setembro 28, 2015

existir

tem acontecido eventos estranhos por onde passo. hoje mesmo, de manhã, antes das oito, uma moça de pernas grossas passou correndo com sua bolsa em mãos. atrás, um menino vinha correndo e gritava "pega! pega! travesti arrombada! esfaqueou o moleque e agora sai correndo! pega!". mais distante, porém tão alto quanto, uma voz grave desafinada respondia ei zu, ei zu! deixa quieto, zu, êzu! olhei para trás a fim de saber se o dono daquela voz era homem ou mulher. não pude saber. a travesti também era uma moça de classe média, de bunda grande e shorts jeans, blusa rosa. o primeiro menino gritou de volta: eu vou atrás dela, eu vou atrás, eu vou achar, esfaqueou o moleque e agora. quando cheguei na rua para atravessar para a praça da república, o menino que corria voltava. ele olhou para mim e eu não sabia seu gênero também. os transeuntes todos olharam, mas como eu, permaneceram impassíveis. apenas os pescoços se mexeram, como fazem as pessoas quando ouvem gritos e quando, finalmente, podem olhar sem disfarces para a movimentação. no resto do tempo, nos contentamos apenas com olhares enviesados, com a íris a percorrer o espaço do olho tanto quão possível é a fim de olhar o rosto ou a bunda ou os gêneros ou os moradores de rua ou os policiais ou as putas. o distender do pescoço é a máxima ação. ninguém saberá se são homens ou mulheres ou nenhum deles, quanto menos se um deles esfaqueou um muleque na manhã clara de uma segunda-feira; o crime a céu claro é abalável. tudo isto lembrou-me que na sexta, quando andava pela apinhada calçada da 25 de março, um velho branco e grande carrregando duas sacolas pesadas gritou e se moveu enloquentemente, seus braços se esparramaram no ar, não havendo ar, se esparramaram por sobre as pessoas que lutavam para conseguir caminhar em território ocupado. gritou e perturbou o som histérico, mas ainda assim contínuo, da vinte e cinco, o vozerio misturado aos gritos dos vendedores, que repetem suas frases incansavelmente carregador, olha o carregador, carrregador de bolsa, carregador, olha o carregador, carregador de bolsa, roubou, roubou, eu senti. gritou o velho e correu a fim de alcançar o homem negro que estava atrás dele. o homem se enfiou na barraca de roupas que dividia o apertado espaço com as pessoas, um buraco se abriu na rua, a normalidade fora interrompida. por um minuto, as pessoas todas pararam, e se esqueceram qual a próxima loja que tinham que ir ou o horário para chegar logo no metrô, mas ninguém demonstrou reação alguma, além de terem os pensamentos - que comumente tinham um volume ainda maior que a histeria e a massa sonora da rua - agouramente interrompidos. apenas um moço se manifestou, e bravo, e louco da vida gritou: calma lá senhor, vai tomar seu remédio, o homem é trabalhador, tá louco? o homem é trabalhador. lembrei-me instantaneamente das horríveis notícias sobre pessoas serem lixadas por outras, trabalhadores por outros, negros por outros, mulheres por outras, espécimes praticando atos coletivos de crueldade imparcial com a sua espécie. meu pai mesmo havia presenciado algo assim, e fã que era da violência e inimigo número um dos ladrõezinhos, tinha se assustado com a voracidade que as pessoas todas, no centro de campinas, tinham ido bater num menino, de como um gordo sentou no magricela e bateu-lhe até ver sangue. no entanto, já não posso avaliar com clareza a impassibilidade que eu presenciei, e a senti também nos meus ossos e no meu ser como um todo, escolhendo apenas uma neutralidade besta, um não tomar de partidos, um não ouvir de gritos e correrias nas ruas. uma existencialidade pura e besta, de eventos isolados em si, de coisas que acontecem, que acontecem por acontecer, moleques esfaqueados ou não, homens brancos paranóicos. no ponto de ônibus na teodoro sampaio, fui interrompida da minha leitura por um homem grisalho que me pediu para ler um papel. li-o e dizia algo como: as pessoas nunca estão acostumadas a sorrir (então sorri, terrivelmente constrangida com o que poderia vir e ele me disse: viu, você já sorriu) e uma baboseiras sobre sair do celular e sorrir e abraçar estranhos, meu tom de voz diminuía palavra a palavra, terrivelmente arrependida de ter me enfiado naquela situação só porque ela se apresentou a mim, concreta e inegável, só porque eu não podia virar o pescoço e continuar a me questionar se eram meninos ou meninas sapatas ou meninos trans ou o quê, só porque a situação era ridícula o bastante para ser apenas aceita sem perguntas e ao final, o homem me deu um abraço atropelado, interditado por um dos braços meus que não estavam, afinal, prontos para abraçar nenhum desconhecido na rua, um abraço que ele pretendeu forte e eu afrouxei - como se comumente se faz; e eu poderia ficar louca da vida, brava e dizer, entre mil coisas, eu sou uma mulher, como é que você me abraça assim, como é que eu sei que você não quer apenas um motivo estúpido para apalpar meu rosto, mas o homem deu um jeito de fazer o sorriso e os olhos mais afáveis, mais amáveis, mais sem maldade alguma possível e disse: como foi, fácil ou difícil, eu disse estranho, ele disse: agora esse papel é seu, e você deve abraçar algum desconhecido no ponto de ônibus e saiu andando, quase correndo, envergonhado pela minha ausência, pelo meu constrangimento, sem querer ver a resposta nos meus olhos. ainda permaneci alguns segundos surpreendida e ainda me senti na obrigação de talvez seguir a situação, fazer o que ele tinha falado, abraçar um estranho?, simplesmente porque a situação existia, porque tinha ocorrido comigo e porque eu estive triste; mas é claro que não, que eu não iria perpetuar essa corrente do bem estúpida, que eu ia quebrá-la, e mesmo se quisesse, eu não teria a mínima coragem, se tornando um tormento todo particular ter que fazê-lo, sem nenhuma troca aceitável; guardei o papel como marcador de página, coloquei-o em frente às letras do livro que eu estava lendo; era Nadja do Breton. 
talvez haja aí algo surreal ou é só que o surreal se apresenta da maneira mais patética possível? foi este abraço que me arrancou de forma tão bruta da minha impassibilidade e da minha imersão e que me lembrou, então, a correria da manhã, e o homem supostamente roubado da sexta-feira. a única conclusão que consegui alcançar, com um custo que não sei ainda medir, é que a existência é plena de situações e vazia de significados; é que é melhor simplesmente existir, do que existir com perspectivas. as perspectivas lembram-me papéis repicados, e pouco a pouco, repicam um pouco mais do que eu queria, um pouco menos do que eu gostaria, tornando-se a linha do viver nada mais que uma forma bruta, irreconciliável e irregular. invisível, não porque eu não consiga ver, como antes, mas invisível porque se faz sem padrão algum, sem conformidade, sem contorno; há um preenchimento, e no fim, é isso que me cansa. cansou-me, irresoluta, a cáustica dos seus sorrisos e os olhos pesados dos seus não-dizer. despi-me finalmente da capa da vitimização e não, eu não ando mais me preocupando em ser vítima, e em sofrer e chorar pela minha falta ou pelas minhas incapacidades olha. eu não quero mais a sua dó; eu não quero pena, eu não quero que chorem por mim, eu não quero que esfreguem a mão nos meus cabelos, dessa maneira colossal e mangnânima, mas sem um pingo de um carinho exato. hoje, ao comprar máscara capilar, a vendedora que tentava me vender o produto, passou a mão nos meus cabelos; eu senti medo de me arrepiar, mas foi suave e eu não arrepiei (por todos os demônios, estou um pouco cansada desses arrepios bruscos, dessa brutalidade que o meu corpo guarda e que vocês todos despertam tão fácil quanto tirar uma migalha de pão que porventura caiu na sua blusa), foi suave e foi terno, e eu me senti quente e agradecida, ainda assim, eu queria que ela continuasse a tocar meu cabelo daquela maneira e teria que ser ela, a vendedora, pois pensei um pouco para quem é que eu podia pedir um pouco de cafuné, não, eu queria aqueles dedos desconhecidos, acostumados a deslizar por cabelos, eu queria aquele toque porque absolutamente ela não tinha intenção que não outra vender-me o produto (não tinha ódio, nem inveja, muito menos desejo, tensão, não havia dó). é claro que a única coisa que eu poderia fazer é levar a máscara, mesmo em dúvida, mesmo achando cara. mas, sobretudo, eu pensei sentindo o peso do pote de creme nas minhas mãos, o peso do livro enquanto lia no ônibus que passava na consolação, eu sobreviverei, sem a dó de vocês, pois eu sobrevivi a uma morte, e não a minha, mas que daria no mesmo e seria mesmo até pior (continuar a viver depois que a morte lhe desperta um quê, uma coisa, uma falta imensurável, algo que deve ser tão próximo quanto à matéria escura, ou a própria definição dela, depois das luzes das estrelas e antes do fim, eternamente em expansão desenfreada, sem ter qualquer motivo senão pela existência, pela existência bruta e só). e eu pensei enquanto lia Nadja, e o senhor ao meu lado fazia palavras cruzadas, e nós dois estávamos em alguma sintonia: enquanto eu nada entendia daquilo que lia (acabei de começar) ele também não entendia que palavra ia se formar na lateral, não antes de responder corretamente e organizar as palavras e seus significados, suas coisas todas, o quebra-cabeça. a literatura mais surrealista é a palavra cruzada, acredita?, nada como palavras por si só para resultar em outra palavra que nada guarda relação com aquelas, mas que, enquanto o senhor toca com a caneta o papel, e eu toco as palavras procurando entendê-las, esforçando minhas capacidades, relações inimagináveis se amarram ali, herbário com impotência, impotência com vestido. nas minhas leituras completamente aleatórias, me deparei com métodos infindos e um problema não existencial se fez tridimensional na minha frente: se Breton pede que a literatura não seja fabulesca, mas se Dostoiveski escreve a partir do romance as coisas mais terríveis, que fisgam o fundo, se Virginia escreve seus personagens de uma maneira que posso sentir o cheiro dos seus dedos (lavanda e tabaco), se Miller foi tão autobiográfico que eu não faço a mínima ideia de quem seja, nem se existiu, e duvido mil vezes que aquilo possa ter existido, e se, e se, esses tantos métodos e asserções, correções históricas, afirmações protuberantes, frases iguais com sentidos completamente opostos, todos os meios e os métodos me invadem (e devem invadir a todos) e existiram tantos! que me é impossível decidir-me por um, que me é impossível saber o que é contemporâneo, o que é visionário e o que é retrocesso, tudo está numa única pílula temporal rodeando minha cabeça, minhas parcas capacidades, o fato de que falta algo em mim (não, não tenham dó), rodeando meu corpo, me atacando e atarracando sobretudo. sobretudo, todas as coisas já parecem existir, já parecem ter sido feitas e refeitas, mas continuamente, a vida corrente é insana e ininterrupta, não está morta, nem numa pílula, mas tem presente e os ecos do presente a cada segundo atravessado; a vida acontece, uma travesti correndo, menines correndo a fazer injustiça, um homem que dá abraços porque não sei motivos, uma carícia capitalista, todas as coisas me que deixam estupefata, surpreendida, finalmente, surpreendida; ainda que eu não me mova, ainda eu não possa, nunca, acreditar numa sequer palavra de alguém, de ninguém, nem julgar, nem correr atrás, nem ajudar, ninguém, ainda que eu continue impassível, sorrateira, que eu seja uma massa indiferenciada de pessoas, as situações me atravessam; e me tiram do meu lugar simplesmente porque elas existem, e tão encaracoladas que estão, não podem nunca ser compreendida sem seu todo, muito menos em suas partes. elas são vislumbres; mas também deixam seus rastros, elas permanecem, e existem, graças que existem; e eu existo, existo também, sei disso, por isso ando querendo dispensar suas penas, eu estou finalmente surpreendida pelo fato de que eu existo e que existir é tudo.