julho 27, 2010

sobre se reerguer (ou não)

escuta, achei melhor arrancar meu coração. cirgurgia simples, quase indolor. foi durante o sono, porque consciência, quando tá ativa, enche o saco. vem cheia de indagações, vem cheia de incertezas, vem cheia de pavores. foi lá, feito linha tracejada em volta do órgão, e em volta do órgão, o tirei, completo, ainda bombeando um sangue invisível. foi assim: decisão tomada de uma hora para outra. e foi assim: quando você se foi. porque é preciso saber lidar com a partida, é preciso saber lidar com a ausência. poderia, então, começar a ir num analista. poderia, então, me afundar de vez na vida. mas não: preferi não sentir mais dor. não sentir mais nada. não querer sentir, só esquecer. cada dia é um dia: junto do coração me vai a memória de supetão. a memória é recheada de lembranças sentimentais, sem as tais, deixa de existir e fica aquela... funcional - que em mim pouco funciona, mas veja lá, dá para se viver. e por aí fui... para cada dia rir de novo da mesma piada, estar bem com as mesmas pessoas, que é para deixar de perceber que você não está mais aqui. porque com o coração se vai a esperança, essa agonia que insistem em otimizá-la, mas não passa de espera dolorida, ferrugem que corrói.
mas não - pior que não, não tirei meu coração, não ousaria a tanto, não poderia com isso. sem coração de que adianta viver? e se vivo é para te homenagear, para ser um pouco daquilo que você me ensinou a ser.
acho bem que o costurei, sim, mal sei costurar, mas acho bem que sei costurar coração. é preciso agulha, é preciso linha, é preciso falta de amor próprio. costurar o coração pouco a pouco, encapá-lo, feito almofada, patchwork, bordado, crochê, falta-me a técnica. costurei com linhas tortas, com desajeito, entre lágrimas que não cessavam. eu estava tentando fazer elas pararem, e assim, encapado e dentro do meu peito, eu poderia esquecer, eu poderia deixar de esperar, eu poderia fingir que não tinha coração. bate ele, agora, o suficiente para me deixar viva, para me deixar sentir um pouco que seja.
e pela falta de técnica, pelo desajeito, pela falta de conhecimento de como se deve proceder nestas horas funestas, deixei vários furos. por estes furos, conectando o lado de dentro, o coração quase farto, e o de fora... ainda sinto sua falta, ainda me lembro do seu riso e ainda espero que você esteja, algum dia, do meu lado. que você esteja, algum dia, para me fazer feliz como fui com você. é carregando tristeza e a despejando na veia, por estes furos finos, que vou sendo tomada, de corpo inteiro, por ela, tornando-me mais pálida talvez. tristeza essa, ácida, constante, invasiva. jorra com intensidade quando passo pela estante do meu quarto (e lá estão suas bonecas de pano sorrindo ironicamente) pelas lojas de brinquedo pelas ruas pelo milkshake pelo mc donald's pelos livros infantis pelas crianças outras por tudo que eu sinto, irreversivelmente, eu sinto, vontade de destruir. e torna-se branda, quase imperceptível, quando não estou sozinha, e então minha costura bem funciona, veja só: eu rio, porque me esqueço, eu amo, porque me convem, eu sofro por causas pequenas. só assim eu conseguiria viver, aos trancos de não ser inteira. porque ser inteira, menina, é estar do seu lado, com o coração desremendado, inteiro e desprotegido: sabendo viver a vida em sua máxima euforia. e não tendo como - por que diabos não tendo - viverei assim, de trancos de esquecimento, de tristezas herméticas, de risos salgados e respingados de ironia explosiva. e de um coração muito bem guardado, muito bem escondido, muito bem no fundo, de modo que ninguém há de tocá-lo de vez.
se este método é eficaz, aí já não sei, não poderei garantir (e é por isso que a consciência é melhor que fique quieta, sem interferir com sua razão insuportável onde não é chamada), mas aguardo as consequências sem maiores dores - até por que existirá maior dor, menina? - nem maiores entusiasmos. apenas vivo com o que me deram, não seria boba de me dar a morte ou de apenas existir num mundo tão cheio de aléns, apenas sobrevivo para ser um pouco, ainda e mesmo assim.

julho 06, 2010

virgínia

ela deu o nome da filha de virgínia, porque era virgem. ela, a mãe, jurava que era virgem. virgem, intacta, branca, olhos cor de mel, rabo-de-cavalo. não era feia. mas naquele dia, o dia em que concebera o filho (ou achava que fosse esse o dia, não havia outra explicação) ela saiu para a noite, pensar aflita sobre as dores da vida. é que a vida é cheia de dores, aqui e acolá, alfinetadas de insatisfação, problemas irritantes. ela não saiu para pensar na sua dor de ser virgem, porque não sentia dor nenhuma nisso. a vida é muito mais do que sexo ou não, ser desse tipo de gente ou daquele. não, mas naquele dia, tristonha e só, conheceu um homem, e foram para o bar, um bar cairia bem. ela gostava de beber, porque beber deixava a vida mais colorida, porque é preciso ber para aguentar a dor de ser si mesma. como é que os outros mortais não sucumbiam a delícia de não ser eles mesmos por algumas horas? dissertava ela, para o tal homem. depois, não se lembrou de nada. quando acordou, no dia seguinte, na sua própria cama, sem lençol nem cobertor, e ela adorava cobertor. tudo que se recordava era de um breu: um buraco na memória, uma falta de cor e de luz e aí, tudo bem. ela não levou a sério. continuou a viver. e aí, vieram aquelas dores. dores no abdomem, enjôos a qualquer motivo. uma chatice. foi no médico e descobriu: estava grávida. grávida como, doutor, se eu sou virgem? ele sorriu. deixou que ela engulisse a informação, ele deve estar pensando que eu sou louca, mas eu sou virgem. foi embora intrigada, conversou com as amigas, todas já muito bem cheias de sexo em suas vidas. e perguntram: e não doeu? e ela disse que não sentiu nada. e prazer, sentiu? olhou atônita. o que é prazer? tomar sorvete de morango numa tarde ensolarada era um prazer, um retorno a infância, o máximo de alegria que se contia. não, respondeu, pensando no prazer de chupar o sorvete, nenhum prazer, nenhuma dor. estranho, elas disseram. então elaboraram a teoria: tinha ele dado remédio, esses boa noite cinderela, esse tipo de coisa que apaga, e aí ele vai e pimba. ela ficou preocupada, voltou ao médico e disse: bem, doutor, pois é, eu achava que era virgem, mas tô achando que o cara me deu um daqueles boa noite cinderela, sabe como é? desmaia e vai. isso eu não ligo, não, o que eu ligo é se isso pode fazer mal pro meu filho. é uma droga, não é? e o doutor, acostumado com esse tipo de malandragem, sorriu e disse que não, não, fica tranquila, minha filha. e no final da consulta lhe prescreveu um psicológo que ela nunca foi. então, nasceu a filha: virgínia. algumas pessoas disseram que era para ela tirar o filho, mas tirar pra quê? por quê? não fazia sentido nenhum. e a filha, menina, tinha olhos pretos, pretos redondos feito jabuticaba, deve ser do homem da noite, não sei, bochechas rosadas, branca feito ela, nem tão magra nem tão gorda. e assim foi, nasceu virgínia, filha de mãe virgem. e ela? ela continuou a se proclamar virgem, com seu rabo-de-cavalo muito bem feito, sem nenhum fio desordenado.