janeiro 26, 2011

trai-a

foi assim, eu a trai. trai, assim, e não foi difícil. e também não foi por querer. e não há motivo, nem explicação. não é questão de desesperar também. melhor que deixemos a culpa enterrada. e não há o que dizer, lhe juro. não há crise, eu estou com ela há, não sei, dois anos, três anos, três anos e meio, acho. faz um tempo, mas nossa relação é estável. mas é que tem muita menina por aí, muita menina na minha sala. elas sentam ao meu lado, de mini-saia, faz calor, faz beicinho. elas vem, de mansinho, querendo amizade. eu também, sou amigo. nunca olhei nenhuma com intenção logo de cara. nunca desejei ninguém assim, de instante, porque tinha minha menina em casa. juro que não procuro encrenca, mas é que a gente senta, conversa, faz trabalho em grupo, toma breja no bar da esquina. eu não sou santo, ninguém é. a menina senta ao meu lado, bebe uns dois copos de cerveja, fica vermelhinha. eu acho bonito. eu gosto de mulher, quem não gosta? prova disso que até tem muita lésbica por aí. mas lésbica não é quietinha também, não. teve até uma se sentou do meu lado, fez piada, sussurrou o que fazia com a amiga no escuro do quarto. aí, não aguentei. ia beijando ela, pensando na amiga dela que eu nem conhecia, e achando que o mundo tava perdido mesmo, sei não; nem se todas as mulheres fossem lésbicas, não se salvaria. eu só não resisto aos fatos da vida, a vida vem na minha direção feito avalanche, e eu aceito tudo. aceito todas. o pior é que eu moro com a minha menina. moro há seis meses, um ano, um ano e meio, acho. talvez mais. eu chego em casa, entro correndo, dizendo que tô louco pra um banho. tem que se salvar de tudo, de cheiro, mulher percebe essas coisas. minha menina tá em frente à tv, os cabelos lisos pretos emoldurando a cara. "gostou do meu corte, amor?" digo que sim, que tá linda. não sei, pra mim tá igual. ela tá sempre igual. de pijama, sempre de pijama, desde que nos mudamos. "o feijão tá na geladeira." feijão, feijão, feijão. ela é mineira, não vive sem feijão. eu é que não aguento feijão, fico olhando com certa asia, mas não tenho coragem de dizer. como o feijão, de bom grado, que tá pronto. depois sento do lado dela, no sofá. com a gente, divide o aluguel um outro casal. ás vezes fico olhando pro cara, que não é muito meu amigo, e fico me perguntando se ele trai a menina dele. não sei, não é da minha conta. vivemos bem, comemos pizza de sexta-feira. ela reclama aqui, acolá, não sei mais o quê. no sábado passa perfume, saímos não sei pra onde, que é pra aliviar a rotina, e nheco nheco. de noite, só. nosso sexo tem esse barulho: nheco nheco. não sei se é pela cama ou se é por ela. quando ela gosta, os olhos dela ficam todo brancos. e eu vejo ela, assim, no escuro, os olhos brancos, o cabelo preto. aí ela dorme nos meus braços, diz que me ama. e só ás vezes eu penso: como é que eu vou trai-la? ela faz feijão, ela faz nheco nheco, é uma boa esposa. mas não sei, vem as meninas, eu não sei reagir. só sei dizer sim. e ela nem desconfia! alguém me disse que era bom terminar então. mas terminar? olho ela nos meus braços, os cabelos lisos cobrindo toda a cara, o corpo coberto pelo lençol. o lençol tá lavado, graças à ela. terminar pra quê? quem é que fica feliz? ela parece ser feliz. e assim, eu aplaco minha consciência, que nunca foi insistente e durmo em paz.

janeiro 17, 2011

esconde-esconde, pega-pega

do lado dela o mulato dormia a sono solto. o cabelo sarará baixinho fazia volume feito travesseiro na calçada. ela dormia e acordava, e quando acordava e via para cima metade concreto metade céu azul nauseante, tentava dormir novamente. numa dessas acordadas, olhou para ele ali, dormindo como se rua fosse cama. engraçado, ele. a noite anterior chegara e nenhum dos dois tinha nada para comer. era melhor conversar, para falar mais alto que os roncos da barriga. e se por acaso ali sentados... alguém passasse com um pão, umas moedas. que nada. ficaram ali, sentados, beberem um restinho de pinga, riram fácil. ele já não tinha uns tantos dentes, talvez ela também não. mas sorriso não é para mostrar os dentes unidos e perfeitos: sorriso é para esquecer a lástima da vida. com ou sem dentes. o buraco na boca não atrapalha, ela acha, quando eles se beijavam, dava para se enroscar em cada canto. beijo nosso é mais gostoso. riram. porque também gargalhada é mais alta que o ronco, é para dispersar a vontade tímida de chorar. ficaram quietos, vendo a noite cair. logo vinha aquela brisa noturna, gelada, os ossos tiritando dentro do corpo frio, batendo uns nos outros, acho que faziam sinfonia. o corpo fazia sinfonia para fingir que ainda vivia. bem que podia ter uma musiquinha agora. cantaram um pouco. quando já tava tudo muito escuro, deitaram-se. ele a beijou, colocou a mão na barriga dela, a blusa rosa tão curta que usava. ele subiu em cima dela, ela o empurrou. de repente, tinha deixado porta aberta para a agonia entrar. quando entrava, se esbaldava. se esbaldava com a falta presente no corpo: faltava comida, faltava álcool, faltava amor. faltava felicidade. felicidade mais do que rir, felicidade completa. cama - felicidade completa. colchão lençol cobertor tudo. e até ventilador. não sabia porque assim, de repente, se entristecia. se entrestecia antes do amor, porque não fazia sentido amar. não havia vontade de amor, não havia sequer amor de verdade. tudo isso era para afastar. afastar fome doença morte e desconsolo. mas ela, ás vezes, não aguentava. vinha subindo pela garganta uma vontade de chorar. não devia chorar. o choro é o convite para a covardia. não podia ser covarde. segurava o choro, e tudo por dentro doía. o corpo chorava por dentro o que não podia por fora. vem cá, neguinha. ele enroscava-se nela, mexia no seu cabelo duro, beijava seu pescoço. vem cá, que tá de noite já. ela já pensou em ir embora, deixar ele. ele queria toda hora toda noite, e não entendia porque ela era triste. ela que não entendia como ele era alegre. mas não falavam do que sentiam um para o outro. seria covardia. a verdade é que estavam ali porque não tinham outra opção, ela pensava. e era por isso que também chorava. não teria outra opção se saísse andando, se procurasse? não sabia, faltava-lhe coragem. tinha medo do escuro, da solidão, da melancolia. pavor de ficar sozinha. vem cá, neguinha, vem cá, que é que há? ele acariciava sua barriga, ela gostava, fazia cócegas, fazia carinho. ele descia a mão devagarzinho, mexia na sua, ela sentia chegar, tesão. era bom assim, porque fazia esquecer. continua, para essa agonia ir embora. agonia, neguinha, lá vem voce falar de coisa que não sei. continua que ela tá indo embora. ele subia em cima dela, enrosca, desenrosca. sobe, desce. tira, põe. vai e vem. vai e vem. assim, neguinha, assim, foi embora? foi, foi, foi embora, goza fora. depois ele falou um pouco das estrelas. ele gostava de céu, gostava de estrela, de constelação. tinha aprendido várias e ensinava para sua neguinha como se fosse o bem mais precioso, tesouro secreto. se pudesse, estudaria as estrelas. mas isso é bobagem. a gente tem que viver, tem que ralar, e viver é isso: esconde-esconde, pega-pega. estrela era coisa de viado, gente fresca, que não vive. ele sentia todo dia vento na cara, corria, gostava de dizer a si mesmo: liberdade, era isso, liberdade, era o que tinha. fora preso umas duas vezes, então gostava do vento, da rua, gostava de estar fora. quem é preso, não esquece. e ele mal queria pensar naqueles dias, deixava-o cabreiro, até triste. e tristeza não vale, não pega. não sabia o que é que a neguinha se pegava com a tristeza, era melhor deixá-la bem longe. e como isso? perguntava ela, de olhos abertos. ué, não sei, nega, eu só tento viver e quando acaba a vida, eu durmo. então vamo dormir. dormiram, acordaram no meio da noite, treparam mais uma vez - que é pra não pensar, dormiram de novo. e agora o sol já ia quase a pino, céu azul, melhor que chuva. ou não, que esse calor era insuportável. já não sabia, tudo era ruim. e ele ali, ainda dormia. lembrou-se do que ele disse, a vida era isso, esconde-esconde, pega-pega. agora não sabia se escondia ou se pegava. inquieta, enroscou as pernas entre as dele, para ver se ele acordava, se queria trepar de novo. nada. levantou-se porque era hora de correr atrás da vida, ela ia rápido, esperava ninguém. no ouvido dele disse: hoje de noite aqui. foi e não olhou para trás.

janeiro 13, 2011

estive

estive apaixonada por você. estive sim, porque essa cara de espanto? paixão é paixão, ora essa. só porque eu sempre tive estes olhares frios, estes sorrisos distantes quer não dizer que sofro paixões? sofro, tanto mais que os outros, que se mostram enamorados, botam brilhos nos olhos, abrem as bocas e esfregam as mãos em todos, loucos e famintos, porém de paixão fácil e boba. eu me apaixono um tanto, de tanto em tanto, de vez em quando. minha paixão nunca acaba: ela só vai e volta, desce e reviravolta, revê e se revolta. certo dia, acordo pensando em você. durmo pensando em você. você no meu sonho, robusto e colorido. eu na cama, revirando-me, sonhando de olhos abertos, estatelada. sonho com seu sexo. com o nosso. fico a imaginar como é que é seu pau. se é grande, pequeno, gostoso de chupar. depois, esqueço-me de você. esqueço me em um único instante, assim, acabou. e vem-me outro na memória. e a semana doentia me ganha em outro corpo, em outro jeito, em outro falar. para inventar a sedução, é preciso conhecer as pessoas a fundo. por isso me apaixono por aquele que bem conheço: e por isso pago mal preço. minhas paixões são bizonhas, veja só, ás vezes me vejo apaixonada por gente que não. que não, sabe como é? que não e só, se eu pensasse racionalmente, era não, simples e sem receio. você é mesmo desse tipo, que não. que não e só. mas quando estou cega de razão, não sei. pensar nele me dá um calafrio na barriga, assim. arrepia os pêlos da nuca, aperto-me entre dois travesseiros, tenho vontade de choramingar, de pedir colo. de novo, pedem os sentidos, de novo. mas se levanto da cama e vejo a vida, e a vida tão racional e fria, tudo se acaba: assim, minhas paixões todas! tem um fim. a razão escalpela todas, nenhuma paixão minha faz menor sentido. e elas vem de quando em quando com esse cheiro de sexo. sim, porque amo pelo sexo que ainda virá. não sei se existe outro tipo de amor, ainda não se achegou a mim. deve ser amor dos velhos, ou que besteira pensar que a gente perde o apetite pelo corpo só porque vivemos por mais anos. não sei, não sou velha e não posso por eles falar. falo por ninguém, só por mim. mas como estava dizendo, estive sim apaixonada por você. queria você ou não. amando sua parceira - por sexo e só? - você ou não. sendo você sim ou não. e o verbo vem assim: estive apaixonada. estive porque um dia senti desejo de ti, mas não renuncio ao desejo que por ventura posso voltar a sentir. todos meus sentimentos são assim, desse estado: estive. quando os declaro, é que já são do passado. mas que do passado podem saltar sem mais nem menos ao futuro. estive porque é sempre e porque não morre. ai de mim quando voltar, ai de você para me aguentar.

janeiro 06, 2011

o fotógrafo que decidiu não mais fotografar

- Rui S. tem hoje 58 anos. É um dos fotógrafos mais influentes do Brasil. E está aqui, do meu lado, para nos contar melhor sobre sua decisão de não mais fotografar.
Rui se mexe desconfortavelmente na cadeira e olha para todos os cantos, como se não fosse ele o entrevistado.

- Então, Rui...
R: posso acender meu cigarro?

- Á vontade...
R: nunca se sabe não é, esta geração tão saúde... não entendo mais nada, viu.
Dá uma tragada no cigarro. A reporter sorri constrangida, retrai um pouco os lábios, mas logo depois os abre em um sorriso convidativo.

- É... vamos começar. Quando o senhor começou a fotografar?
R: foi em 80. quer dizer, fotografar mesmo, o ato de pegar uma câmera e tirar fotos eu era ainda moleque. acho que tinha uns 16 anos, tinha um tio que morava na França, trouxe de lá, era uma beleza de máquina.
Sorri sarcástico e olha para a reporter.


R: sabe como era não, de filme? aquilo que era fotografar, viu...
A reporter arqueia as sobrancelhas, impressionada com aquele sarcasmo bruto, aquele ali não iria facilitar nada pra ela. Tinha que entrar na dança. Rui olhava para cima e tinha um ar de riso no rosto.

- Por que aquilo que era fotografar?
R: eu tirava foto das pernas das meninas, debaixo da mesa, essas coisas. tínhamos que esperar dias para que se revelasse as fotos, ficávamos na maior ansiedade. aquele bando de muleque, quando eu chegava com as fotografias, era um alvoroço... isso que é beleza de fotografia, entende? aquilo era real, era sincero. puro e simples interesse pelas pernas das meninas.
Rui fecha a cara. Vê-se as rugas delineadas, a velhice dos cabelos grisalhos naquele retrato de nostalgia. O fotógrafo da reportagem bate uma foto. Vai pra capa, essa.

- Mas o senhor fez fotografias realmente lindas.
R: fiz pra quem, minha filha? no final, eu já não tinha pra quem fotografar.

- Por isso que o senhor resolveu parar?
R: não. não só por isso.
Rui olha para o lado e ignora a presença do fotógrafo, da reporter, do assistente. Dá uma tragada. Duas. Sabe que a reporter o olha insistentemente. Tem vontade de levantar. Chega a tirar o corpo da cadeira, mas a reporter ganha tempo.

- Mas e quando você fazia fotografia social... Tinha público, tinha objetivo, não é?
R: é... fotografia social, é cada termo que vocês inventam! eu comecei trabalhando no sindicato dos metalúrgicos, comecei minha vida profissional lá. fotografei todas aquelas greves, aquela luta, lula, tudo isso. gosto de algumas daquelas fotos, das metarlúrgicas, principalmente. são gente de verdade, sabe.

- E continou depois...
R: sim, eu tinha bastante vigor na época. e eu acreditava nisso, da fotografia poder... poder criar alguma emoção nas pessoas. alguma emoção movedora, sabe, modificadora mesmo. viajei pelo norte, pelo nordeste, tudo aquilo. não sou o único. e outros fizeram melhor que eu.
Rui apaga o cigarro no cinzeiro, a boca amarga, faz um sinal de água pro garçom. Falar disso sempre dá um amargo na boca.

- Você disse que acreditava nisso. Não acredita mais?
R: não... veja você, menina. você olha uma fotografia de um monte de criancinha magrinha, sujinha, elas tão há mais de quinhentos quilômetros de você, o que você sente?
A reporter arregala os olhos, não podia deixar isso acontecer, deixar o entrevistado tomar o lugar do entrevistador. Estava fazendo tudo errado.

R: piedade. todos nós sentimos piedade. e piedade leva a o quê? piedade não é um sentimento modificador, concorda comigo? ela acaba ali, olha que dó, essas crianças, olha esse país não tem jeito. você vai pegar um avião e dar sopa pra essa criança, vai? não. nem eu, que estive lá, fiz isso. tem fotógrafo que diz que tira fotos dessa gente pra mostrar pra eles depois. não isola eles... que besteira! o que é que a dona de casa sente ao se ver naquela casinha caindo aos pedaços, ela toda suja, ein? humilhação. pensa que é bonito? não é. isso é coisa de classe média achar bonito. bonito pra ela é ela num vestido novo, num lugar bonito.
O fotógrafo tira foto da gesticulação larga do outro fotógrafo. Mal o ouve, procurando um bom ângulo.

- Isso tem a ver com o rumo que você tomou na sua fotografia nos últimos 10 anos, certo?
R: eu fui ficando mais velho também, não acreditava mais naquela tal função modificadora da fotografia. fui encucando, me perguntando pra que é que fotografava, quem é que via, o que eu podia trazer pro mundo de novo. aí comecei a experimentar de tudo.

- Aí estamos falando da sua fase onírica...
Rui sorri com sarcasmo.
R: fase onírica! eu não sei quem dá nomes pra tudo. eu estou desistindo da fotografia, mas quero me abdicar das palavras, dos rótulos, de tudo. mas isso não tem como, não sou eu quem dou, né.
A reporter olha para baixo e sente-se fraca. Se ela não der uma reviravolta, sabe que as lágrimas virão. E com ela, se vai sua reputação. E a vitória daquele velho maldito. Não sabe porque seu professor não tinha ainda comparado uma entrevista a uma batalha.

- Você falou que a dona de casa pobre prefere uma foto bonita dela.
R: sim, você não prefere também?
A reporter o fuzila com o olhar. Ele se diverte e sorri.

- De qualquer maneira, aquilo não é ela. Você acredita no poder da ilusão da fotografia?
R: acontece que... toda fotografia é uma ilusão, entende? aquilo não é real, não pode ser. olha o seu fotógrafo, escolhendo minhas melhores caras, no melhor ângulo. ele quer uma foto do meu sorriso irônico, do meu samblante triste, do meu cigarro. eu sou isso? não sou só isso, ninguém é. ninguém é uma foto. eu comecei a acreditar piamente em como a fotografia é uma mentira deslavada, uma intenção discarada do fotógrafo de dizer o que quiser do seu objeto. não existe respeito, nada disso. eu comecei a acreditar que a fotografia deforma. e a partir daí, fiz fotografia discaradamente deformante. você olha pro meu último trabalho e não vê realidade ali. você vê forma ou luz ou distorção. eu não quis enganar mais ninguém.
A reporter pousou seus olhos no homem à sua frente. Meio minuto antes e dele só vinha ódio, mas agora... tinha-no ganhado. Ou, ao contrário, ele tinha-a ganhado. Sentia uma esquisita vontade de abraçá-lo. Rui olhava preocupado para baixo, não exibia nenhum sinal de ironia.

- Eu gosto bastante desse trabalho.
R: eu gostei de fazê-lo. não gosto muito do resultado.

- Por quê?
R: isso não é... não é... fugir do real não adianta.
Rui tem os olhos mais tristes agora, se perde nas palavras. A reporter encosta a mão no seu joelho, pedindo sua atenção com carinho. Ele a olha. Pela primeira vez, a olha como humana.

R: olha, menina. eu cheguei num ponto que não tem mais saída. eu não vejo mais além, e também não posso mais voltar pra trás. o passado não me interessa. e o futuro me testou tanto que eu não tenho forças para desafiá-lo. o meu desafio é esse: a fotografia não me interessa mais.

- E fugir da fotografia não seria...
R: por favor, não... não diga o que todos os reporteres me disseram. se o seu fotógrafo parar um pouco com esse flash, eu posso ser inteiramente sincero com alguém. e assim também, me deixem em paz com essa história.
O fotógrafo aparece por detrás da câmera, um pouco assustado. A reporter lhe sorri e ele larga os equipamentos na mesa, mostrando-se ofendido.

R: essa coisa, esse papel que chama-se fotografia, isso não é realidade. e também não é feito da matéria dos sonhos. isso não pode captar nada. não pode captar a essência de nada, a essência humana, o calor das coisas, a energia que tudo movimenta. não é tirar apenas uma foto em movimento, pra transmitir o movimento, entende? o movimento é mais, é contínuo. quando a gente vê com os nossos próprios olhos, tudo é tão... é tão... sensorial, entende? a gente sente na pele, ouve, cheira, guarda na memória, pensa, se emociona. é uma delícia. e não é só a realidade, também os nossos sonhos... os nossos sonhos são construídos assim: eles são totalmente convincentes em seus sentidos e por isso nós acreditamos neles. e a fotografia não pode nem chegar nisso. nisso que os sonhos são capazes. nisso que a realidade é capaz. a fotografia não é capaz de registro, não é capaz de achismo ou invencionismo. ela vai até certo ponto. depois, não mais. por isso eu não quero mais, eu não posso mais. não posso ir contrário a mim mesmo. ninguém pode.
Rui respirou fundo e olhou para algum lugar ao além. Tinha os olhos úmidos, lágrimas tímidas. Tremia um pouco também. Era um baita monstro, mas um monstro desarmado, com o coração aberto.
A reporter sorriu, entre satisfeita e carinhosa, e desligou o gravador. Aquilo era o fim. Um bom fim.

- Obrigada.
- obrigado você, por não me interromper, nem fazer mais perguntas. e seu nome, qual é?
- Renata.
Sorriram.

janeiro 05, 2011

cinco anos

era assim, sempre assim. a menininha ia quietinha no carro, ainda um pouco sonolenta, olhando pra tudo que passava rápido lá fora, a doce luz da manhã banhando tudo claro, tudo azul. a mãe também quieta, pensando em sabe-se-lá-o-quê, preocupada com o resultado do exame, ansiosa pelo verdicto médico, rezando pra que hoje dê tudo certo, sempre rezando, e esse Deus, essa manhã, essa luz, onde estão? e a irmã sonolenta e mal-humorada no banco de trás, acordada às pressas pois estavam sempre atrasadas, com os olhos embaçados olha o mundo sem realmente olhá-lo e querendo se deixar embalar pelo sono antes que chegasse aquelas filas, aquelas criancinhas incansáveis.
e a menininha, de repente, em meio à música que toca sem ninguém realmente ligar diz, com sua voz sonora e fina:
- olha lá, nana, olha lá, mãe, o parquinho.
a irmã vira a cabeça preguiçosamente e olha ali o gira-gira, o balanço coloridos de uma creche pública pintada toda de azul e branco. nana sorri para ela.
- é uma escola, sofí.
- uma escola, nana?
sofia sorri e tem os olhos azuis distantes, desses que olham além da estrada e conseguem chegar ao horizonte, desses que vivem em sonho permanente e nunca, ou quase nunca, perdem a esperança de esperar um dia lá chegar.
- um dia eu vou poder voltar pra escola?
talvez nos corações da mãe e da filha mais velha vinha uma vontade de chorar, uma tristeza sólida, piedade, tenha misericórdia, senhor, é só uma criancinha. e ir à escola, não existirá no mundo coisa mais rotineira, até sórdida, trivial, chata e por vezes deprimente? não existirá mais banal do que ir à escola... e nós aqui, a caminho do hospital. mariana queria lhe explicar o porquê disso tudo, mas não poderia, porque também não o sabia.
- vai, sofí, claro. quando seu cabelinho voltar a crescer.
e ela sorria. ela podia sorrir enquanto os outros tinham vontade de chorar. porque a possibilidade de tudo isso junto: de cabelo, de escola, de amiguinhos, de tudo isso era a certeza, o desejo, o horizonte e era fácil chegar ao horizonte só sorrindo assim.
- e aí você vai poder balançar os seus cachinhos, lembra?
e invadia no carro a lembrança viva e colorida, que vinha até com cheiro, cheiro de shampoo de tutti-frutti, tal cabeleira vasta de cachinhos dourados e a menininha balançando a cabeça e dizendo 'balança os cachinhos, balança os cachinhos'. e aqui agora, a menina carequinha, alguns fios apenas, ainda que cheirosos, com cheiro de sabonete, balançava os cabelos da mesma maneira, e com a mesma alegria, e com tal vigor como se os tivesse, como... se os tivesse.
- balança os cachinhos, balança os cachinhos.
você os tinha, sempre os teve. só agora eu os vejo, porque não importam os cachinhos realmente, não importam se existem ou não, contanto que existisse o sonho e existisse o desejo e existisse o sorriso de boca aberta, os dentinhos de leite, os dois da frente separados, e existisse amor. mesmo que fosse a caminho do hospital.
e isso acontecia toda vez, todo dia, que passavam por ali. e era todo dia porque todo dia era dia, uma nova vida, uma nova possibilidade de viver, e de chegar lá, e de sonhar. talvez você soubesse que não íamos chegar lá, mas é que lá já era cá pra você, contanto que estivesse feliz.

feliz aniversário, sofia.
onde quer que você esteja.

Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade, noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar
Correndo vai pela terra
Vai pela serra
Vai pelo mar
Cantando pela serra do luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar
(o trenzinho do caipira)

tenha uma boa viagem.

janeiro 04, 2011

uma velha senhora de vinte anos

eu sou feita de matéria-morta
matéria antiga, feita de madeira torta
se você forçar, nem assim entorta
eu sou teimosa e burra feito uma porca

eu sou assim, nasci assim, só finjo não ser
quando seus olhos querem melhor me ver
eu desvio, faço curva, serelepe cambalhota
- eu sou antiga, feita de matéria morta

desse mundo eu não sei, não aprendi
sou má aluna, dessas aulas fugi
e as palavras, na garganta as engoli

é que dentro de mim nasce um turbilhão
quando me vem querer com todas as mãos
e eu desaforrida, lhe peço sincero perdão

(sou oca, opaca, matéria-morta, intacta:
livro empoeirado no sebo encardido,
triste peça no antiquário encalhada,
covarde senhora olhando o mundo lá fora)

janeiro 01, 2011

outra poesia

aviso: leiam a de baixo também
aviso 2: é isso mesmo

sô cagada
sô alienada
sô e só e so

so assim, sem acento
sem alento, so sim

sem acento como assim
sem graça sem gosto

eu não sei me doar a ninguém
nem à causa nem à pausa

ninguém é facista
ninguém é comunista
todo mundo se finge de pacifista
que tédio de mundo de morro
que morro de tédio no mundo
que morro de mundo de tédio

caralho! isso lá é poesia
se for pra falar de amor:
nunca amei!
se for pra falar de sexo:
nunca dei!

e se for pra falar do céu eu sei lá
céu todo mundo vê
vou falar do céu pro cego ver
só assim pode
(e também não pode
há quem diga que não exista poesia
onde persiste a utilidade)

sô cansada de tentar ser útil
dessa sociedade errada e eu aqui
sem saber onde ir eu aqui
profetizando o fim do mundo enquanto
fumo meu cigarro e toco uma punheta

mas não!
eu sou menina
tenho pavor à tabaco
e não fica bonita, na poesia
a palavra siririca.

imediato

sobre o tempo
eu já não sei
não posso mais saber:
o tempo é água
escorre e volta
envolve e mata

sobre o ano que vem
eu nunca saberei
o ano é mar
não nasce nem morre
não se conta nem se conhece

do dia que nasce
só isso eu sei
o dia que é
o meu ano
e o meu tempo
e a noite é
minha morte
temido descanso

minha vida eu já não sei
não tenho planos
não tenho encantos
minha vida se distende
por uma via que eu não vejo
há neblina na estrada
e eu ando devagar
sem ligar

e este mundo tampouco soube
é grande até não mais divisar
é tanto que eu me canso
e tudo que eu recebo é pouco
e o pouco é além dessa sede
dessa fome
dessa falta

a hora de agora
só isto eu sei
o que na minha'lma se agita
ou se cala, resfogelada
se me afogo ou se me salvo
se sou gente ou se sou pedra
ou se é de bicho
o meu instinto

só de agora eu me planejo
o próximo segundo
já não sei...
o resto inexiste
só agora é real
e a sua lembrança
que flutua
eterna
sem tempo, nem dia, nem ano

só agora eu sei
e só agora posso querer
ou te querer

agora e um pouco de sempre
em você
eu vivo no imediato
e também no infintio
vai saber
se assim é bom de viver

mas já não sei
contar as horas seguir os passos
se não na necessidade
de respirar expirar e ser
somente pra viver