que em Buenos Aires chegara de navio. no de graciliano, uma cachorra com um nome que não é seu, se não um símbolo da seca da família que a apadrinhou: baleia. seu último sonho, no entanto, não corre ao mar ou coisa que o valha, senão imagina o mundo que sempre viveu do modo como deseja: preás para caçar e fabiano, seu dono, gigante. os dois, em terceira pessoa, no seu tom impessoal e distante para, de maneiras diferentes, encontrar-se com o último desejo em vida, numa visão real que não deixa ebulir dela o que há do sonhado, do delírio ou mesmo da morte. Dahlmann, que sofre num hospital, melhora e é levado num carro, o mesmo que o trouxera ao hospital, à estação de trem onde poderá ver novamente a estância que tanto sonhou ver. o trem que o leva é um trem que corta o tempo, que chacoalha e solta fumaça para trás, para um mundo esquecido e deserto, para um mundo de homens com punhais que se matam em um duelo. Baleia, doente, sente-se caçada por Fabiano, suas pernas falham, e então vê os preás, vai para o seu paraíso. o paraíso de nenhum dos dois é feito de leitos de rio de leite e frutas num pomar: tem íntima relação com tudo o que viram, tudo o que conhecem até ali. se baleia, ao morrer, nos entrega seu sonho num movimento vertiginoso de graciliano do simples narrar de uma história para seu fluxo de consciência, borges alterna o narrar, ainda que sempre distante, com os pensamentos de Dahlmann, que segue sem suspeitar seu último sonho. quem decreta aquilo ser um sonho é borges. de um modo menos conclusivo e mais idílico, graciliano faz o mesmo.

4. o momento antes da morte. quando li o sul, então, pensei o que sofia viu antes de morrer. levando a fogo estes dois modos de encarar a morte, tenho fé de que nossa última percepção de mundo, se por obra de Deus ou da nossa mente, seria nosso mundo ideal, feito das coisas que vivemos e que estão em nossa memória, mas decoradas graciosamente com nossos desejos mais irreais, mais sedentos, íntimos. me deparo, então, com o problema posto. sofia tinha 4 anos, e são destes quatro anos que são feitos sua vida. desses quatro, dois anos ela  deitou-se em camas de hospitais, sofreu cirurgias, ficou enjoada por causa dos remédios; e também chegou em casa e brincou como qualquer outra criança. também desejou muito tudo o que as outras crianças tinham, escola e parquinhos. até agora, parece relativamente simples. mas se tenho como modelos Dahlmann, homem construído a partir de uma linhagem, que fez da sua vida uma elegia ao avô materno por gostar da terra argentina, homem símbolo de uma nação e de um certo viver e baleia, uma cachorra, que seus desejos mais complexos são simples como o amor incompreensível que sente por seu dono e pelo cheiro delicioso dos preás que gostava de caçar, mas que, sem passado e sem entendimento, é um animal vivendo no seu eterno presente. eis a questão: a criança não estará entre um e outro? como codificar a vida e o desejo de uma criança?

5. é difícil escrever a partir de uma criança, embora lembre-me agora de um conto de guimarães rosa que não me lembro o nome, o da criança vidente, mágica, que morre tragicamente. justamente, é um pouco mais fácil escrever sobre uma criança que morre acidentalmente, em que o fluxo garantido de sua vida é interrompido. no caso de sofia, que agonizou algumas semanas e viu seu corpo desfaceler pouco a pouco, o que sentia? sentia o hálito próximo da morte? sabia, exatamente, o que é a morte? baleia não sabia ao certo, a não ser a ideia instintiva da morte, a ideia mais do perigo da não existência do que a morte de um ser vivo. Dahlmann sabia como sabem os homens adultos todos, mas sua ideia de morte estava ligada aos punhais e batalhas, à aventura, ao assassinato antes da morte entre as paredes de uma prisão. outro problema que coloco aqui é como acessar o narrador de uma criança. uma criança sabe e não saber sobre tudo que nos rodeia, sabe como sabem os animais, mas um pouco mais que eles, porque a dimensão existencial da vida começa a nos penetrar desde que, imagino, aprendemos a nos comunicar. porque uma criança, como um adulto, usa para se expressar das palavras; e estas são responsáveis por criar um sentido da vida que é além do primário, faz-nos imaginar e instiga-nos a buscar símbolos, a entender uma vida através da metáfora. afinal, uma cadeira chama-se cadeira, mas a palavra cadeira por si só não quer dizer nada, se não estiver ligada à imagem de uma cadeira. a criança tem dentro dela um mundo de imagens mesclado entre imagens da morte existencial, as imagens do alcance e do submundo e as imagens do que é simples e raro, as imagens do seu presente, ainda não codificados com subterfúgios psicológicos ou filosóficos. o homem vive do passado ao futuro e o animal no eterno presente; a criança vive entre eles. ao tornar-se um homem, abandonará sem perceber as relações simples que tornam a vida fácil e surpreendente. a curiosidade do seu olhar pouco a pouco dará lugar a uma presunção de quem já viu muito e deseja ensinar ao outro. mas ela, enquanto criança, não é um cachorro. entre os seus, se esbalda em presunções e criações de mundo. minha problemática aqui é resgatar como uma criança se sente, para poder me afundar na sua última visão da vida. mas eu já não fui uma? de certo, embora, as impressões tenham se apagado pouco a pouco e sobrado alguns lances de dardos da literatura. com que olhos eu olhava o mundo, a morte? o primeiro a morrer na minha infância foi o cachorro de minha avó, benny. o segundo meu avô paterno, wilson. benny já estava doente, e como baleia, fora sacrificado - não com armas e a aventura ardilosa do sertão, tão parecida com o mundo do o sul  de borges, mas numa maca de veterinária, com uma injeção. meu avô morreu de infarto repentino, dizem, na cozinha. minha avó conta que o encontrou caído no chão com uma bacia perto. sempre imaginei que ele caíra com a parte de trás da cabeça na bacia de metal, na saída da cozinha. meu pai disse: seu avô ia andar todo dia, estava se cuidando. e também, mais tarde: seu avô fumava dois maços de parliament por dia, depois parou quando o cunhado morreu de cancer de pulmão. na minha rasa história da infância também morreu o cachorro e o homem cheio de passado. mas não me lembro da suspresa, e não me lembro de sentir angústia. fiquei triste, mas a angústia, aquilo que nos faria pensar: o que é isso? o que é a morte? parece que não me acometeu.
bem, a verdade é que um ano após meu nascimento meu tio, irmão de minha mãe, morreu. eu não me lembro dele, e por isso, não o contei como os primeiros seres que realmente tinha afeição e que morreram na minha vida. mas talvez a chave não seja a afeição, mas sim a ideia da morte. mesmo com um ano, eu devo ter sentido o que é a morte. eu devo ter sentido o luto, e também a luta dele, que morreu de aids, devo ter visto o rosto magro no fim da vida, embora tenha esquecido. seu tio te deu uma boneca linda, meu pai me disse, e você foi lá e rabiscou toda a cara da boneca. eu me lembro da boneca, mas não sei se a imaginei recortando as tantas imagens de boneca durante a minha vida ou se a vi numa foto que era criança. era uma dessas antigas, com a cara de cera, as bochecas lustrosas e dois olhos de gude com cílios espetados, a boca miúda no meio, com aquela cara de terror. os cabelos de nylon quase reais em duas chiquinhas e o vestido amarelo. não me lembro da cara rabiscada, mas a refiz no meu imaginário: as canetinhas de diversas caras obstruindo a cara da boneca. você rabiscava todas suas bonecas, disse meu pai. por quê será? que criança eu fui e que eu pensava ao riscar o mais próximo de um rosto humano, embora inumano? riscava porque o sabia falso ou justamente porque ela tentava imitar o real e era possível estragar seu rosto? riscava para tirar dela a vida suposta que enfiavam ali? riscava porque os humanos, hora ou outra, acabam por morrer e deixar a terra para sempre? 

6. o que me fez pensar, e o restante do livro do borges ajudou, nos seres que matei desde que sou gente. um periquito, um ou dois peixe beta, um ratinho de estimação. todos por inanição. não são homens adultos, nem sequer cachorros - animais mais próximos de uma condição humana aos nossos olhos. o primeiro me aterrorizou. eu insisti para a minha mãe ter um bicho e se não fosse cachorro, que fosse um periquito. com onze anos ela me disse que eu teria que alimentá-lo. claro, esqueci. como esqueci do beta e do ratinho, mais velha. uma manhã antes de ir a escola, ela anunciou: o periquito morreu. e o que você fez, perguntei assombrada? ela embrulhou num jornal e colocou no lixo. eu não sei se essa é uma memória inventada, mas lembro-me de que no meio do lixo havia um amassado em jornal. dentro estava o corpo do periquito. esta morte pareceu me definir e me impactar mais que a do cachorro, que não foi minha culpa. embora tenha conhecido intensamente o conceito de culpa e vergonha naquele instante, isso não me livrou de matar outros bichos, menores que um periquito na cadeia da afeição, da mesma maneira. mais velha, eu não senti remorso, mas lembrei do periquito. o engraçado é perceber que eu, tão inofensiva e não afeita a facas punhais e armas de fogo, eu que como mulher não tenho um passado a qual me espelhar pelo gosto do perigo e do sangue, tenha matado um bicho ou outro. todos porque, talvez, me considerava superior a eles ou que a natureza ia prover o que lhes faltava, ainda que estivessem enjaulados, presos em aquários e caixas. e que por isso, não podiam lutar pela sua sobrevivência. tinham de esperar a mão de deus, minha mão. e ela não lhes chegou. e que, sem se importar se eles tem alma ou não, não fiz disso um carma, a não ser com o periquito, quando fui criança. ter a morte nas mãos, mesmo que uma insignificante, foi infinitamente mais angustiante que ver outro morrer, pelas mãos de outro deus. meu tio morreu, talvez, de um gripe ou pneumonia, o anjo da morte comandado pelo avançado estado de fraqueza do seu corpo provocado pelo vírus hiv, um deus inventado por alguém. benny morreu de velhice e câncer, porque tinha de morrer - o deus natural que dá a vida e a morte sem se importar com que resta no meio delas. meu avô, de um infarto fulminante, o deus talvez bondoso do acaso insuspeitado. minha irmã, de um câncer destruidor alocado no cérebro - deus em todo seu acaso cínico e terrível, um deus medieval do antigo testamento que cobre a terra de água e manda um irmão matar o outro. minha tia-avó morreu de hepatite, amarela, e esquecida. minha bisa heny, morreu de demência, amarrada numa cama num asilo, depois de uma vida vibrante, o deus da decadência, o mesmo da minha tia-avó. o deus fulminante e bárbaro matou a mãe de meu padrasto, que eu gostava tanto, regina, contorcendo seu pâncreas sem motivo algum. o periquito, o rato e o peixe, porque não lhes chegou a comida que deveria chegar. agonizaram; quase todos.

7. talvez em algum outro momento, eu tenha matado um humano, um igual. feito-me deus e diabo ao mesmo tempo. não com sangue nem com um estouro de bala. mas, aos poucos, continuamente, como uma mulher que mata seu malfeitor como pode, ao longo dos anos, para se ver livre dele. além dos bichos, matei inúmeras plantas. ás vezes, eu as olho agonizando, com as folhas murchas e tristes, pedindo por água, e não coloco. um instinto terrível vive dentro de mim sobre matar o inocente, aquele que depende de mim. talvez eu tenha matado um filho. sem ser deliberadamente, apenas tocando o barco da vida e sentindo o olho sangrar toda vez que o olhasse agonizar. o que a planta, em sua mudez existencial, percebe ao morrer? mais de uma vez matei elas afogadas. a água mofou e corroeu suas raízes e eu chorei porque, daquela vez, queria fazer o bem, queria amar demais e vê-las vivas. mas eu não podia compreendê-las, suas folhas despencavam desinteressadamente. todos os dias, cuidar de minhas plantas e da minha gata é confrontar com meu eu-assassina. a assassina da inanição e dos maus tratos. é quase cômico como mora dentro de mim este tipo de assassino, de deusa: feminina, passiva-agressiva, afoita ao sangue mas afeita à palidez. quando fico desesperada, deixo minhas plantas morrerem, minha gata suja. um deus poderá ser um também um humano que em suas aflições deixa seus dependentes morrerem displicentemente? este deus não sabe como amamos os outros que aqui vivem. este deus não entende o amor, e sobretudo, não entende o medo da morte. todos dias, esta deusa se depara com sua última visão de vida. está presa num delírio sanguinolento de seu último desejo sem jamais falecer. 

8. sobre o último desejo de minha irmã, que avivou seus olhos antes de morrer pacificamente e tediosamente numa cama de hospital, algum dia escreverei. por enquanto, devo escrever sobre uma criança que morre tragicamente. entender seus mecanismos, antes de me afundar nesse poço lamacento que é fazer da própria vida ficção. da própria tristeza e história, um delírio escrito.