outubro 28, 2012

embebida de camomila

e você me diz pra não ficar nervosa. embebia a chupeta das crianças em camomila. com o tempo comecei a sentir gosto de camomila em tudo. o garfo era de camomila, os cantos do copo, até o papel de chocolate que você sabia que eu gostava de chupar, em vez de chocolate derretido, era só camomila. você dizia que eram meus genes que as crianças tinham. essa coisa maluca, apressada, corria e gritava, gemia de noite, rolava de cama. meus pequenos tiveram insônia, mas por causa da merda da camomila que tinha em tudo, ficavam sentados na cama, os olhos pequenos, olhando para frente pra olhar pra dentro de si. a noite inteira insones e estáticos. coitados. eu não sabia agir, ficava olhando pra eles, tentando adivinhar o tormento que seus olhos apertados passavam. o que viam. deviam é ver um mar de calmarias, e a alma deles - a alma, que é igual a minha, não os genes, a alma, que eu passei com meus dedos que os faziam dormir enquanto você, você fora ia - a alma deles pedia tormento. e você me diz, me disse, a vida toda: calma, mulher. calma, mulher. era de se estragar toda. como calma, como calma? o mundo acaba a cada segundo que passa, e é roupa pra bater, e é filho pra chorar, e a panela de pressão chiando no fogo, e a conta que chega e não se paga, as aulas particulares de espanhol, e a melancolia que dá no final de tarde, mas como se no final de tarde, chega você e seus olhos morimbundos e é marimbondo pra espantar e comida pra esquentar, e filho pra chorar, e o jornal na televisão, com a sua voz grave, a me importunar, a me encher o tempo de tragédias descoladas e a vizinha que liga e diz: a filha da maria se suicidou. se suicidou, se suicidou, mas o tempo corre e voa e o filho chama, a lição de matemática e o nenê que vomitou, é hora de limpar e outro ardia de febre e você ligava a tevê vai ter jogo, benzinho, calminha. as crianças já dormindo e eu lavando louça o mundo se acabando e a vontade de chorar vem devagar, tomando todo corpo, toda louça aguada, e ainda tive que ouvir a sua voz: que há, noite tão fresca. a filha da maria se suicidou. quem é maria. a filha da. mas quem. não sei, mas se. suicidou. não tem tempo pra cuidar da tragédia da vida, e você me olha torto se eu grito e se eu jogo o controle da tevê do meio do lado, as pilhas voando e você repetindo e o dinheiro e o dinheiro e o dinheiro. não sei. lá vem você com essas suas crises de ansiedade, a gente veio pra longe da cidade pra que, vai cuidar da horta. meia noite e a horta quieta. olhei a horta, as folhas de rúcula descansado, as de cebolinha vigiando. olhei a horta, olhei a horta, não sabia, nunca soube, dor nas costas, dor nas mãos, eu não sei. a filha da maria e as cebolinhas ali verdinhas, tão vivinhas, tão bem cuidadas, tão felizes, disse ele, as plantinhas da nossa, tão felizes. elas. tão. arranquei-as todas, as mãos cansadas, arranquei-as da raiz, do jeito que não podia, espalhei terra e comi cebolinha suja, comi comi comi. que é você disse que é você é louca é afobada é idiota. elas eram felizes. felizes. eu comi a felicidade. veja. é verde. é verde ou é terra. é felicidade. eu comi um pouco pra ver se tampava esse buraco no meu peito. que buraco você disse, enfiando o dedo por debaixo da minha saia que buraco, que porra de buraco, vem cá neguinha. no meio da cebolinha e se você me comesse me comesse porque comia a felicidade se me comesse ia dizer: você sabe, ando broxado há tanto tempo, te comi pra ver se você dormia. vou dormir na rede, dorme você na cama sozinha. você vai me comer eu disse? você me olhou triste, cheirou seu dedo e disse: isso é tudo, nesses tempos, não sei, não ando conseguindo. não pude mais. dedo também tenho o meu, picado de agulha do remendo da roupa das crianças, o meu dedo. saí correndo e depois de ter arrasado a horta toda, não sabia. você disse, vem cá, camomila. você precisa. eu disse não, merdinha, não, eu preciso estourar, eu preciso estourar, eu preciso estourar. não me vem me enganar, engessar meus nervos, botar esparadrapo no meu coração que bate inquieto desde as seis da manhã. bate assim, de paixão, pela vida, de morte, pela pressa, e o corte, pela vida, que me engole, e eu já não sei. deixa-me aqui. você foi deu de ombros deitou-se na rede dormiu. eu ainda viva acordada os olhos estralados, passei o dedo no chá de camomila e me comi. me estraguei, sozinha, quis me arrancar, fazer das minhas tripas o almoço de amanhã. mas daqui quatro horas chega o menino da aula das seis, holla que tal? e tem que ainda esconder de chorar de saudade da abuela. todo dia esconde-esconde e você camomila. eu só quis. a filha da maria. tão.

outubro 17, 2012

a vida é um nheco 2

quando eu era pequena, queria ser uma vaca. vaca pra sentar e só ruminar a comida, entendeu? ruminar e ruminar. a comida. a gente cresce e nem sabe. a vida é uma vaca. a gente rumina rumina tudo. e faz grunhido e faz gemido. e de resto, resta a bosta, que válá, meu amigo, não é a sua bosta da sua vida, vá com calma. é isso: comeu cagou simples assim. minha infância é de máquina de filme automática. não se sabia nunca comprar filme, inda mais pra automática. mas a gente pegava e tirava foto do zoologico. e quando eu era pequena, ainda, no zoologico me encantei por um orangotango. perdida da turma, fiquei vendo o orangotangão, laranja, agindo feito humano. pensava: que isso, que bicho, feito gente, e eu, seilá, que macaco, essa gente, que bicho. as girafas pescoçudas e toda aquela história que contavam. passou por ali um menino, todo tonto, dizendo, que há, apaixonada pelo orangotango. que há, apaixonada. é, não é. penso assim: a vida também foi uma vaca - mas não foi vadia, porque o desgraça é homem branco, e o homem não sabe, vadia, não sabe, vai morrer sem saber, que há. apaixonada, que há, talvez. me imagino namorando um orangotango. bem melhor do que os enamorados que caí na lábia, veja bem, ruminando-ruminando-ruminando-hum-hum. mas que hora, eu toda vaca enamorar orangotango. acho bem contado. tanto me fez. a gente vê fotografia antiga e pensa: é papel. depois, amanhã, não sei, não penso muito no amanhã, vou me desgraçando no hoje e ruminando a comida de anteontem. a vida é uma vaca, nem grande, nem gorda, nem malhada: falta pêlos, falta osso, falta carne. é vaca magra desde sempre. e o mato rareando rareando quanto mais a gente vai envelhecendo, os cabelos brancos, uns fios de náilon brancos esquecidos na careca. mas tá tudo certo: vai se ruminando se ruminando, como-se o papel das fotos antigas. e depois, não sei, não me pergunte. vão comer-se nuvens, essas coisas, coisas invisíveis, a vida vai deixar de ser vaca, vai ser, sei lá, pac man, se não fosse o amarelo. que a vida não pode ser amarela, que essa cor me dá náusea, que parece que tudo que é amarelo não se finda. o sol, me disseram, quando pequena: vai explodir, taí, me queimando por dentro das roupas todo meio-dia. e como se não bastasse ter que sempre ruminar tem de lamber as feridas que o sol deixa machucando. e tudo que eu queria, eu disse, me sentei no sopé da montanha onde tinha um punhado de mato - quando se é criança não pensa em providência, mas eu, veja lá, não penso muito nisso - botei o capim na boca e disse: sou uma vaca vou ficar por aqui a ruminar, licença.

que nheco de vida

ai, meu bem. deixa disso. lambe-me a boca e acabou-se. se lava direito, postura reta. dá aqui uma tragada. dá uma tragada no meu peito. ai, meu bem. que nheconheco essa vida. que tanto se fala? fala de menos. ai meu jesus. deixa disso, rancor de outro, e tal, poesia barata. falar de amor, todo mundo fala. falar assim: sem você não vivo, qualquer um com água na boca diz. água na boca todo mundo tem. é saliva, meu bem, saliva que eu preciso. menos fala-fala. ai, meu bem, e o mundo? anda torto, tão torto, pra gente ficar aqui se torturando. fala menos e fuma mais. ai, amoreco. deixa de falar de dor dali e dor daqui. coma bem, rapadura, chupa aqui, ó. cana de açúcar, limão com sal, ai amado. essa dor tão pouca, meu bem, que quem doi não fala, não: geme. ai, meu bem. geme aqui no meu cantinho que tá tudo bão. vamo indo, amorzinho, vamo indo. com a graça divina, simpatia na gaveta, cada são jorge com seu dragão, eu e você nessa lua-loba. ai, meu bem, vai-te embora, vou-me doida. a vida anda, desanda, não liga pressa nossa fumaça, nosso fuzuê, uns motim de picuinha à toa. vai-te indo e vai-te fazendo. não faz assim, não, meu bem, o mundo não precisa de ti, mas o contrário, me diz, é fato, ai, meu deus, como não? e o mundo forma desfolha, a gente tenta, ué. a gente tenta, benzinho, que é que tem?

outubro 10, 2012

unilateral

joguei as cinzas na bosta do remédio que eu tomei por causa de você. eu sei - não posso, assim, jogar a responsabilidade unilateralmente. mas agora é preciso: porque doeu. e quando doeu, doeu mais porque era vindo de você. doeu porque junto dessa dor física vinha-me a memória de você. porque estou agora interessada no efeito: no meu efeito, na minha dor. deixa eu sussurrar pra você a minha dor. queria eu que você pudesse sentir. mas é impossível, porque você não tem útero. porque você não vai mijar e tem a impressão que as paredes do seu útero estão se descolando. como se quisessem descer. como se meu próprio útero se recusasse a permanecer nesse corpo lacaio. como se não fosse mais possível ser mulher. e se não sou mulher, o que restou de mim, nada. restou essa tal dor atemporal. que não pôde ser medida ou relativizada: porque já não possuía humanidade. fui me rastejando ao banheiro para receber o golpe final, como vou me rastejando pra algum dia você me dar esse golpe também. eu já não acredito. vou serpenteando com o resto do corpo que ainda é meu. o bruto ficou nas suas mãos: mas, pena, você não se lembra. sou toda líquida agora, vou-me escorrendo pelas descidas e empaco nas subidas. mas, pena, você não sabe. você está enorme: engoliu toda a gordura. você está enorme, mas pena, você não percebe. seus passos estão pesados, seu mundo pesa na coluna. mas, pena, você se pergunta por quê. e talvez tenha os olhos tristes ou temerosos. mas não consegue ver o tamanho da sua barriga: dentro dela estamos nós. despedidas de nós mesmas, da nossa máxima irrisória, o de ser mulher, deixamos que você  carregasse nosso grosso, nosso todo, nosso útero descolado. sobrevivo fragmentada e te olho passar com meu corpo no seu. pediria de volta se não fosse doer demais. pediria de volta se não houvesse em toda essa história de sangue um último regojizo. que você anda curvado por nossa culpa, e ao menos, sente esse peso: não sabe, mas sente. te ver pesando do meu corpo no seu é uma alegria. como cancro, meu corpo no seu, e eu despedaçada. como cancro, meu corpo te corroendo de pouco em pouco, o mundo pesado demais para levar nas costas, nas pernas. há de ter alguma troca, nenhuma dor é unilateral.

outubro 07, 2012

conflito de geração

os pais vão ficando mais crentes
tementes
os filhos vão estando mais ateus
à Deus


eleições paulistanas

vou voltar pra são luís.


o cinismo

eu te odeio de tanto amo.


o amor

primeiro eva abortou
mas o filho vingou.