outubro 26, 2010

você era tão linda

você era linda.

lembro-me daquele dia, que resolvemos fazer um piquenique. coisa simples, passear no parque, aquele com lagoa, um pouco afastado da cidade, sentar na grama verde, comer pão fresco com geléia feita pela sua mãe. você deu um jeito de arrumar cesta de palha, e tava até de vestido florido. lembro-me das voltas que seu cabelo dava, voltas volúveis, voltas de volúpia. gostava de cantar no seu ouvido baixinho, debaixo dos caracóis dos seus cabelos. tanta história pra contar. a grama era tão verde, escolhemos um lugar um pouco longe, embaixo dum eucalipto. cheiro de geléia de amora, de eucalipto e do seu perfume doce, que naquela época não me enjoava. cheio de grama, de terra, de virilidade. sentei-me do seu lado, mordiscava sua orelha, beijava seu pescoço, e você ria, fazia graça, batia as mãos. dei uma florzinha, dessas que se encontra em qualquer canteiro, branca e amarela e você sorriu, tão contente como se fosse rara, e colocou atrás dos cabelos. e daquela noite, não sei se após esse dia do parque, se uns dias depois, que saímos a pé pela cidade: só isso nos importava, não tínhamos objetivo além deu sentir sua mão entre as minhas. e que mãos macias! que mãos macias você tinha. e a cidade era um borrão de luzes: assim me recordo, um borrão de luzes coloridas, e ríamos, e a cidade também nos ria, e acendia suas luzes, tudo era tão hamornia. e também do jeito que era fazer sexo com você. tinha pernas tão firmes, tão acrobatas que me impressionava. pendurava-se em mim feito trapezista e queria e sabia fazer tanta coisa que me deixava assombrado. se lembra? era tão bonita suas costas, formando uma curva perfeita contra o lençol branco, e me lembro quanto branco era o lençol quease me cegando, contrastando sua pele jambo. e te amar, assim de costas, e te amar, assim parecia fácil de qualquer ângulo.

e hoje, que sobrou de ti?
recomendado pelo terapeuta que você tanto quis frequentar, visitamos aquele mesmo parque. uma sujeira, uma grama seca, que é que aconteceu, parou de chover todos esses anos? um mato alto para todo lado, tanta criança ingrata correndo e pedindo comida e aquele eucalipto nos espiando do alto e meio que rindo da nossa patetice. e que geléia era essa que você comprou no supermercado e o pão de forma que você sabia que eu sempre odiei? paramos eu e você, olhando um para o outro. melhor se tivéssemos coragem de rir um do outro, dessa tentativa incabível de refazer o passado. mas não rimos. nunca ríamos. nem tampouco chorávamos (é que eu gostava da cor dos seus olhos castanhos quando você chorava, ainda menina, úmidos e pedintes de proteção para o meu lado). e para quebrar essa monotonia, você abria sua boca torta e desembestava a inventar todos os programas interessantes para fazer na cidade. e eu só queria me sentar no sofá, ver uma tv, quem sabe fazer um sexo com você. e saímos, de carro, e pensar que carros serviriam para facilitar nossa vida, faziam de nós palhaços do trânsito. e rumos a objetivos finitos, filmes, teatros, baladas, bares, shows, não sei mais o quê. nada disso nos contenta, e se quer saber, nos afasta. outro dia fomos ver um filme, não me lembro o nome, e tinha uma cena de sexo, era sensacional, eu fiquei excitado, peguei na sua mão, fiquei imaginando ser sua mão a daquela atriz, e eu, querendo transa mais que tudo, ao acender as luzes do cinema, e te vi ali... tão feinha e acabada, tão desmerecida e desconsoloda... ah! e se o pouco sexo que fazemos não é inventivo, se suas pernas firmes sofreram duas operações já e não podem ser quem eram porque você reclama de dor. porque tudo é dor, e olhar para você me dá dor. não quero mais ir neste terapeuta de merda, não quero mais me lembrar do passado, não quero mais me lembrar de você como era antes. quero fechar os olhos enquanto goze, sem consciência de ser quem, e não quero mais parques, e não quero mais cidades, porque isso tudo não faz mais sentido - parece tudo cinza, cético e sóbrio. quero a loucura dos dias passados, e quero a loucura que te fez linda e que me fez casar contigo.

você era tão linda, mas agora alisou seus cabelos, tem rugas nas mãos, e do lado dos olhos eu vejo, e um sorriso amargo cheio de linhas, você é toda linhas, é toda pelanca, é toda velha. e o que fala, conservadora, e o que defende, retrógrada, te faz tão mais feia quanto o tempo que te maltratou. e quero saber, mesmo, se quando me casei contigo, fui enganado pela insanidade da sua beleza e me fez esquecer de todas as outras virtudes...! ou se é assim mesmo, as coisas que guardamos em casa, se desgastam e ficam feias, e não há nada a fazer. preciso saber se foi culpa da minha escolha ou não. preciso saber de quem você é e de quem você foi, mas me dá preguiça de tentar gostar de você assim, feia, normal e velha.

outubro 17, 2010

entre cascos e frascos
entre cascos e frascos,
qual tamanho dos teus passos
meus laços, teus percalços
seu maço, meu traço.

meu encosto, seu lastro
vai se arrastando
e o chão cimentado
vai se arrebentando.

fundiu o nosso espaço
sem choro nem canto,
meu lado, seu espetáculo,
sua dor, o meu prato.


de partida
olhou-me nos olhos e disse que muito sofria. olhei nos dela e disse que não podia.
afundou-se dentro de si, muito contida. passei a mão por seu rosto, sorri de partida.