fevereiro 04, 2011

doses de sono

injetou doses de sono sorumbático nas veias. assim seria possível viver. dormir. hibernar. morrer. o sono viria a matar o tédio, a matar o tempo. em sono, o tempo inexiste, corre solto sem contagem. coma. e os sonhos na mente branca expandem-se. há de virem, com os sons, as explosões, as cores vivas. há de virem, mesmo se em preto e branco. e se não vierem? olhou as veias roxas recebendo a dose, contorcendo-se um pouco contrariadas com o inorgânico veneno que admitiam para dentro de si. e se for um longo sono, apenas sono, apenas olhos fechados, respiração lenta, corpo sob controle, mente vazia, meditação intenvisa, carma budista, e se for? bem, não importa. não se importa porque mesmo se sonhos forem vividos, quando consciente, ele não mais se lembrará. não se lembrará se sua viagem inconsciente for uma tortura silenciosa ou uma experiência vívida. então, era melhor deitar-se e esperar o sono chegar. quanto antes fosse, melhor. para que não pensasse no que deixava vivendo desacordado nisto que insistem em chamar realidade. vivendo, os outros, com olhos pregados, grandes olheiras, trabalhos incansáveis, sem noites nem dias. vivendo, alguns, uns, que um pouco se importava. os deixaria. sentiu o sono pesar sob suas pálpebras, sentiu seu hálito morfino aconchegar-se bem perto, sentiu que agora partiria. antes de se deixar levar, pensou nele. e com a imagem dele, por um único instante quis se libertar de tudo, cortar as veias que continham aquilo, quis voltar à vida, ao dia, ao sol, quis sentir-se cansado, quis o tédio e a dor na coluna para ter ele ao seu lado. mas isso foi por uma fração de segundo apenas, e o sono o levou sem delongas nem misericórdia. o contrato não permite retroativos. o sono foi, e sob as pálpebras ainda meio abertas dava para ver a imagem dele formada diante daqueles olhos sonolentos. dormiu, por fim, e não há mais o que contar: ninguém nunca saberá o que se passa quando decide-se pela leviandade de deixar de viver em alma, ser, para os outros, apenas corpo estirado na cama, e, então, entregar-se às fantasias (ou ao vazio) de sua própria alma.