fevereiro 27, 2011

para ler nunca mais

O hálito da sua boca fez molhar-me as saias. Chuva agridoce. Sentiu o furor dos meus olhos. Segundos que são eternidade, um olho noutro, um olhou no corpo doutro. Nada mais que corpo: alma lavada e livre passeia sem compromisso. Deixemos que o etéreo se afogue em sua salubridade, aqui queremos o concreto sadio dos corpos. O irresistível de ser corpo e desejo. De ser tocável e tocado. E de depois de corpo nada mais que palavras poucas, para oprimir o silêncio que deseja espaço. Quis preencher tudo com fugas e gemidos, respirações e até risadas nervosas, quis que o ar se enchesse de onomatopéias: não suporto o silêncio dos poetas. E não há poetas entre nós. E por grunhidos nos comunicamos: basta corpo, desejo e conversa fiada. Fiando a teia para enroscar alguém em si. Aranha que somos, fortes que somos, vivemos a fiar teias a fim de prender os outros sem jamais se deixar prender. Sei que tem tanto medo como eu de um dia estar encurralado em uma teia de fios invisíveis, perceber já muito tarde que não há movimento das mãos nem dos pés e não há grito que nos salvará. Moscas à espera da morte. Morte lenta do corpo, nascimento instantâneo da alma. Aí que as línguas se enrolarão em poesia, mesmo que ninguém saiba ritimizar. Aí que o silencio feito fogo queimará nossa eloqüência estúpida. Alma de pés no mundo, olhos vidrados e tão logo – assim nos parece – o óbvio sofrimento, latente, eterno, o quente das lágrimas nos olhos aquosos, garganta que arranha, volta, minha aranha. Não pensar: a alma não nos interessa. Em você quis ficar, o porquê nunca saberei, quis ficar, entrar, à vontade, sem delongas. De você quis sair, tão logo, tão sem tato, como desabrigada, quis fugir para a chuva, ficar saboreando a confusão da minha própria alma. A sua que se dane. A nossa que se foda. Literalmente. E por isso o seu chegar me fez molhar, e o seu ir me fez secar; rápido, como se sua estada ali não tivesse estado. Bobagem. Não adianta escrever, me explicar, me traio a cada palavra digitada. Nosso silencio de grunhidos não tolera esse ato. E para não ficar de fora desse jogo, eu obedeço as regras sem nem bem consultá-las. Paro aqui para não mais voltar, nem ler, nunca mais.

fevereiro 04, 2011

doses de sono

injetou doses de sono sorumbático nas veias. assim seria possível viver. dormir. hibernar. morrer. o sono viria a matar o tédio, a matar o tempo. em sono, o tempo inexiste, corre solto sem contagem. coma. e os sonhos na mente branca expandem-se. há de virem, com os sons, as explosões, as cores vivas. há de virem, mesmo se em preto e branco. e se não vierem? olhou as veias roxas recebendo a dose, contorcendo-se um pouco contrariadas com o inorgânico veneno que admitiam para dentro de si. e se for um longo sono, apenas sono, apenas olhos fechados, respiração lenta, corpo sob controle, mente vazia, meditação intenvisa, carma budista, e se for? bem, não importa. não se importa porque mesmo se sonhos forem vividos, quando consciente, ele não mais se lembrará. não se lembrará se sua viagem inconsciente for uma tortura silenciosa ou uma experiência vívida. então, era melhor deitar-se e esperar o sono chegar. quanto antes fosse, melhor. para que não pensasse no que deixava vivendo desacordado nisto que insistem em chamar realidade. vivendo, os outros, com olhos pregados, grandes olheiras, trabalhos incansáveis, sem noites nem dias. vivendo, alguns, uns, que um pouco se importava. os deixaria. sentiu o sono pesar sob suas pálpebras, sentiu seu hálito morfino aconchegar-se bem perto, sentiu que agora partiria. antes de se deixar levar, pensou nele. e com a imagem dele, por um único instante quis se libertar de tudo, cortar as veias que continham aquilo, quis voltar à vida, ao dia, ao sol, quis sentir-se cansado, quis o tédio e a dor na coluna para ter ele ao seu lado. mas isso foi por uma fração de segundo apenas, e o sono o levou sem delongas nem misericórdia. o contrato não permite retroativos. o sono foi, e sob as pálpebras ainda meio abertas dava para ver a imagem dele formada diante daqueles olhos sonolentos. dormiu, por fim, e não há mais o que contar: ninguém nunca saberá o que se passa quando decide-se pela leviandade de deixar de viver em alma, ser, para os outros, apenas corpo estirado na cama, e, então, entregar-se às fantasias (ou ao vazio) de sua própria alma.