setembro 23, 2009

prece à chuva

ah! chuva que deságua
fúria dos céus que castiga a terra
devolve nos meus braços quem me falta?

ah! chuva que desaba
também seus pingos são lágrimas
traz minha pequena numa enxurrada?

chuva que chove soluço assim
vem de mansinho querendo o fim
que mal há em trazer meu amor para mim?

(para sofia)

setembro 20, 2009

unhas

é que hoje eu
eu que nunca quis
pintei minhas unhas

quis pintar meus dedos
meus braços, meu amor
quis tudo pintar
a alma de róseo
de vermelho
para não ser incolor
para não ser toda desamor

foi para atrair seu olhar
foi para trair meu estar

e se seus olhos
por acaso virem meus dedos

por acaso entenderia?
ah! que é que diria?

é que pinto para você
e é saber como declarar
como eu ando querendo
até demais o seu olhar

minha alma tremula
ao ver a cor que se pintou

que se entregar, para mim,
meu amor,
é como morrer,
é como morrer.

setembro 17, 2009

a vó.

a vó era branca, olhos azuis, nariz grande e adunco. se não fosse rechonchuda, seria bem uma verdadeira italiana. a vó se esfarela, derrete, o suor corre na pele alva. é a cozinha que fumega, esfumaça e fica feito fuligem. a vó mexe na panela, de metal, grande, um nãoseioquê, que sobe vapor hedonista, faz os sentidos se atiçarem, cheiro de comida quente e caseira. a vó tem tanto calor que, no trono aristocrático da ascedência, bem se lembra da escrava negra. pouco se lembra, mas era filha pequena de filha de barão de café. lembra das sementes pequenas, que desprendiam cheiro volátil e escuro, quando torradas, e além das tantas, fazia-a correr até a cozinha quando o sabor procurava suas narinas. lembra da índia, cabelos compridos, era chamada assim, cuidava da menina, rugas infinitas, falava português errado e cantava canção de ninar em língua desconhecida, da sua terra há muito extinta. lembra da negra, na cozinha, o suor sempre lhe cobria, o avental sujo, olhava a negra, pensava, que bom ter negra aqui em casa, que bom ter negra que cozinha, cozinha bem, faz bem esta minha vida. a forturna se perdeu, os rios lavram as pepitas, a plantação de verde mudou-se para cinza. lembra da mãe, enfastiada, soturna, dizendo-lhe tristemente, seu avô é um canalha, seu avô é um canalha, perdeu tudo, os jogos, as mulheres, a cidade é uma desgraça. a mãe tentou lhe dizer que a cidade era uma desgraça, destituía nobres senhores com nobres motivos, honras tradiconalíssimas, a locomotiva usava de papel-moeda para queimar e fazer andar aquele monstro sem perna. mas estas histórias são tão antigas, que a vó mal se lembra, ela gosta da cidade, a televisão, ela gosta de ver as coisas, as cores, o mundo todo passa pela tevê. ela gosta de ar condicionado, e gosta de invecionices da cozinha, e gosta de cinema, e de celular, aquela coisinha pequena, veja só onde chegamos, meu neto, que coisa maluca, mas que linda que é! a vó se entristece, porque o jeito que limpa o suor da testa, lembra a negra, que não sabia o que era tevê, e não sabia o que era celular, e tinha uma vida sofrida, porque vivia sempre naquele cozinha. a vó sabe que vê o mundo pelas coisas que o homem inventa, mas o homem ainda não a tirou de dentro da cozinha. e a cozinha que é cavernosa, umas pedras, uma quentura, um monte de coisas em cima das outras, que é escuridão só, que só ela sabe. a vó chega, a panela quente, a panela grande, põe no centro da mesa. hoje é domingo, toda a família se junta, as crianças gritam, o seu velho dorme em cima da mesa. tem umas filhas, uns filhos, uns genros aceitáveis, umas cunhadas de que não gosta, uns netos barulhentos, mas todos lindos, todos talentosos, todos cheios de vida, aspirando futuro. duas filhas ainda moram com ela, o desemprego, uma coisa brava, uma coisa triste que só, uma quis fazer artes plásticas, a outra quis ser dona de empresa, a empresa faliu, o mercado as iludiu. mais triste é um outro filho, enlouqueceu, virou alcoolotra, diz coisas que a vó não entende, a vó briga com ele, e ele foge, e ela chora. e cuida dele, ele lhe parece ainda menino, não sabe onde errou, só sabe que sabe cozinhar. a família se senta, a vó grita, quer que provem, é feijoada, do jeitinho que a negra fazia na casa do seu vô. tem tudo do porco aí filha, eu sei que você tem essas coisas de não comer carne, mas precisa de carne, filha, carne é bom, sempre foi bom, come o feijão então, o feijão é bom também. a vó está ansiosa, provarão da sua comida, nem sente fome, nem quer comer, quer ver o que vão dizer. senta-se, serve-se e serve aos outros, sente-se adolescente, só a cozinha é que a faz sentir assim. olha para seu velho, o acorda, diz para provar. quer que seu velho vibre de alegria, como antes, como quando casou, e fez pela primeira vez aquela feijoada, lembra-se como ele aprovou, tinha vindo da europa, era holandes, não conhecia comida do brasil. lembra-se que ele lhe beijou, e a levou para cama, e fizeram amor com gosto de feijão, com gosto de amor. a vó já se esqueceu como é fazer amor, só quer que ele dê um sorriso de gosto, um sorriso de feijão, que é como fazer amor quando ja se é velha o bastante para isso. ele sorri meio a meio, pouco comenta, perdeu o gosto de falar, perdeu o gosto de viver, não sente mais sabor em comida alguma. e ela pergunta, o que foi, meu bem, não está bom, não está bom, gente? e a filharada concorda, a vegetariana comenta que os grãos estão macios, todo mundo diz que está bom, está bom, mãe, está bom, vó, é preciso dizer, para ver ela sorrir, toda a família sabe disso, é preciso dar mérito se não ela fecha a cara, e finda o domingo de família, e o mundo se acizenta. mas o vô murmura, entre os outros, e ela não o ouve, e diz, tão triste, o que é que é, o que é que é, meu bem, olha aqui, você só reclama do que faço, nada mais te agrada. as crianças também se emudeceram, e toda a família fica apreensiva, é o desmanche, o vômito, o mundo vai se acizentar. eu queria que você soubesse, seu velho, eu queria que você soubesse, eu sou branca, sou italiana, filha de barão, sou vó e mulher, sou mãe de família, não sou negra, não, não sou escrava não, não sou sua escrava não, de ninguém, não. não é mesmo, disse o pequeno, oito anos, não é escrava, vó, você é nossa vó, vamos só comer, vó, brigada, vó.

setembro 09, 2009

amor-menino

meu amor de menino, hoje sei, se alguma coisa sei, era amor. amor-menino que é amor-primeiro, que é amor sem saber o quê. foi a sensação antes da definição. o amor sem saber sintomas, sem saber contratos. e, por isso, é amor, amor primeiro e amor eterno. seria exagero dizer único amor? hoje o prosaico e o vulgar invandem-me. buscam extensas definições, estatificam relações. hoje tudo há nome, tudo há recíproco. meu amor-menino não tinha nome, e o recíproco era simples. meu amor-menino tinha olhos amendoados, olhos redondos como duas luas cheias, pretas de noite, e amaciadas de crepúsculo. eram dois olhos de brilho, eram dois olhos de bem-querer. tinha os cabelos pretos, como não podia, lisos e aveludados. lembro-me como meus dedos (meus dedos também eram meninos) deslizavam pelas ondas aconchegantes daquele mar de fios soltos. afogaria-me naquele mar. mas quando se é menino, nada se sabe do desespero, e por isso amor é ponto, amor é tudo. tinha a pele café-com-leite, delírio de moleque, que meus olhos, minhas mãos, meu sexo se demoravam por toda aquela escama de que é feito o topo do paraíso. pensava mesmo, que naquele tempo o catolicismo me entrava pelas mentes e estrangulava minhas entranhas, que era pele alva de anjo. que anjo seria meu amor. que a voz que saía da sua boca, que a voz era canção, cornetas empilhadas na boca de anjos transviados. era um pedaço de algodão na minha boca. lembrarei-me desde o tempo que encostei minha boca na sua, e senti o lampejo de paixão que me reacendia. tinha gosto de algodão doce. e os olhos, assustados, muito me olhavam e se perguntavam, calados, que era aquilo que também sentiam. lembrarei-me até que meu fim destrua minhas parcas lembranças, como colocávamos as mãos no peito do outro, que era para sentir o coração bater rápido. e a orelha que também encostava para ouvir todos os sons que o corpo fazia. era um rir sem fim. brincávamos. na sacada da minha casa, com as flores como companheiras, fingíamos ser mil coisas. com espingardas, matamos as flores. e com capas, as replantamos. e nas noites cheias de estrelas, ficávamos a olhá-las, calados, tentando entender o mistério daquelas luzinhas, que só se acendiam de noite, mas que sempre estavam lá. um dia eu lhe disse que nosso amor era uma estrela. que cada estrela era um amor. meu amor-menino não entendeu, não gostava de palavras, entendia mais que eu que as palavras amarguram a vida, mancham de sentidos o inexplicável. e assim, enfíavamos a língua um noutro, na'lma de outro, e abraçávamos nossos corpos nus, sentíamos a pele que ardia, e era tudo brincadeira. o coração que batia, a língua que se dobrava, tudo era brincadeira. todo amor-menino não passa de infância derretida. a malícia inexiste, num momento havia beijo, noutro, brigávamos pelo brinquedo. era tudo grande festa, grande alegria no nosso sorriso. e que coisa foi, meu deus, que já não éramos tão meninos, mas minha alma, que sempre se lerdiava em deixar, em mudar, em se adaptar, quando foi que meus dedos descobriam no seu rosto os pêlos, como aqueles que cobriam a cara do seu pai. e aqueles pêlos se alastravam por todo o corpo, lembro com assombro, do quanto havia entre as suas pernas, circudando o pênis que para mim não era nada. e como sua voz angelical, meu amor-menino, transtornara-se, desafinada e grossa, potente e máscula. e meus olhos que agora, perguntavam, calados, à meu amor-menino, o que é que acontecia conosco. lembro dos seus olhos sérios a me responder, a boca fina num riste, e dizia-me na orelha, a mesma orelha, que seu pênis se endurecia cada vez que eu tocava-lhe a pele, e que tinha vontade de me possuir. e você, meu amor menino, que sempre foi tão desligado das palavras, que se demorara a começar a falar, e que apenas dizia o necessário, usava-as de jeito tão assustador. estou certo, meu primeiro e único amor, que as palavras nos afastaram. depois veio você, depois veio dizer que era errado o que a gente tinha. e eu lhe perguntava, e já sentia o desespero, o que é que havia de errado? onde é que havia ouvido que era errado?
é errado, eu sei, você não. melhor a gente não se ver mais. eu tenho nojo de você.
que é que te aconteceu, meu amor primeiro, que fizeram do nosso sentimento? que era tão bonito, e era tudo brincadeira, era uma festa dos sentidos, lembra-se? o coração agitava-se louco, as línguas brincavam no céu de outra boca, os pés formigavam, e tudo era uma sinfonia coreografada. era errado, meu amor-menino, foi o que ouvi, depois também. mas se minha alma lerdiava em crescer, em amadurecer, também era forte em preservar o sentido primeiro. e também jamais esqueceu o amor-menino, amor-primeiro, o único amor, que não tinha palavra, que não tinha malícia, porque não tinha errado, e tampouco certo. era amor-menino, meu amor, que se estragou pelos pêlos do seu bigode. eu não o amaria de novo, se não fosse a pele alva café-com-leite que me enrosquei.

setembro 02, 2009

1

olha, aquela, menina pequena!
os cabelos batem nos ombros
os olhos espreitam escombros
e n'alma não se vê resquício de pena!

olha, aquele, menino travesso!
a íris vira e se revira pelo mundo
diz que será pequeno vagabundo
é o canto que canta do avesso!

é que toda gente se sente ausente
e ouve-se amargura na voz que nina
é que toda tristeza se mete atraente

é que toda criança é feito ave afoita
tem na alma uma canção que atina
e rir da vida é não se sentir desfeita