março 29, 2016

pai

decreto aqui por escrito e contrato o fim do nosso inverno.
fosse eu a mãe, a minha, teria saído de casa, olho roxo, dor nas costas, assinado o papel, entrado na justiça. divorciado, embora nos olhos da minha filha pequena sobrevivam os olhos dele. e os pés dele. e a sombra dele.
esperaria que com este fim, este contrato que realizo comigo e comunico a você, eu me livraria da sua sombra que se escondem debaixo das minhas gorduras mais reconditas. mas a sua sombra estará, e os seus olhos arregalados de louco, e a pele vermelha de louco andarilho, eu lembro antes de dormir. a imagem de um fantasma em carne viva.
não é sobre matar metaforicamente o pai, é sobre deixar ele morrer em vida. tenho inveja dos pais que batem em suas filhas e elas podem lhe botar ordem de restrição. inveja dos pais ausentes, que se casaram novamente, dos pais ricos, que saíram do país e gastam dinheiro com putas, dos pais internados em hospital psiquiátrico. confesso o medo de nunca mais te ver, junto do terror que tenho de te encontrar sem querer.
fosse você realmente louco estaria internado escrevendo poesia simbolista e talvez eu tivesse saudade de te conhecer e talvez eu tivesse ódio do isolamento aos desajustados.
mas a minha história é pobre, é simples. eu mesma operarei o isolamento da sociedade carcerária, eu mesma me despeço de você, sem conseguir lidar com seus rompantes, suas mesquinharias, suas ilusões.
a sua ideia de deus vingador em vida, a sua ideia de morte como presente desse deus, você no centro. tenho dó, e todo dia terei que lidar com a dó e com a culpa de ter decidido te deixar.
mas não é na minha alça que você vai se pendurar e perpetuar seu ciclo de horror. eu não te darei conselhos.
eu não sei quem você é, o que você pensa e o que você vive na sua pele que é ódio e terror puro. que é ressentimento amargo e um amor de monstro.
um amor que engole e mata, em nome do amor, que pede carinho e atenção, em nome de terror. eu não sou a sua filha.
eu sou uma mulher com sua própria corrente sanguínea, e seu dna que em mim replica, meto-os no lixo. eu sou tóxica, não sou boa, não devo ser, não devo aguentar. eu não sou somente a sua filha, a sua menina criança de olhos grandes e sorriso fácil, deslumbrada, recebendo as ondas pequenas do mar nos pés. você está em tudo que eu aprendi a amar: o mar, as pedras da praia, as árvores, os cachorros, bolo de cenoura, tudo que é simples, divino, selvagem.
você será para mim a pedra que subo, nada senão a pedra, sua imagem e seu rosto lá estampados, você estará lá resmungando fatasmarias, mas não em corpo, não em discurso, não ao meu lado.
é esse difícil adeus que este contrato aqui fala por si mesmo. um adeus que aperta as tripas internas, que me dá azar cármico, ondas de ódio ao meu redor.
eu não sei o que você deve fazer dentro da sua loucura; eu também tenho a minha; eu também não sei o que fazer. se eu fosse mesquinha, lhe desejaria outra família, um emprego estável, tudo para você se estabelecer enquanto homem, enquanto paz.
você não quer a paz, nem a estabilidade, porque é um mártir da destruição senil.
então eu não sei por quais caminhos seus pés vão caminhar, mas espero que alarguem os mundos e que espantem a vida normal e tranquila dos que andam sem olhar para os seus temores.
mas não mais a minha, eu já tive a dose suficiente.
eu não quero a culpa de deus, eu não quero a culpa da filha, eu não quero o amor.
eu não quero o amor; se ele é feito de sal e chama.
que este contrato sirva para que eu me lembre, como um alcoolicos anônimos, nas minhas próprias recaídas, nas doses de auto-mutilação, de perdoai eles não sabem o que fazem, de cordeiro de deus que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz, de um amor construído e injetado e forjado pela própria relação que se dá.
ninguém é obrigado a ser pai a ser mãe ou a ser filha, justamente por ter nascido em seio familiar. a aprender a moral e a ter boa educação e a amar de bom grada e de ser grata. se você me chama de ingrata, eu concordo.
mas não posso continuar justamente por esse compromisso lascivo que é a gratidão. eu não devo ser grata. ninguém deve ser grata. esse compromisso não-escrito, memorial, da ordem da natureza; que visa apenas a continuar.
se você não me decepcionar, será o mártir da destruição que eu penso que é, e não me cobrará gratidão.
porque gratidão é coisa de gente rica, ajustada, estável e contínua.
nem eu, nem você merecemos isso.