janeiro 06, 2011

o fotógrafo que decidiu não mais fotografar

- Rui S. tem hoje 58 anos. É um dos fotógrafos mais influentes do Brasil. E está aqui, do meu lado, para nos contar melhor sobre sua decisão de não mais fotografar.
Rui se mexe desconfortavelmente na cadeira e olha para todos os cantos, como se não fosse ele o entrevistado.

- Então, Rui...
R: posso acender meu cigarro?

- Á vontade...
R: nunca se sabe não é, esta geração tão saúde... não entendo mais nada, viu.
Dá uma tragada no cigarro. A reporter sorri constrangida, retrai um pouco os lábios, mas logo depois os abre em um sorriso convidativo.

- É... vamos começar. Quando o senhor começou a fotografar?
R: foi em 80. quer dizer, fotografar mesmo, o ato de pegar uma câmera e tirar fotos eu era ainda moleque. acho que tinha uns 16 anos, tinha um tio que morava na França, trouxe de lá, era uma beleza de máquina.
Sorri sarcástico e olha para a reporter.


R: sabe como era não, de filme? aquilo que era fotografar, viu...
A reporter arqueia as sobrancelhas, impressionada com aquele sarcasmo bruto, aquele ali não iria facilitar nada pra ela. Tinha que entrar na dança. Rui olhava para cima e tinha um ar de riso no rosto.

- Por que aquilo que era fotografar?
R: eu tirava foto das pernas das meninas, debaixo da mesa, essas coisas. tínhamos que esperar dias para que se revelasse as fotos, ficávamos na maior ansiedade. aquele bando de muleque, quando eu chegava com as fotografias, era um alvoroço... isso que é beleza de fotografia, entende? aquilo era real, era sincero. puro e simples interesse pelas pernas das meninas.
Rui fecha a cara. Vê-se as rugas delineadas, a velhice dos cabelos grisalhos naquele retrato de nostalgia. O fotógrafo da reportagem bate uma foto. Vai pra capa, essa.

- Mas o senhor fez fotografias realmente lindas.
R: fiz pra quem, minha filha? no final, eu já não tinha pra quem fotografar.

- Por isso que o senhor resolveu parar?
R: não. não só por isso.
Rui olha para o lado e ignora a presença do fotógrafo, da reporter, do assistente. Dá uma tragada. Duas. Sabe que a reporter o olha insistentemente. Tem vontade de levantar. Chega a tirar o corpo da cadeira, mas a reporter ganha tempo.

- Mas e quando você fazia fotografia social... Tinha público, tinha objetivo, não é?
R: é... fotografia social, é cada termo que vocês inventam! eu comecei trabalhando no sindicato dos metalúrgicos, comecei minha vida profissional lá. fotografei todas aquelas greves, aquela luta, lula, tudo isso. gosto de algumas daquelas fotos, das metarlúrgicas, principalmente. são gente de verdade, sabe.

- E continou depois...
R: sim, eu tinha bastante vigor na época. e eu acreditava nisso, da fotografia poder... poder criar alguma emoção nas pessoas. alguma emoção movedora, sabe, modificadora mesmo. viajei pelo norte, pelo nordeste, tudo aquilo. não sou o único. e outros fizeram melhor que eu.
Rui apaga o cigarro no cinzeiro, a boca amarga, faz um sinal de água pro garçom. Falar disso sempre dá um amargo na boca.

- Você disse que acreditava nisso. Não acredita mais?
R: não... veja você, menina. você olha uma fotografia de um monte de criancinha magrinha, sujinha, elas tão há mais de quinhentos quilômetros de você, o que você sente?
A reporter arregala os olhos, não podia deixar isso acontecer, deixar o entrevistado tomar o lugar do entrevistador. Estava fazendo tudo errado.

R: piedade. todos nós sentimos piedade. e piedade leva a o quê? piedade não é um sentimento modificador, concorda comigo? ela acaba ali, olha que dó, essas crianças, olha esse país não tem jeito. você vai pegar um avião e dar sopa pra essa criança, vai? não. nem eu, que estive lá, fiz isso. tem fotógrafo que diz que tira fotos dessa gente pra mostrar pra eles depois. não isola eles... que besteira! o que é que a dona de casa sente ao se ver naquela casinha caindo aos pedaços, ela toda suja, ein? humilhação. pensa que é bonito? não é. isso é coisa de classe média achar bonito. bonito pra ela é ela num vestido novo, num lugar bonito.
O fotógrafo tira foto da gesticulação larga do outro fotógrafo. Mal o ouve, procurando um bom ângulo.

- Isso tem a ver com o rumo que você tomou na sua fotografia nos últimos 10 anos, certo?
R: eu fui ficando mais velho também, não acreditava mais naquela tal função modificadora da fotografia. fui encucando, me perguntando pra que é que fotografava, quem é que via, o que eu podia trazer pro mundo de novo. aí comecei a experimentar de tudo.

- Aí estamos falando da sua fase onírica...
Rui sorri com sarcasmo.
R: fase onírica! eu não sei quem dá nomes pra tudo. eu estou desistindo da fotografia, mas quero me abdicar das palavras, dos rótulos, de tudo. mas isso não tem como, não sou eu quem dou, né.
A reporter olha para baixo e sente-se fraca. Se ela não der uma reviravolta, sabe que as lágrimas virão. E com ela, se vai sua reputação. E a vitória daquele velho maldito. Não sabe porque seu professor não tinha ainda comparado uma entrevista a uma batalha.

- Você falou que a dona de casa pobre prefere uma foto bonita dela.
R: sim, você não prefere também?
A reporter o fuzila com o olhar. Ele se diverte e sorri.

- De qualquer maneira, aquilo não é ela. Você acredita no poder da ilusão da fotografia?
R: acontece que... toda fotografia é uma ilusão, entende? aquilo não é real, não pode ser. olha o seu fotógrafo, escolhendo minhas melhores caras, no melhor ângulo. ele quer uma foto do meu sorriso irônico, do meu samblante triste, do meu cigarro. eu sou isso? não sou só isso, ninguém é. ninguém é uma foto. eu comecei a acreditar piamente em como a fotografia é uma mentira deslavada, uma intenção discarada do fotógrafo de dizer o que quiser do seu objeto. não existe respeito, nada disso. eu comecei a acreditar que a fotografia deforma. e a partir daí, fiz fotografia discaradamente deformante. você olha pro meu último trabalho e não vê realidade ali. você vê forma ou luz ou distorção. eu não quis enganar mais ninguém.
A reporter pousou seus olhos no homem à sua frente. Meio minuto antes e dele só vinha ódio, mas agora... tinha-no ganhado. Ou, ao contrário, ele tinha-a ganhado. Sentia uma esquisita vontade de abraçá-lo. Rui olhava preocupado para baixo, não exibia nenhum sinal de ironia.

- Eu gosto bastante desse trabalho.
R: eu gostei de fazê-lo. não gosto muito do resultado.

- Por quê?
R: isso não é... não é... fugir do real não adianta.
Rui tem os olhos mais tristes agora, se perde nas palavras. A reporter encosta a mão no seu joelho, pedindo sua atenção com carinho. Ele a olha. Pela primeira vez, a olha como humana.

R: olha, menina. eu cheguei num ponto que não tem mais saída. eu não vejo mais além, e também não posso mais voltar pra trás. o passado não me interessa. e o futuro me testou tanto que eu não tenho forças para desafiá-lo. o meu desafio é esse: a fotografia não me interessa mais.

- E fugir da fotografia não seria...
R: por favor, não... não diga o que todos os reporteres me disseram. se o seu fotógrafo parar um pouco com esse flash, eu posso ser inteiramente sincero com alguém. e assim também, me deixem em paz com essa história.
O fotógrafo aparece por detrás da câmera, um pouco assustado. A reporter lhe sorri e ele larga os equipamentos na mesa, mostrando-se ofendido.

R: essa coisa, esse papel que chama-se fotografia, isso não é realidade. e também não é feito da matéria dos sonhos. isso não pode captar nada. não pode captar a essência de nada, a essência humana, o calor das coisas, a energia que tudo movimenta. não é tirar apenas uma foto em movimento, pra transmitir o movimento, entende? o movimento é mais, é contínuo. quando a gente vê com os nossos próprios olhos, tudo é tão... é tão... sensorial, entende? a gente sente na pele, ouve, cheira, guarda na memória, pensa, se emociona. é uma delícia. e não é só a realidade, também os nossos sonhos... os nossos sonhos são construídos assim: eles são totalmente convincentes em seus sentidos e por isso nós acreditamos neles. e a fotografia não pode nem chegar nisso. nisso que os sonhos são capazes. nisso que a realidade é capaz. a fotografia não é capaz de registro, não é capaz de achismo ou invencionismo. ela vai até certo ponto. depois, não mais. por isso eu não quero mais, eu não posso mais. não posso ir contrário a mim mesmo. ninguém pode.
Rui respirou fundo e olhou para algum lugar ao além. Tinha os olhos úmidos, lágrimas tímidas. Tremia um pouco também. Era um baita monstro, mas um monstro desarmado, com o coração aberto.
A reporter sorriu, entre satisfeita e carinhosa, e desligou o gravador. Aquilo era o fim. Um bom fim.

- Obrigada.
- obrigado você, por não me interromper, nem fazer mais perguntas. e seu nome, qual é?
- Renata.
Sorriram.