dezembro 25, 2011

joana e a cavala

nunca me contara que teve irmã. teve irmã, joana? e seus olhos entristeciam. tristes de saudade, eu sorria. também sentia falta dos meus irmãos, mas eles me abandonaram, abandonaram todos nós, não é mesmo, joana minha? se a gente falha, eles vão embora, vão indo rindo, eles riem da gente toda a vida e depois nos abandonam, quando lhes convém. não prestam, eu lhe contava. para que deus faz irmãos, eu não sei. é um amor tão impuro, tão obrigatório, que se dissipa logo na primeira curva da vida. mas eu não entendia. a sua tristeza não era saudável - nada em você era saudável, joana. tudo em você é esquisito, doente, cheira a creolina, enxofre, amarela. ah, joana. sua irmã, uns cabelos pretos, tão pretos que davam medo. é assim mesmo, medo de se prender no escuro daqueles fios. quando vi a foto de vocês duas, que estranho, eu pensei. e você já chorava e gemia, debaixo do armário. se encolhia, assim, debaixo do armário, quando a dor era grande. joana tinha medo dos vultos, dos fantasmas da memória. quando acordava assim, tinha que lhe por no colo e dizer que aquilo que vem dos sonhos, aquele horror que não sai das nossas cabeças, não é real. chupava o dedo, por vezes, me olhando, incrédula. era como dizer que papai noel não existia. e eu te beijava os dedos todos, joana, os chupava por você. chupava por você, ai que saudade, joana, desses dedos, tinham gosto de. não poderia dizer. chupava por você porque assim você parava quieta, parava de chorar. conta da sua irmã, me conta. do seu lado, no retrato, não parecia irmã, duvidei que fosse ela. os cabelos pretos e a cara bruta. do lado dela uma menina pequena, frágil, um sopro de vida, branca, os cabelos laranjas, mal se via o verde dos olhos apertados. tão frágil perto daquela outra. grande, um corpo enorme, a cara cavalar. quem é essa, joana? violeta. e relinchava, nos dias piores, para me lembrar. violeta, a irmã cavala. eu chamava assim, você ria de nervosa, a irmã cavala. no dia que conheci sua mãe, os olhos verdes sofridos, cada dobra cheirava à álcool. era uma dessas mães que a gente não pede, quando nasce. não sei se era triste porque bebia, se bebia porque era triste. era tudo uma coisa só. era frágil também, não sei como tinha parido um cavalo. nem ela sabia, não se lembra mais desse dia. violeta, não sei porquê. nome de flor. violeta era tão grande que te levava deitada, debaixo dos braços dela, sem jeito. violeta te punha na lombar e andava de quatro, fazia você rir, você três anos. violeta sentia cheiros, sentia o cheiro da mãe bebinha, já de longe. trancava a porta de casa e esperava a velha chegar. a velha batia, esmurava a porta, violeta, cavala, não abria. joana minha, chorava baixo. deixa a mãe entrar, deixa. ah, joana. quem te entenderia? rainha do submundo, mãe dos desvalidos, era você. era mãe da sua própria mãe, que era inválida. entendia o hálito cruel da mãe, tinha bebido o leite alcoolizado dela, tinha dela no sangue, mas violeta não. desde nenê, devia ter recusado o leite da mãe. não tinha vínculo algum com ela, era bruta com a vida. se joana é rainha, violeta era do dia, perdoava quase nada. e violeta deu para si a responsabilidade de criar joana. que dó de você, joana minha. quando contava as crueldades que meus irmãos me faziam, a você... pareço sempre tão idiota. violeta, como cavalo, chegava a relinchar. tratava a cria feito cavalo também. criava a menina de tão perto e tão rígida, que não sabia onde começava o encantamento ou a brutalidade. não sentia amor, ah joana. sentia outra coisa. desses sentimentos mais próximos com o ódio, que em um instante se confundem, não se sabe o que é isso ou aquilo, não se sabe nada, porque se sente, somente. tinha paixão por você, joana. ela, eu e o mundo. ela, daquela maneira cavalar, brutal. relinchadora. dentes fortes, amarelos. mordiam. que dor, joana. mordiam. choro por você, sozinha, sem você, você odiaria que eu choraria pelos seus vultos. seus vultos eram tão somente seus. não era meu. não era de ninguém, só seu. eu não podia sentir o que você sentiu, o que sentia ainda lá, mordida. cavala. levava para passear, é certo, brincava de descontrolada. dava cabeçada. coice. enquanto dormia, até, coice. tinha olhos no rabo. te vigiava assim. joana, guardadora das dores do mundo, junto das dores de ser a si própria. de possuir isso de... da gente não se controlar. amor, do nada e para caralho, no âmago e debaixo das unhas. violeta, te odeio. e no meu ódio, choro, te entendo. violeta, te repudio, fez de joana ainda mais esquiva, escorregadia. quem sabe se você tivesse morrido ao nascer, joana seria toda-minha, para sempre minha, não ia querer voar. não ia entender seu verdadeiro lugar. permaneceria entre as minhas pernas, como casulo, como gostava de ficar. para sempre, entre as minhas pernas. mas a cavala. ódio, que me faz relinchar. morre marcada, filha de uma.

dezembro 21, 2011

joana, um rato morto

joana, esses dias, andava e pensava em você (eu sempre ando pensando em você) e eu o vi, ali, diante dos meus pés: o rato. morto. embolado em torno de si, os pêlos cinza, cinzas. a cabeça esmagada, e o rabo, joana. foi o que mais me apavorou: aquele rabo de cobre, como se nunca pudesse ter sido vivo. meu horror era tanto que não sabia se era pela morte ou pela vida daquele animal. como pode existir, joana, você que sempre tudo sabia, sorria serena e nada respondia, eu gostaria de segurar suas canelas, brancas, e implorar: como pode existir esse tipo de bicho, esse tipo de bicho. e como pode que esse tipo de bicho morra, joana? é injusto que morra, que morra na minha frente, a altura dos meus olhos, no meu mundo terreno, por que morreu, o pobre bicho? pertencia ao submundo, esse animal imundo, aos esgotos, rasteja meticulosamente por debaixo dos nossos pés, ri de agonia entre a sujeira do mundo todo. aquele rato, joana, morto no lugar que não era dele, a ferida aberta para quem quisesse ver: a ferida de um outro mundo, joana! eu não estive preparada para você, para este submundo, eu não me aventuraria dentro das tubulações, joana. só de pensar em te seguir por elas, longas e infinitas tubulações, "não há horizonte" você diria entredentes, "apenas ir e ir e ir" você iria e iria, porque você era parte daquilo, joana, me perdoa, eu não poderia simplesmente ir. sinto o sufoco mesmo antes de tentar, seria a morte. pobre rato. se aventurara por terras desconhecidas, por que? morrera tão logo vivera sob o sol. a morte, a morte, você ria descabida, joana, minha flor. a morte é que é divina. queria olhar nos olhos, se tivesse olhos, daquele rato destroçado: fora delícia, fora divina? seus olhos, joana, eu não pude. eu sou como aquele rato - ou você é? arreganhava os dentes para mim e saía correndo descabida. filha do submundo, irmã das ratazanas. de vestido branco e longo, cercada por todas elas, te vejo. se comunicava por granidos, havia dias. consumida por ratos. comem as veias, os ratos. comem a linfa, joana, aquilo, a proteção. entram por debaixo da pele, sem saber, vão fazendo comichão. a linfa, o sangue, se puder. filhos de vampiro, ah, joana. ria descabida da vizinha que pendurava alhos quando te viu. comeu minha linfa logo de primeira vista. eu não tinha como me proteger - eu não queria me proteger. você era toda candura, toda branca, os olhos verdes estáticos, joana minha. entrou dentro da minha pele desde a primeira, a primeira vez. ia se encostando devagar, seu corpo era tão leve e fluido, com todos os membros ia subindo como se fosse una, uma cobra, uma gosma. a carne dos lábios de uma vez aderiu-se por completo a mim: eu não pude fugir, eu já te amava para não perceber, que perigo, te achava pequena, podia cuidar de você, frágil, ai joana, que vontades de te sentir aqui. ainda sinto, dentro e quente, aqui, ainda te sinto e por isso te amaldiçoo, pequena vampira. dentro de mim, comeu meu sangue, meus órgãos, ai joana, triturou meus clítoris, alojou-se no meu coração, grande e cardíaco. bicho de barbeiro. um rato morto, o rabo de cobre torto, o bicho enviesado em si mesmo, uma bola de pêlos, circular e medonha, o rabo de cobre, tão inexistente. o bicho morto, o quanto eu chorei, joana. voltem para o mundo da onde vierem, fiquem com os deuses que te aceitam! voltem, criaturas do submundo, avessos ao sol. joana, ai, joana, se eu nunca tivesse te visto, joana minha, que seria de mim? me destruo fabulosamente nas memórias que recordo de ti. as memórias percorrem meu sangue, circulam rápido, todos os meus órgãos te amam. todos os meus órgãos vão parar, de falência de ti. que grande ironia seria, joana, se eu morresse da sua falta, se sua falta foi porque eu não quis morrer. eu, não, joana. sempre fui coerente, sempre quis viver setenta anos limpos. você me desperta aquilo que não pertence à mim, faz-me chorar com ratazanas mortas no meio da rua, faz-me chorar enquanto gozo. faz-me pensar como aquele rato, criatura de um outro mundo em meio deste, morto por querer tanto. te quero tanto, joana. te odeio tanto, ratazana.

dezembro 13, 2011

joana

por que comigo, joana? olhos verdes, pés brancos. abraçava as pernas em torno de si mesma, era um casulo. no meio da praia, assim. toda essa praia, para nós, joana. você aí, pequena, encasulada. no meio da praia. você sorria. olhos verdes, joana, que tortura. quando sorria, as sardas ruivas se contorciam. torrada de sol. uma pintura de Monet. joana. eu te chamava sem saber porquê. gostava de repetir o seu nome a qualquer momento do dia, joana, joana. grandes janelas brancas. aqueles dias foram poucos dentro do resto. janelas de ferro, joana! e o sucrilhos de manhã. derrubava o leite branco na cumbuca. leite, joana. lambia o leite devagar. por que comigo, joana? seus olhos me encaravam, mais mortos que vivos. fixa em você. longos cabelos alaranjados. amarrados em volta do próprio pescoço. branco. joana! quis te salvar. você tão encolhida, eu te dizia: levanta, joana. você não queria. levanta, joana, que já é dia. você, triste, nada dizia. quando dizia, dizia que tinha vontade de me matar. logo eu, joana? tinha ganas de arsênico. desde que viu na televisão: menina mata família colocando arsênico na sobremesa. era mousse de chocolate. eu e você gostávamos de imaginar a família comendo o mousse. tão banal. a morte num pouco de leite com chocolate. arsênico, arsênico. você ria, extasiada. sempre tão viciada na morte, joana. eu não podia mais aguentar, me entende? eram olhos verdes tão frios e quentes ao mesmo tempo. como ácido, joana. eu já não sou tão do outro mundo como você era. tão esquisita. criada sem pai, uma mãe que sabe-se-lá quem é. acostumou-se a ser tão quieta, joana, eu tinha rugas por todo o corpo, mas mesmo assim você me beijava. não sei do que gostava de mim, gostava de ouvir a minha gargalhada. pedia para ouvi-la e ficava perto só esperando. dizia que lhe lembrava a morte. a morte, joana. por que assim? tão bonita você era. ninguém podia a ver, joana, gostava de ler Cem Anos de Solidão, joana, você é tão bonita quanto a moça que mata mil homens. você ria, extasiada. joana. era mentira. a sua beleza era toda tão minha. feito bicho, você vivia. já tinha começado a se rastejar, e os dedos já se acostumavam a andar pela casa dobrados, feito garras. garras, joana. gostávamos de brincar de rato e gato, você rosnava, com a lombar arrebitada. choro tanto, joana, enquanto gozo sozinha. ah, joana, minha. por que você fez isso comigo? foi embora, sem rastro, para o mundo da onde veio. ria. pálida, ria. conheci sua mãe, tão velha quanto eu, os mesmos olhos verdes e tristes. não gostava de viver a menina, disse. como é que deus põe no mundo alguém que não gosta de viver, meu deus? rezava baixo, porque tinha medo de que me ouvissem. tão idiota parecia minha prece. quem irá me ouvir se a própria criatura se dá assim, ao deus que a espera de braços abertos. que deus egoísta, joana. te fez e te admirou, desde os pés brancos até os cabelos alaranjados. e te invejou e te quis, te desejou, joana. filho da puta de um deus que me tirou de você. ah, joana, se me ouvisse. iria rir nervosa e se esconder, ladra, segurando na boca um pedaço de carne crua. um bicho, que eu tinha. nua, no mar, você brincava. deitava-se na orla, esperando o mar chegar e brincar com os pêlos púberes, joana, joana. você ria e se contorcia. eu olhava de longe, me corroendo de ciúme. deus maldito, mar maldito. fazia-te tão feliz. e eu te arrastava, tão furiosa. e você me prometia: vamos nos matar, vamos nos matar. tão esperada felicidade, joana. eu não pude cumprir. vi o seu olhar esverdeado entoando maldição para o meu lado. eu não era o bastante para você, você já o sabia. se escondia, gemia baixo. queria tanto de mim, joana! por que fez isso comigo? injusto é me deixar assim, se eu pude fazer tudo o mais o quanto pude. nem todo mundo é assim, um buraco, igual você. um poço de mistério, igual você. nem todo mundo conhece deus, joana. fiz o que me era feita a fazer: meu molde é coerente. você queria tanto, joana. tinha medo, tenho medo! sempre fora compreensiva, mas você nunca pôde. percebendo minha debilidade, afugentou-se em si mesma. não pude competir contra o deus que mora em você, joana. joana, joana. eu chamava. o leite, deixa-me. olhava-me brava. era do mundo. de um outro, dizia. um submundo. dispensou-me, cobra. foi-se. entregou-se. joana, joana. parada encolhida no meio da praia, levada pelas águas do mar, rindo de febre viril, quente feito exú. quente, joana, morrera quente, juro por tudo que é mais sagrado! a tez pálida e quente, aquele deus te possuía, enfim, tinha seu corpo, joana. serva de deus, rogai por nós. serva de prazeres esdrúxulos, joana, toda a sua vida e toda a sua morte. menina estranha, olhos verdes, pés brancos, joana, joana. já não ouve mais meu chamado, já não quer as minhas súplicas. pertencente a si mesma, enrolada na sua fixação, platônica e sepultada, quente de felicidade inútil.

dezembro 04, 2011

na casa de ferreiro

o tempo se foi, querida. esse cabelo e essa cara. e a sua avó não é mais gorda. e seu avô que está velho. e ela que não está mais lá. você dizia amor. ela dizia nana. o tempo se foi tão rápido. tudo mudou. parece tão rápido.
ah, dificuldade desgraçada de aceitar a passagem do tempo. a crueldade do fato de que o tempo passa. caralho. eu queria lutar por. mas isso não está mais nas minhas mãos. é tão abominável. que abismo entre nós. que abismo entre mim e o universo. não sei.
eu não sei hoje eu só estou chorando. em casa de ferreiro, a colher é de pau. é de se desesperar. para que serve um cineasta, josé, para que serve uma câmera. para registrar no mínimo. para a memória no máximo. que abominável que você é. eu nunca vou te perdoar. dói tanto.
na casa de ferreiro, ferro quente. é.