outubro 25, 2013

primeira carta bélgica

faz frio lá fora. mesmo assim eles atam fogo nas coisas. eles atam fogo, nos entulhos, nos pneus, nas misérias: restos da civilização simbolizando seu fim eminente. faz frio e eu tenho medo, um pouco de. que tudo isso seja mesmo fim: para-além do signo. daqui onde eu moro, da janela do meu prédio, a rua efusiva, não tanto palco das atrações fulgurosas, das marchas incansáveis, mulheres e bebês ainda caminham, embora a lusco-fusco as sombras tem sido mais ameaçadoras, as babás chamam as crianças para dentro: é do medo da noite ser o palco do fim de tudo. daqui da janela, se vejo meninas solitárias perambulando, moços fumando com algum resquício de sorriso, não só o terror das grandes avenidas, dos boulevares de gente nova escorraçada. lembro-me de você. a chama acesa na boca do moço, você. esse fogo que não se alastra: se consome na sua boca. perto de você. se meu corpo ainda se dói de pensar que tudo vai ser lentamente destruído, rapidamente abandonado, que sobrem só as multidões até que elas se desfaleçam em si mesmas (tenho sonhado com gente comendo gente, então), dói-me você. que seu corpo moço, esbelto, suas mãos delicadas, de unhas curtas, seus olhos de ingenuidade não sejam parte da turba que se acabará em si mesmo: seja parte do meu corpo, resistente, de aço, preparado contras as intempéries, resguardado nas quatro paredes. dói-me o mundo, que no mundo, você. dos sons dos tiros cada vez mais próximos, a cavalaria imensa e cega, do estômago vazio, você. tão bonito sorrindo acendendo um cigarro sabe-se lá porquê levando tudo à brincadeira, me acariciando entre as sombras, bonito. você. que precisa vir comigo, que precisa vir comigo, que precisa vir comigo. que precisa estar comigo, onde vedarei bem as portas e as janelas, desligarei de vez a tv e a internet, vedarei a luz e a informação, você, onde nos resguardaremos, celebremos o fim do mundo nós dois: dois corpos nus, as velas trêmulas, nosso estoque de sardinha enlatada. adiar o fim do mundo. o quanto aguentar. você. só com você. e o tempo retroativo, e a bomba retroativa, nada disso nos importará, se aqui, seguros e em carne, estarmos. o resto - as marchas, as profecias, os estampidos - serão nada mais que sonhos, projeções, fantasias, brincadeiras de tabuleiro. o mundo será nosso brinquedo, conquanto amemos. amor. você. venha à minha casa, depois de amanhã às 19h, tenho todos os mantimentos, os cobertores, os ventiladores. te espero ansiosamente.

outubro 24, 2013

primavera

acende o cigarro na boca do fogão, maninha. faz três dias que eu não vejo o isqueiro ou alguém passou aqui e levou, com certeza. senta um pouco, que vida longa. quando acordo meio-dia o dia todo é só uma pré pra noite absurda. mas as noites tem sido um pouco tediosas. luar moroso, nenhum astro-vênus a guiar o meu caminho. a luz do poste amarelada, mofando, esquecida. a mesa de plástico amarela, na calçada, invasiva. gastar o salário em pão amanhecido, maninha, amarelinha pra condecorar a vida. e tudo escorrega devagar, tua mão. a conversa roda angulada. tenho pouco a dizer, invento qualquer. resta roubar esse copo do bar.