dezembro 22, 2010

deus dá asas à minha cobra

escuta, me desculpa. me desculpa, mas eu sou assim, um pouco confusa. é que você me deu tempo de olhar pra janela, de pensar um pouco. eu não funciono assim, pensando. você tem que me pegar de surpresa, me dar bote feito cobra. deus dá asas à minha cobra. eu quero ele dê asas às cobras de vocês, porque assim eu posso ser pega desprevinida. se não for assim, eu sou um porre. eu olho, penso, reviro. em um segundo, eu já tenho todas as possibilidades. e as possibilidades me fazem querer morrer. o medo de tomar a decisão errada, sempre isso. eu acredito nisso - mas não é verdade? - nisso de que tudo tem uma consequência. você acredita que alguma coisa pode ser solta assim, pode ser tão desapegada das amarras, da vida, do mundo? se for pra ser tão desapegado, eu ando não querendo. eu até acho divertido - mas você sabe - não é nada além disso. sabe que eu vivo nesse mundo fechado, nesse círculo, as mesmas pessoas, sabe, é como se todos estivessem presos dentro de um quarto, e o quarto não é tão pequeno, e as janelas tão altas e fechadas. nesse quarto tudo pode, porque ninguém vê e ninguém julga. nem deus tem coragem de espreitar por debaixo das portas porque ele não poderia. o inferno tá lotado de gente já. e eu tenho me acostumado a estar neste quarto, a não ser julgada, a ser tão mas tão despregada, tão mas tão livre, que a liberdade é uma prisão. clichê, né? mas é, é sim. daqui a pouco, nada vale. não vale minha ou sua vontade, porque é tudo nosso. onde a gente queria chegar assim? eu não posso. eu voltei presse mundo, que é concreto que é grande que é assustador, meu deus, olha só o tamanho desse céu, olha essa profundidade - eu-não-sei-lidar-com-tudo-isso. desaprendi. e voltei a ser assim, meio pequena. mente fechada - você diz. minha mente é aberta, acho eu, eu tão racional, eu tão fria, eu tão libertária, eu tão aaaaaarr... não. eu tenho um coração fechado. entende? e da mente a gente foge, molda, faz o que quiser. do coração, é quase impossível. emoção a gente não controla. não controla tesão, não controla coração acelerado, não controla vontade. e meu coração é conservador, sim. não sei, mas é. eu tentei disciplinar ele, mas não dá. e depois, nesse mundo, eu tenho que me proteger. antes a minha liberdade me prendia, e eu já tava de saco cheio. agora que eu tenho todo esse mundo me encarando de frente, esse mundo que ninguém perdoa ninguém, e eu tenho que tomar certas medidas, se não eu não ia sobreviver. sei disso, porque já fui desse mundo grande. fui muito mais dele do que dessa liberdade às avessas que conquistei (ou que só abocanhei). e pra me proteger eu me enfiei nessa prisão, nessa minha própria prisão, dos meus sentimentos, das minhas vontades, dos meus blablablas, dessa confusão que não faz sentido. essa prisão, pelo menos é minha. e é egoísta, porque não tem lugar pra mais ninguém dentro dela. ninguém que meu coração não queira. é tão assustador assim? eu sempre fui meio assim, meio arredia, meio cheia de coisa. é, cheia de coisa. de tudo isso que eu te falei, de todas essas concepções, eu pensei em tudo isso e um pouco mais antes, e aí já não dava mais. e se eu vou me foder, bem... acredito que sim. mas a gente ta aí pra isso.

dezembro 14, 2010

a filha do síndico

é que nesses dias dei por fuçar minhas memórias passadas. distantes, que é pra aquelas mais presentes pararem de me fazer doer a existência. dei-me de cara com a infância bem-vinda: um mundo que tudo parece mais claro, mais dócil, mais azul. passei dias a passear com a minha infância, a reconhecer rostos perdidos. passei dias no meu antigo prédio, uns blocos quadrados de pastilha cor de salmão. entre os blocos, milhares de corredores e plantas donde ali o mundo se escondia, o mundo, então, era só percorrer os corredores brincando de pega-pega ou esconde-esconde. e havia aquela, a filha do síndico. era uma menina morena de cabelos escorridos e, talvez, escorregadios. éramos uma gangue permanente de uns sete mais ou menos, e vira e volta, quando as brincadeiras já eram tédio, gostávamos de aprontar pelo prédio. de apertar todos os botões do elevador, tocar campainha e sair correndo, jogar gelatina em pó na caixa d'água, sujar de lama as paredes brancas. e quando alguém discordava da tal, da filha do síndico, ela coloca os braços finos em torno da cintura e dizia, numa voz estridente e mandona: sou a filha do síndico, vou contar tudo pro meu pai. custei a lembrar o nome da maldita. e era ainda claro como as reminescências do passado ainda se avivam no meu peito: ao pensar naquela voz dizendo ser filha do síndico, eu logo sentia raiva da menina. eu, 46 anos, com raiva de uma projeção fantasmagórica da infância. lembrei-me do nome dela, Isadora... Isadora. o sobrenome eu já sabia, pois lembrava-me do meu pai, que sempre a reclamar do síndico, como de todo o resto, dizia o Sr. Barros, o Sr. Barros é um trouxa, e quando jogava cartas com os amigos ouvia ele contar piadas sujas a partir deste infame sobrenome. Isadora Barros. eu já não sabia aonde ia me levar essa necessidade de desenterrar um passado já tão longíquo, mas me preocupando com estas questões mesquinhas, livrava-me da tristeza e da solidão que me maltratavam sem trégua. Coloquei no google, Isadora Barros. o que me veio não foi consolador. a primeira notícia já tratava da morte do filho de 17 anos desta mãe, Isadora Barros, por uma doença ainda desconhecida que andaram matando gente de todas as idades, que os médicos preferiam chamar de febre A. o menino caíra na cama, ardera de frebe por três dias inteiros e morrera. e ali vi a foto da mãe. ainda que com os olhos muito inchados e ainda que bochechuda, pude reconhecê-la. ainda tinha os cabelos escorridos, mas agora cortados mais curtos. tinha os mesmos olhos pretos, a cor jambo, o nariz arrebitado e a pinta perto do olho direito. nem eu sabia que havia acumulado tantos detalhes assim acerca da menina. é que a raiva, talvez, faça mais memória que o amor. ou que a indiferença. fiquei a encarar aquela mulher, que fora a odiada filha do síndico, e agora era uma coitada mãe de um filho morto e especulada pela mídia. resolvi ir ao enterro do menino, que seria às 17 horas. queria olhar de perto aquela menina, ops, aquela mulher, queria saber se ela ainda me falaria com aquele tom agressivo, queria dar-lhe um abraço pela dor que nunca cessaria. vendo assim, meus problemas até pareciam mesquinhos. coloquei uma boa roupa e passei gel nos meus ralos cabelos.

tinha bastante gente pelo local. o caixão estava em uma das saletas, com coroas de flores na porta, e bancos nas laterais onde se acumulavam todo tipo de gente. dois fotógrafos conversavam distanciados. tive raiva momentânea daquela mídia infernal, uma dó daquela mãe que só queria paz, comprei todas as dores dela em um só instante. afinal, ela fora minha... amiga. a reconheci logo. estava sentada perto do caixão, olhando para baixo. uma mulher falava coisas ao seu lado, mas ela não parecia prestar-lhe atenção. ela sorriu, agradeceu e se levantou. foi até a porta de fora. eu a segui. senti meu coração apressado, agora que eu estava ali mal sabia o que eu ia lhe dizer. minhas palavras nunca iam fazer diferença nenhuma. eu era um nada na vida daquela mulher, um menino magricela e quieto que de repente explodia em palavrões. ela fumava e encarava a vista lá fora, que não era nada agradável, toda aquela grama, túmulos, anjos, marmore, flores. fiquei ao lado dela, um pouco afastado. já que eu estava ali, tinha que falar alguma coisa.
- oi...
ela me respondeu com a cabeça e bateu o cigarro no chão.
- eu sou roberto... você se lembra de mim?
ela parou e me encarou. aqueles olhos pretos, aqueles olhos pretos que se aproximavam do meu rosto e ficavam esprimidos enquanto da sua boca voava saliva enquanto gritava eu-mando-aqui-sou-filha-do-síndico. por um momento, achei que a veria fazer isso novamente.
- roberto...
- do prédio... nós tínhamos uns 9, 10 anos.
ela deu um sorriso de reconhecimento.
- você era a filha do síndico.
ela parou e me olhou por um meio minuto. meio minuto não é pouco tempo nesse tipo de conversa, chegando a ser constrangedor. ficou a me olhar, mas não olhava a mim agora, lembrava-me de mim criança, também impertinente, com manias de querer fazer o mal sempre. lembrava-se daquela época, daquela infância perdida, porque de repente, eu havia lembrado à ela que existiu certo tempo em que não tivesse que suportar nenhuma dor, que a vida era só ser filha do síndico, e a vida era fácil assim, era possível controlar o mundo inteiro. um tempo tão anterior a tudo isso que quase era impossível que tivesse existido. por isso, talvez, ela sorriu.
- obrigada por vir.
- fica bem. você é a filha do síndico.
ela sorriu, sem graça. e eu, panaca, para estragar todo aquele momento mágico, estes raros, de sintonia, como se nossas memórias tivessem se fundido em uma só e passassem como um filme diante de nós, meio que nos lembrando que, um dia, tudo fora mais fácil. e eu, panaca, sempre a fazer piadas ácidas. para nos salvar do constrangimento besta, chegou uma menina com uma calça de ginástica verde-limão e fones no ouvido.
- a tia Dê tá te chamando.
- essa é minha outra filha, Roberto. esse é um... amigo de infância da mamãe.
a menina consentiu. Isadora passou a mão no meu ombro e sorriu, complacente, indo para dentro. fiquei com a menina que olhava para o triste cemitério. achei que chorava. resolvi lhe confortar.
- seu irmão tá bem... tá num lugar melhor.
ela olhou para mim pela primeira vez, e daquela altura, eu estive de novo pequeno, e aqueles olhos pequenos pretos e esprimidos eram de repente a filha do síndico me fazendo de palhaço novamente.
- não acredito nisso tudo, nem em Deus.
ela disse isso, mas muito bem poderia ter dito, eu-mando-aqui, eu sou deus. depois de ter me recomposto, olhei com curiosidade para ela, fazendo o máximo para que meu espírito não sucumbusse àquela versão-mirim da filha do síndico.
- quantos anos você tem?
- 12.
ela cuspiu os números, olhando ainda para frente com firmeza. ainda abri a boca a tempo de falar-lhe com 12 anos é muito fácil não acreditar em Deus, sua prepotentizinha, saiba você que sua mãe também era assim, uma metida, e olha só o que resta da sua mãe, um caco, todos nós estamos um caco, sua mãe não me perguntou, mas eu também tenho dores gigantes aqui dentro de mim, e antes que eu começasse, a menina me olhou de um jeito superior novamente e foi para dentro sem nem me falar tchau. fiquei com a frase enlatada na garganta - ainda bem. mas mesmo assim, tudo aquilo me fizera bem, de um jeito que eu não sei, me fizera sentir vivo de novo, como moleque. dei uma última olhada para a convulsão que era aquele enterro e segui o rumo de casa, ainda recolhendo memórias muito antigas, decidido a reavivar estes sentimentos dentro de mim, pois era preciso sentir, nem que seja o que já há muito fora enterrado. saí correndo pela rua, porque o vento forte que me batia no rosto me lembrava os tempos de menino e me fazia esquecer o jeito lento e moribundo que eu andava ultimamente.

dezembro 12, 2010

restos

era um tanto amargo viver assim. vivia de restos. não de comida ou de roupas, de restos de sentimentos. recebia aquilo que exagerava na conta, uma desculpa, um passatempo. eram restos do tempo que você podia me dar, restos dos beijos que me eram reservados, restos do seu amor um tanto diluído. e você era assim: tão expansiva, tão completa, tão vazia. mal me entendia, mas eu me conformava com o resto, que era um olhar um pouco repreendedor enquanto eu declamava minhas poesias. era um pouco dos seus dedos que eu conseguia apertar numa hora ou outra que você os deixava soltos perto de mim. dedos roliços assim, pequenos que só, tinha-os ainda como restos, ficava comigo a parte da unha a me arranhar.
eu tinha o corpo todo arranhado, bem era verdade e andava, ainda, cabisbaixo. lá vai o homem maldito que não sabe o que é ser amado. não é bem verdade, se quer saber, eu tinha um pouco, uma parte, um décimo do seu amor. não poderia dizer que você não era generosa, tinha amor por todo o corpo quente e saía a distribuí-lo por aí. não era partes iguais: também não cobro isso de você, pequena, porque você é humana, e como toda boa exemplar dessa espécie, não é nada igualitária. dividia o amor assim, um exagero para uns que, na minha opinião, mal mereciam. eu ficava de longe, a olhá-la, e a imaginar como seria ter você e grande parte de você e do seu amor.
tinha ciúme, sim, mas não do outro, mas sim do amor que era desprendido, feito perfume praquele. era tão fácil, ele só te olhava. você ficava vermelha, roxa, de todas as cores, segurava as mãos nas mãos, olhava o céu, o chão e depois se derramava nele. de um jeito que é tão seu, tão líquido. e eu sentia, sem querer, as lágrimas que dos meus olhos saíam, aguados, por não poder ter todo esse seu amor.
e você vinha depois, machucada - porque há de haver dor em tanto exagero de amor, não há? - ignorava minhas lágrimas e se deitava no meu colo a fazer piadas. e eu tentava beber o máximo daquele amor que era meu, e eu tentava e tentava aproveitar o máximo, mas por vezes era tão pouco amor que não havia o que se aproveitar. e eu tentei dizer a mim mesmo que de restos era minha sina viver, que como mendigo eu posso também me acostumar a assim suprir todas as minhas faltas.
mas já não era possível, não, pequena, me descobri grande, com vontades e desejos de tudo, com uma grande insatisfação que não se consumia. e todos aqueles restos que eu sobrevivia, despejados sem jeito sobre mim, eu já não podia: eu queria mais, eu queria todo o seu corpo pra inundar no meu, pra liquifazer minha matéria de puro amor - e não mais esse ódio que transbordava em lágrima que ninguém via.
era amargo viver assim, e eu tive que me decidir, tive que dizer adeus, nunca mais te ver, deixar em você talvez alguma marca que a distraísse. já não tinha esperanças infatis, a minha falta não ia te fazer me amar loucamente, porque você não possuía esse amor pra me dar: tudo que podia ter dado, me deu, uns restos, pequenas partes, generosa mas dolorido. e fui assim, aleijado, porque já não podia.
e mesmo assim vejo pequena, que como qualquer que viva de restos que mal consegui me livrar desta aura: ainda assim, mendigando em outro plano, eu peço e reclamo qualquer grande amor e sorrio feliz com qualquer mísero carinho e assim, sobrevivo aos poucos, vivo só um tanto. e se eu escrevesse o livro da minha vida, teria poucas palavras, poucas páginas: todo o resto que me fez valer a pena viver caberia em uma solitária folha de papel.
era um tanto amargo viver assim, mas de outro jeito eu já não podia.

novembro 22, 2010

o verão

era verão, então. e os seus cabelos ficavam mais loiros, mais descascados, tinha assim a impressão deles: como se tirassem suas cascas invernais e se libertassem para o sol que vem. e sua pele semi nua costumava se apagar junto a areia, e eu não podia mais te distinguir: eu nada mais via, seu corpo se esfarelava nas minhas mãos. foi num desses dias ensolarados, então, que talvez eu tenha te perdido, debaixo dos grãos, e eu então me dei conta, tinha você se tornado areia, e a areia bem era minha, como bem era de todos os outros. passei o resto dos dias caminhando pela beira do mar, sentindo a água gelada enroscar-se nos meus tornozelos, a areia molhada debaixo dos meus pés calejados de rocha marinha. eu já não tinha o que fazer: na minha cabeça juntavam-se cem fios brancos, e a minha conta bancária era larga feito aquele mar, passava a me meter de ser escritor e de ter você.
era muito menina, os outros podiam dizer, mas eu já era velho, viúvo e sadio, e tinha por querer ter alguém assim, ao meu lado. e desde os quinze eu te vi, chegando na minha casa com olhares assustados: olhos redondos feito duas luas brancas que me assustavam. não pude resistir, feito velho tolo que quer rememorar a coragem covarde dos dias de imaturidade. não podem dizer que fui mau, esperei a velha morrer, fiz a ela enterro digno, dei o controle da empresa para os meus filhos, cheguei-me próximo do tal e disse: arranja aquela menina, aquela que você trouxe uma vez para casa. ele mal reclamou, se quer saber, e você toda chorosa veio me dizer, que ele te amava, você o amava, coisa e tal. ele deu-me logo você, embalada com duas tranças nos cabelos, pois assim achava que infatil fazia o gosto deste pinto ardil. seu namorado, meu sobrinho, então, também sócio da empresa, me dá certa porcentagem, um pouco baixa, porque sabe da recompensa. pouco reclamo. depois de velho tudo que me resta é ter onde me deitar, e eu gostava de me deitar na sua barriga lisa e nua. você dizia rindo que meus cabelos grisalhos lhe faziam cócegas e eu gostava de me virar e perseguir sua flor-menina, e com a minha língua que nunca descansava arrancar da sua boca pequenos suspiros de amor.
assim, gostava de saber: amor, não paixão, não erotismo. assim te falava dentro dos seus ouvidos pequenos e você olhava para cima, as órbitas das duas grandes luas em uma expressão de certa ironia. e eu gostava de segurar seus braços e olhar dentro dos seus olhos e lhe insistir que era amor, era amor, era amor, até que essa ironia se desfazia, vinha um quê de choro nos olhos, e a lua até se prateava, bonita, e eu beijava, beijava, beijava.
você tinha dezesseis anos e meio quando nos mudamos para a praia. a cidade é coisa para os fracos, não há diversão, tudo é grande frivolidade, estas luzes de nada servem, estes sons vão entorpecer a sua cabecinha: e eu vou te fazer moça-menina bem cuidada, você vai ser bem educada, vai ler joyce e homero, vai saber do sol e da lua, se banhar no mar de manhã, vai ser a filha que não pude controlar, o ser humano que quis ter para mim. eu te moldarei, você é feita de areia, então: te embalo, te puxo, te molho, te seco, te arredondo, espicho, capricho. você vai sair coisa divina. já é bonita, tem a pele clarinha, a pele boa, o corpo bom, bem magra, uma cintura bem delinada, uns seios de tamanho certo e o melhor: uns mamilos claros, curiosos, pontudos, deliciosos. nunca iria dar de mamá a uma criança, não, que não vale botar mais filhos neste mundo e você choramingava e dizia: sempre quis ter filho, acho que tenho instinto maternal, faz um filho comigo. lembro que lhe perguntei: e antes de mim, onde você morava? você errubesceu, fez-se roxa. num bairro aí. diga. um de periferia, o senhor não deve conhecer. você não voltará para lá. e as duas luas se voltaram longas, nuas, amendrontadas. você quer voltar lá? aqui você tem amor, tem de tudo. e você se calou, e eu levei esse silêncio a sério: era um contrato e você não podia ter sumido.
embora eu não ache que você tenha voltado: não, já estava muito bem acostumada a boa vida para voltar ao buraco que era sua família. você não suportaria os maus tratos, as vergonhas, gente que come com as mãos, sei bem, água suja, comida ruim, e você citaria baudelaire, e quem te responderia? olhariam assustados, te bateriam, mandariam dizer menos bobagens, e você, estupeça diria: tenho duas grandes luas nos olhos e bem mereço melhor coisa. queria ter sido bom o suficiente para que você voltasse até a mim. até a esta praia, que era tão nossa, tão minha, essa praia curvada, que era você. três pintas bem claras no seu nariz formavam quase uma constalação e eu gostava de me fixar nelas imaginando-me ser também um poro da sua pele. ou uma pétala da sua flor: pétalas claras, macias, onde eu pudesse morar.
não sei que diabos me fez ficar tão encantado por ti e por suas manias e por seus pequenos detalhes: só sei que sua voz fina, quase sempre com medo, era meu pão e meu vinho, minha velhice se tornava, quase-lá, o melhor da minha vida.
você não podia ter escapado, fundido à areia que agora piso, só não podia. mas eu te avisei: disse que eu não era fácil. nunca fui. minha falecida esposa que o diria, talvez vocês duas tenham se encontrado e tenham uma divertida conversa. sei que vão gritar e falar mal, irônicas, mas no fundo se lembrarão dos suspiros que eu lhes arrancava. minha faleicda esposa teria que puxar no fundo da sua memória, já que nos ultimos anos pouco a fazia prazer, já que dela só me saia o nojo. e vocês duas, então, rindo ironicamente, escondendo os dedos por debaixo dos vestidos celestiais, se masturbariam pensando em mim, novo e robusto, enrugado e linguarudo, por dentro destas alminhas sadômicas. quem sabe um arcanjo viria e as mandaria direto para debaixo da terra: e lá me aguardariam, quem sabe, poderia eu te encontrar quando eu me for, no inferno, para nos deliciarmos?
lá não há fuga, segundo contam na bíblia, é tudo ardor, dor e quentura. tudo que a gente queria, tudo que eu te queria. lá não tem como: eu serei o teu senhor, possuidor das suas entranhas, estralhaçador da sua alminha pequena. e não terá como você me trair com moços ricos e atrevidos, mostrar a eles sua florzinha macia, deixar que eles toquem seu mamilo, deixar que cheirem seu cabelo que é feito o sol. no inferno só tem alguém que te comerá além de mim: o diabo, mas ele fede a enxofre, e você, mal acostumada a perfumes franceses, estará acorrentada de bom grado ao meu corpo.
ah, pequena, que maldades falo eu, aqui sozinho nesta praia, que loucuras estou dizendo enquanto sinto dolorosamente a sua falta, enquanto te repudio e te quero além de tudo. o seu corpo já não se reconstitui: ele é parte da praia agora, e o mar vai te engulir, e você, pequena, que sempre gostou do verão, se tornará o próprio, imperando sobre nossas cabeças, e eu, servo humilde, chorarei para sempre a falta que você me fez cometer.

novembro 14, 2010

poço

eu fui fazer pedido, pedido de quando se corta o bolo, e eu pedi pra ter você, e a faca no meio do caminho, inguiçou, escapou, não cortou. eu quis tentar explicar - então - mas é que não existe nenhum outro desejo do mundo que não seja ter você, que não seja a sua a volta. eu quis tentar explicar, deixa eu sonhar com ela, deixa eu ter ela dentro de mim, assim, na minh'alma, embora a gente pouco saiba o que é alma, embora alma seja confundida com memória, com saudade, com tudo que dói. e eu sou um poço de saudade, sou sim, sou funda, sou escura e até úmida: em volta das minhas paredes, cresce o limbo, verde, musgo e safado limbo, colado com saliva, com frivolidade, dentro de mim sou só esse limbo, tipo de coisa que faz a gente escorregar e cair de um jeito patético: caí porque não tive firmeza. então, não, minhas pernas são fracas, sim, meus braços devagar, então, não soube onde é que eu ia me apoiar, cadê, me dá uma mão preu não cair. é quase como andar no céu: veja só, que coisa boa é a literatura, ficar fazendo metáfora de dor com céu, ai! dá até pra rimar mel e fel, ai! assim como dor e amor, ai! é mesmo de se enojar, tudo isso que me faz poetizar. mas andar no céu é flutuar, voar não sei, feito anjo, não sei, e dentro de mim tem mais a ver com tentar não cair, tentar não derrapar, tentar sobreviver. nem que seja feito pra nadar, então, nem que seja feito flutuar, então, ter onde segurar já é necessidade sem maldade, então, se eu for te usar pra segurar meu coração, pra encostar minha dor, liga não, eu sou um poço fundo: cabe muita coisa dentro daqui. pode jogar de tudo, todo entulho do mundo, olha! eu já não faço restrição: tô quase como escritor de cordel nordestino, de tanto da vida apanhar, e do sol me amargar, já tem que ter muito pra me fazer chorar, olha, por trás dessa cara branca e esse corte de cabelo classe média e esses dois dreads que não tem propósito, tem uma pele rachada de sol, uns olhos pretos feito piche, a boca toda rasgada por ter sido muito salgada. é, rapá, sinto a vida sertaneja no cocoruto, o tamanho do vazio do coração dói feito barriga vazia, é, rapá, joga tudo no meu lombo que eu sou acostumada com muita carga e longa distância, sou burrinho bom, chego bem e chego longe. passo por toda terra do mundo: e tem tanta desgraça nessas terras que nem ligo se você vier com uma ou mais lágrima assim. é que junto com essa bagagem, sei que vem uns riso também, sei que vem de mar, que vem de céu, que vem de verde e de azul e de anil, de cor bonita, de gente bronzeada, de sorriso aberto, de coração e alma leve. leve. aí está, que é alma leve, dona? jamais vou saber, mas sinto sua alma leve, pequena, como o sorriso também o era, com um espaço entre os dois dentes do meio, um sorriso tão bonito (o som mais bonito do mundo, meus senhores), tão leve, tão bonito, levo aqui comigo, viu? mesmo que a faca escape, quer dizer, nós sabemos, levo você aqui comigo, viu, e espero sempre, e vou esperar, porque sou uma eterna espera, porque todos nós somos uma eterna espera, porque se não tivesse o que esperar não haveria porque viver, vou esperar a sua volta, vou mesmo, estou sim. fiz vinte anos, vinte anos, duas décadas, dois zero, coisa louca e tudo que eu tenho é te esperar, e tudo o que eu quero é te esperar, e tudo o que eu vou... é te esperar, e neste poço de espera, meu amor, vou aos trancos e barrancos pelo limbo até não sei quando, tentando não me esfolar, afinal quando você chegar... eu ainda quero ter n'alma aquilo que faz a gente rir, aquilo que a faz a gente amar de um jeito que não tem amanhã nem depois nem ontem nem jamais, eu ainda quero ter a alma leve que é pra poder brincar de pega-pega com você. porque se não, vishe, como vai ser, ein, eu carregando esse chumbo aqui dentro, só tristeza, e você, feito nuvem, algodão, céu e mar, eu quero estar preparada para quando você chegar, eu vou estar.

novembro 03, 2010

fixo

era quando os olhos dele se fixavam em mim. quando eu sentia aquele olhar, e aquele olhar via minha alma, meu fundo, minha ânsia, minhas entranhas se contorciam todas. era uma coisa estranha - um nó no estômago, um frio na barriga, arrepio na espinha. e ia descendo todo o mal estar, o incômodo, feito veneno goela abaixo, ia dar no ventre, ia melar-me toda, ia raspando tudo, ia me contorcendo, me desobedecendo, me enlouquecendo - assim, por dentro. mal sabia agir. perdia tudo, perdia o ar, perdia a fala, a concentração. já não sabia do que dissertava. mal sabia do que estava rindo, instantes atrás, esquecia a piada no meio do caminho, uma história não terminada. tinha que da um gole da minha cerveja, ou do meu café, não sei se era para um tempo meu corpo voltar a ser meu ou se alguma substância (quem sabe o álcool ou a cafeína, então) remexia no fundo o grosso e me ajudava a fingir que estava tudo bem. está tudo bem. agora passou o olhar dele, foi se embora, concentrou em outro alguém, em outro algo, não importa. mas eu queria estar em seus braços agora, não sei, de um jeito que você fizesse minhas entranhas pararem de se contorcer. ou se contorcerem até nunca mais voltarem, irreversível, e então - ah! nem sei se aguentaria. e então ah...! no fundo eu torcia que você me desse outro desse olhar, eu brincava com seus olhos daqui para lá de lá para cá, pra você atingir a medida certa do olhar. a medida certa que me faria perdida, me faria rainha. rainha de mim mesma, caos intermitente, fluxo, sangue e corrente. meio dor, meio amor. ou nada disso - é que não tem nomes, não tem palavras - era só aquele olhar, só aquilo me bastava, e aquilo era sem nome, sem definição, sem jeito. vinha sem escrúpulo e me fazia regurgitar. e eu ali, parada, sentada na cadeira, sorrindo, como se nada tivesse acontecendo. como se eu não estivesse louca por seu toque. como se eu não quisesse engulir o seu olhar. parada, sorrindo, tentando disfarçar.

e depois passava - sempre passava, e eu voltava a ser eu mesma, rindo, falando não-sei-que-lá. e você também. como se não importasse, como se não fosse nada... mas aí, talvez seja nada, talvez seja nada, mesmo, talvez... deixa quieto e passa um café pra mim, por favor.

outubro 26, 2010

você era tão linda

você era linda.

lembro-me daquele dia, que resolvemos fazer um piquenique. coisa simples, passear no parque, aquele com lagoa, um pouco afastado da cidade, sentar na grama verde, comer pão fresco com geléia feita pela sua mãe. você deu um jeito de arrumar cesta de palha, e tava até de vestido florido. lembro-me das voltas que seu cabelo dava, voltas volúveis, voltas de volúpia. gostava de cantar no seu ouvido baixinho, debaixo dos caracóis dos seus cabelos. tanta história pra contar. a grama era tão verde, escolhemos um lugar um pouco longe, embaixo dum eucalipto. cheiro de geléia de amora, de eucalipto e do seu perfume doce, que naquela época não me enjoava. cheio de grama, de terra, de virilidade. sentei-me do seu lado, mordiscava sua orelha, beijava seu pescoço, e você ria, fazia graça, batia as mãos. dei uma florzinha, dessas que se encontra em qualquer canteiro, branca e amarela e você sorriu, tão contente como se fosse rara, e colocou atrás dos cabelos. e daquela noite, não sei se após esse dia do parque, se uns dias depois, que saímos a pé pela cidade: só isso nos importava, não tínhamos objetivo além deu sentir sua mão entre as minhas. e que mãos macias! que mãos macias você tinha. e a cidade era um borrão de luzes: assim me recordo, um borrão de luzes coloridas, e ríamos, e a cidade também nos ria, e acendia suas luzes, tudo era tão hamornia. e também do jeito que era fazer sexo com você. tinha pernas tão firmes, tão acrobatas que me impressionava. pendurava-se em mim feito trapezista e queria e sabia fazer tanta coisa que me deixava assombrado. se lembra? era tão bonita suas costas, formando uma curva perfeita contra o lençol branco, e me lembro quanto branco era o lençol quease me cegando, contrastando sua pele jambo. e te amar, assim de costas, e te amar, assim parecia fácil de qualquer ângulo.

e hoje, que sobrou de ti?
recomendado pelo terapeuta que você tanto quis frequentar, visitamos aquele mesmo parque. uma sujeira, uma grama seca, que é que aconteceu, parou de chover todos esses anos? um mato alto para todo lado, tanta criança ingrata correndo e pedindo comida e aquele eucalipto nos espiando do alto e meio que rindo da nossa patetice. e que geléia era essa que você comprou no supermercado e o pão de forma que você sabia que eu sempre odiei? paramos eu e você, olhando um para o outro. melhor se tivéssemos coragem de rir um do outro, dessa tentativa incabível de refazer o passado. mas não rimos. nunca ríamos. nem tampouco chorávamos (é que eu gostava da cor dos seus olhos castanhos quando você chorava, ainda menina, úmidos e pedintes de proteção para o meu lado). e para quebrar essa monotonia, você abria sua boca torta e desembestava a inventar todos os programas interessantes para fazer na cidade. e eu só queria me sentar no sofá, ver uma tv, quem sabe fazer um sexo com você. e saímos, de carro, e pensar que carros serviriam para facilitar nossa vida, faziam de nós palhaços do trânsito. e rumos a objetivos finitos, filmes, teatros, baladas, bares, shows, não sei mais o quê. nada disso nos contenta, e se quer saber, nos afasta. outro dia fomos ver um filme, não me lembro o nome, e tinha uma cena de sexo, era sensacional, eu fiquei excitado, peguei na sua mão, fiquei imaginando ser sua mão a daquela atriz, e eu, querendo transa mais que tudo, ao acender as luzes do cinema, e te vi ali... tão feinha e acabada, tão desmerecida e desconsoloda... ah! e se o pouco sexo que fazemos não é inventivo, se suas pernas firmes sofreram duas operações já e não podem ser quem eram porque você reclama de dor. porque tudo é dor, e olhar para você me dá dor. não quero mais ir neste terapeuta de merda, não quero mais me lembrar do passado, não quero mais me lembrar de você como era antes. quero fechar os olhos enquanto goze, sem consciência de ser quem, e não quero mais parques, e não quero mais cidades, porque isso tudo não faz mais sentido - parece tudo cinza, cético e sóbrio. quero a loucura dos dias passados, e quero a loucura que te fez linda e que me fez casar contigo.

você era tão linda, mas agora alisou seus cabelos, tem rugas nas mãos, e do lado dos olhos eu vejo, e um sorriso amargo cheio de linhas, você é toda linhas, é toda pelanca, é toda velha. e o que fala, conservadora, e o que defende, retrógrada, te faz tão mais feia quanto o tempo que te maltratou. e quero saber, mesmo, se quando me casei contigo, fui enganado pela insanidade da sua beleza e me fez esquecer de todas as outras virtudes...! ou se é assim mesmo, as coisas que guardamos em casa, se desgastam e ficam feias, e não há nada a fazer. preciso saber se foi culpa da minha escolha ou não. preciso saber de quem você é e de quem você foi, mas me dá preguiça de tentar gostar de você assim, feia, normal e velha.

outubro 17, 2010

entre cascos e frascos
entre cascos e frascos,
qual tamanho dos teus passos
meus laços, teus percalços
seu maço, meu traço.

meu encosto, seu lastro
vai se arrastando
e o chão cimentado
vai se arrebentando.

fundiu o nosso espaço
sem choro nem canto,
meu lado, seu espetáculo,
sua dor, o meu prato.


de partida
olhou-me nos olhos e disse que muito sofria. olhei nos dela e disse que não podia.
afundou-se dentro de si, muito contida. passei a mão por seu rosto, sorri de partida.

setembro 25, 2010

tem dó das moças

os ônibus não tem dó das moças, as despejam feito leito, vão deixando pelas ruas, tem dó das moças, motoristas, as leva para as portas, tem dó das moças, que vão andando no escuro, que vão encolhidas, tem dó das moças, ruas escuras por ondem pisam seus pés levianos, tem dó e sejam boas, e sejam descidas, e sejam bem iluminadas, tem dó das moças, luzes que não se acendem quando passam, tem dó das moças correndo sem jeito, com o coração decompassado, esquecidas e afogueadas, tem dó das moças, os homens que passam, tem dó das moças, os trabalhadores que assobiam, tem dó da moça que há muito nem ama, e que sente no íntimo um pouco de estima, quando sua voz herege se proclama alto na rua 'lá vai a gostosa, princesa, vem, meu bem', tem dó das moças que espicham com os rabos de olho, de canto, tem dó pra não chamá-las de vagabundas, tem dó das moças, nas rodas dos bares, nas esquinas dos motéis, tem dó das moças entre os amigos, tem dó de suas bucetas, de suas tetas, de seu sexo preguiçoso, tem dó da dor de cabeça, da fadiga de viver, e do não querer, tem dó das amantes amarguradas, tem dó, tem dó das esposas traídas, esperando os maridos cansadas, sabendo-se corneadas, tem dó da sua falta de coragem, tem dó do amor que ainda sentem apesar e tanto, tem dó das amantes que se divertem, tem dó daquelas que amam e choram por amores que nunca serão, tem dó das putas, ó mundo, tem dó de seu uso, de seu abuso, tem dó do corpo castigado, tem dó da unha mal feita e do cabelo mal pintado, tem dó das moças que se arrumam demais, e se descabelam nos ônibus, na vida, tem dó das moças que fedem no fim do dia porque não voltam nunca pra casa, tem dó das moças, filhos do mundo, chorando, pedindo, rastejando, lamentando, roubando e enchendo essas mães de vergonha, enchendo as mães de tédio, enchendo as mães de falta de vontade, tem dó das moças, estrupadores, tem dó do estrago que farão, tem dó das mãos que passam levianas, tem dó do mal uso do corpo que te quer bem, tem dó do mal uso d'alma dessas moças, tem dó do canto escuro que as encurralou, tem dó do grito que não escapa, tem dó do olho roxo, tem dó das moças, maridos trêbados e infelizes, tem dó da mão que bate com força contra o rosto imaculado, tem dó das moças que querem outras moças, deixe que queiram, tem dó das pedradas, tem dó dos pedidos sórdidos de vozes de testosteronas, tem dó das atrizes pornos, tem dó do silicone, tem dó dos homens que são moças também, tem dó, sociedade, de sua arma impune e hipócrita, sempre apontada presses olhos chorosos, tem dó, mundo, tem dó outras moças das moças, que olham as moças com um olhar cansado e não ajudam outras moças porque também a moça passou por tanta dor, tem dó do orgulho irracional, tem dó de não ajudar a mãe jovem, tem dó da avó rancorosa, tem dó da tia, tem dó das freiras, piedosas e impertinentes, tem dó das beatas, mesmo daquelas que pecam escondidas, tem dó, tem dó daquelas que são picadas, escondidas, sangradas, mortas, sepultadas, queimadas, tem dó, mulheres, da própria espécie que te encara na rua, e que é tão igual, e é tão moça, não passa reto, não pára de não olhar, não ignora assim, a indiferença tudo corrói, tem dó, ferrugem, de estragar esses sorrisos, tem dó, vida, de estragar essa alegria, tem dó dor, de parar a música e de interromper a dança, tem dó das moças que bebem no bar e que pedem esmola, e que fumam cigarro e que, desfiguradas, andam feito moleques, tem dó das moças que são animais, que são enjauladas, que são vendidas, tem dó das mocinhas, tem dó desse sangue todo, tem dó, olha pra ela, também é moça, também é mulher, também é menina, também é velha, dá na mão dela, não faz assim, não inveja a moça, não faz assim, todo sofrimento é válido, todo sofrimento é moça, e toda moça é mulher.

setembro 18, 2010

arredia

- você é tão bonita, mas é tão arredia.
ele pousou os olhos nela, os olhos muito nela, por um tempo se quedaram quietos. deixaram que se consumissem as palavras ditas, girando voláteis pelo ar que respiravam. ela resolveu quebrar o silêncio, pois o achava desconfortável.
- arredia como?
- arredia feito uma...
- uma égua selvagem?
ela ouviu uma risada sincera, esquiva, ricochetando nalguma parede por ali e voltando aos seus tímpanos um pouco desafinada e sádica. baixou os olhos, ainda incomodada, ouvindo o eco da risada e sentindo o estômago contorcer-se de aflição.
- olha pra mim.
ele levantou seu rosto e ela pôde olhar aqueles olhos dele, tão insistentes, tão leais. quiçá não fora sádica a risada, mas apenas risada, leve e solta, risada por rir e não ter mais o que dizer. ele aproximou-se dela, beijou sua bochecha, um pouco dos lábios, trêmulos lábios de medo, passou a mão pelos cabelos, um pouco dourados, um pouco desgastados pelas aguras da vida, colocou a mão no seu seio, ai, não, aí não, assim não. afastou a mão leviana e baixou o rosto novamente, em defensiva, porque não era possível dar o rosto sem dar o resto?
- você nunca fez isso?
- isso o quê?
esboçou uma risada sem jeito, tentando ser menina, embora já fosse muito mulher, tentando ser ingênua, tentando esquecer a solidão se assomava dentro de si. ele passou a mão pela virilha dela, de leve, quase um carinho, quase como pai, como irmão.
- não. eu nunca.
sorriu de novo, tentando não imaginar suas faces enrubescidas, os lábios tremendo ainda mais, controlando o impulso de sair correndo, controlando as lágrimas que desejavam saltar dos grandes olhos castanhos.
- por quê?
ele indagava sinceramente, mantinha suas mãos longe, aproximava mais o ouvido que os olhos agora, queria realmente ouvir, queria saber, e o que ela faria? teria de se explicar, o mais correto era se explicar, todas as justificativas acumuladas durantes esses anos.
- minha mãe morreu muito cedo, e só sobrou eu pra ajudar na casa. eu morava na roça. desde muito cedo, cozinhava, lavava, cuidava dos meus irmãos, do meu pai, que tinha uma tristeza enorme em viver.
- e na roça, não te amaram?
ela riu com força, uma risada chispada pelo nariz, meio égua, animalesca, dizer isso era quase uma anomalia, ele não entendia, talvez nunca tivesse ido à roça, não entendia, e pela primeira vez ela ia lhe explicar como é que a vida se portava, e como era irônica, e por isso era preciso que se risse diante de tais perguntas.
- não, eu estava sempre de aventais sujos, cheiro de comida e cândida, não há homem que goste de mulher assim. eu tomei o lugar da minha mãe, embora não fosse casada com meu pai, e por isso todos os homens tinham que me respeitar.
riu novamente diante da palavra utilizada, ai, palavras, tão mesquinhas para expressar a crueza dos fatos.
- quer dizer, eles passavam por mim, mal me olhavam, comiam a comida, também, quem ia olhar pra alguém que limpa o chão com a própria mão? não, as mulheres para se amar são outras, são mais livres. e depois tem que se trabalhar de sol a sol, não existe folga, nem final de semana, nem nada. é preciso trabalhar e só.
- e quando você chegou aqui, na cidade?
- eu tinha medo, muito medo. na minha cabeça tudo funcionava como lá, então se eu era faxineira, tinha que resignar ao modo de ser faxineira, quem é que ia me olhar com outros olhos? eu tinha que me proteger também, a gente ouve coisas quando vem de lá,
riu novamente, cada vez mais alto, cada vez mais égua.
- ouve coisas absurdas, dizem que é pra gente se preservar, que só tem gente malvada por aqui, pintam a cidade feito o inferno, e na verdade... tudo é um inferno, não é? são só os outros que vêem de fora, êta gente pequena.
ele passou a mão pelos cabelos dela, ajeitou atrás das orelhas. ele não falava nada, emudeceu diante de tanta confissão, talvez não tenha sido certo falar tudo isso assim, de uma vez, talvez ele não quisesse saber disso tudo, não sei.
- mas agora... você pode ter um pouco de céu, se quiser. tudo tem um pouco de céu, apesar de todo esse inferno.
ela voltou a baixar os olhos, ele pegara na sua mão, beijava ela, e suplicava, com aqueles olhos cheios de promessas, cheios de coisas, nunca vira olhos tão cheios em toda a sua vida, e tinha medo que seus olhos sejam vazios, sejam cheios de nada, e que ela não possa dar tudo que ele espera, que ela não mereça olhos tão completos assim, que é que se ia fazer com tudo isso?
- deixa, vai. deixa eu te mostrar o céu...
ele terminou a frase quase num delírio, e logo beijou seus ombros, com carinho, ia beijando assim, beijava os braços, as mãos, os ombros, ela sentia a saliva se espalhando, aqueles lábios, ora, também eram os lábios cheios de tanta coisa, e os dela, pareciam tão trêmulos, novos, ásperos, como ela podia também beijar daquele jeito? ele ia despindo a alcinha do vestido que usava, deixando cair de lado, e invadindo seus seios, e a outra mão segurava a cintura, e ela estática, assustada, que é que estava pra acontecer ali, o que é que ele ia fazer, parecia que ia me devorar, parecia que eu ia ser engulida por tudo aquilo, que eu ia sumir, ia sobrar mais nada de mim, ia ser só dele, e eu... eu que sempre fui tão eu, e eu que faço agora, e eu que sempre soube fazer o certo, agora aqui, não sabia fazer nada, e ele invadia com seus lábios, e invadia com as mãos, e ai, meu deus, invadia com aquela coisa, vinha invadindo assim, não podia ser, não podia mais conter, lágrimas desbruçavam de seus olhos, e aquela coisa que sentia, e o medo que crescia, não podia ser, nunca poderia,
- espera, espera! não, espera... só mais um pouco, não sai corendo, volta aqui... é sério tem um céu aí dentro, você precisa desse céu, merda, não vai embora, faltava só um pouco, merda, o que é que eu fiz de errado!

setembro 09, 2010

a minha menina

esse cara tá olhando minha menina a noite toda. de um jeito assim, descarado. como é que pode o sujeito olhar a menina dos outros desse jeito? eu claramente estava namorando com ela. ou... talvez não tão claramente. não sei realmente quantos beijos eu dei nela, nessa noite. ou nas nossas noites. de alguma maneira, casais acomodados terminam por acomodar os beijos. sobram-nos os selinhos. acaba que... o selinho, esta forma minimalista de começar uma relação tenha como fim a intimidade máxima de um casal. você sela em quem é intimo. e o que é selar? fechar, então? e se selar fosse celar, e se eu estivesse em cima dela, como a uma cela, e se eu estivesse cavalgando esta égua de longos cabelos cacheados, e se eu estivesse cavalgando por tanto tempo que eu não sentisse mais a cela, acomodado com o sentar sem nem dar conta do bom lombo que me sento?
porque do jeito que ele a olha, me parece que ela é um bom lombo. ele espichava aqueles olhos dele, uns olhos de uns cílios grandes e alongados, e não é que eu tinha certa implicancia com cílios grandes? sempre achei que fosse de gente que quer se meter em tudo, chegar antes que o próprio olho, que o próprio corpo. e não é incomodo essas cócegas que dá na bochecha da gente? se é. e aí, eu já não gostei do cara. mas parei para ver como ele reagia pela noite que se seguia.
ia percorrendo todo o corpo dela, passava como de leve pelo busto exposto, parecia saber que ali, perto do mamilo, existia uma pinta pequena, preta, bonita, que eu gostava de acariciar, parecia saber, porque olhava diretamenta para ela, não é que ele olhasse para os peitos da minha namorada, mas é que olhava direto na nossa intimidade, e isso me parecia pior. se concentrava bastante no sorriso dela, mas o sorriso dela era... era bonito? isso eu já não me lembrava. se para conquistá-la precisei dizer que aquele sorriso era bonito, tinham se perdido as palavras nos vãos da rotina. eram dentes brancos amontados delineados por lábios nem tão grossos nem tão finos. na real, não tinham nada de especial. nem mesmo os olhos, e ele se detinha pelos olhos também, eram pretos, arredondados, com cílios medianos pintados a rímel, olhos tão comuns, tão reais. eu não sei bem desse cara, veja bem, mas é que eu tenho apego ao surreal, tenho apego a grandes olhos azuis anis verdes, estatelados, tortos, gosto até de olhos estrábicos, incomuns, gosto de pensar em cortar estes olhos com navalhas, de beijar dentro dos olhos, de entrar dentro do muco, de sentar-me na íris dilatada. já não sabia se a íris da minha namorada dilatava-se. achava até olhos um pouco mortos, então, por que diabos ele se entretinha por aqueles olhos?
olhei um pouco mais minha namorada tentando descobrir porque tanta atração. é que devia haver um motivo. talvez ela o tenha agarrado no banheiro sujo, tentando realizar um feitiche de um sonho sujo, sabe-se lá, porque eu nunca quis transar com ela nesses banheiros, mesmo no começo, eu fiz de tudo para tudo ser limpo, eu fiz de tudo para tudo ser bonito e certo, de um jeito que eu gosto que seja. talvez ela o tenha agarrado, e ele tenha gostado, e por isso ele a olha assim. e é por isso que ele olha demais para a vagina dela, porque se lembra de quando colocou os dedos lá, porque minha menina gosta muito de ser masturbada, ela pede toda vez, feito menina de quinze anos, e viu que era quente, e que era molhado, e que era, da maneira dela, sujo. e ele com toda aquela barba e aquela pinta de bicho grilo, me parecia gostar dessa sujeira, dessa pronografia, desses feitiches rápidos. e por isso que ele a come com os olhos, porque quer comê-la novamente. mas por que querer comer minha menina? olhei novamente para ela, dançando pateticamente, levemente bêbada, como sempre em toda noite de convívio social que nos propusemos a ter para não cairmos em tédio e cansaço. ela mal sabia rebolar, ela mal sabia ter molejo, malemolência, talvez ela mal sabia fazer sexo. saber fazer ela fazia, porque qualquer um faz, é estar lá, estar aberta e deixar se entrar, e sabia me excitar, porque também, sou facilmente excitável, todo homem na minha idade é, é uma questão quase biológica, um pouco deturpada por tudo isso que se chama amor e se chama tesão, mas no fim é tudo feito para a pura procriação. e minha namorada tinha um jeito de fazer sexo que era um pouco procriação, e todos esses feitiches sujos necessitam de certa malícia, necessitam de certa safadeza assim, e para que se dure o desejo no cara, é preciso que seja ótimo, que seja fantástico, que seja inigualável. minha menina com toda certeza não era inigualável. eu mesmo poderia provar. então, não era bem isso. não era bem um encontro sujo. acho mesmo que minha menina não teria coragem de promover tal encontro sujo. ela acabou de me olhar com seus olhos um pouco caídos, um pouco mortos, mais mortos por estarem bêbados e de me dar um selinho íntimo, um pouco bêbado também, que acabou sendo no canto da boca, mais na pele que na boca, e eu acho mesmo que ela quer ficar do meu lado, que ela não iria assim, com qualquer um na minha frente, e a boca dela tá um pouco rachada também, áspera não sei. talvez ela me trairia, mas não aqui, agora. não com esse jeito um pouco apaixonado que ela carrega. e se ele ainda estivesse atraído pelo fato de ela ser apaixonante por muito se apaixonar, eu entenderia. ela tem um jeito manso de gostar dos outros, não é feita de explosões, é cordial e sensível, e se eu pedir para que ela se retire, ela vai, mas é como um bibelô, um ursinho de pelúcia na estante do meu quarto, eu não pediria para ela ir embora, eu até que gosto desse amor sereno, dormir de conchinha, café da manhã com direito a beijo na bochecha. é um amor que é só. não é bem lá um jeito de se gostar que a gente gosta de ver nos outros, desses sacrifícios amorosos, sacrilégios profanos, gente que se mata, gente que mata o outro, morre de ciúme, morre de amor, faz sexo loucamente e no dia seguinte tem crise. ela mal tem crise. é serena, um pouco bonita, simples. não vejo porque alguém gostar dela. não vejo porque alguém a olharia tanto assim. eu vou perguntar pra ele, eu vou chegar intimando, vou quebrar a garrafa e apontar no pescoço dele e dizer por que oce tá encarando minha mina? mentira, assim não vou, tampouco gosto de baixaria, vou chama-lo num canto, vou ser sincero, mas só não posso deixar que ele coma minha namorada com os olhos, e com os cílios intrometidos, e também, o que é que os outros vão pensar, que eu deixo que todo mundo olhe assim desse jeito assim para a minha namorada? e se ele for gente boa, vai que ele é, eu vou perguntar porquê, e se ele disser quero comer sua mina, aí sim vai ter briga, ou se ele disser eu comi a sua mina, aí sim... aí sim... eu mato os dois de uma vez e deixo um nu em cima do outro, que é pra matar a vontade desse amor. e num banheiro sujo mesmo, que é pra fazer vontade deles, a vontade suja dessa gente hipócrita. mal sei o que estou falando, estou um pouco bêbado também, escuta cara, que caralho que você não pára de olhar pra minha namorada?

agosto 30, 2010

mia

Quando ria
o corpo todo
dela tremia

Trêmulo eu,
aqueles seios,
lambia

A boca dela
na minha,
ardia

Minha mão
naquela, pele
escorregadia

Em cima do meu,
o seu corpo
amacia

Abria a boca
e sem dizer
me pedia

Língua dela,
o que fosse
me fazia

E se pouco,
ela feroz
me mordia

Sua voz,
ao gemer
melodia

Quanto mais,
pude ver
me queria

E quando ria...
ah, quando ria
o corpo dela

todo tre-mia!

agosto 28, 2010

S

seu nome escorrega e vai
nesse vai e vem, vem, meu bem
seu nome de s é sal a gosto
é te esperar com tanto desgosto

seu nome de seu tem de sua
vai numa volta e volta noutra
eu me perdi nessa sua curva
e agora te espero com a chuva

seu nome de s é saudade
saudade que cala e não volta
saudade que fica e engasga
saudosa no nome e e na vida

agosto 22, 2010

te vi por acaso na cidade

te vi por acaso, entre as ruas da cidade e sem acaso você mal falou comigo, dirigiu seu olhar (de um azul gélido que nem sei) e eu, um pouco assustada - como não poderia? - ao te ver ali, bem ali, me pegando desprevinida, num encontro que ninguém sabia. nada fiz, além de te despejar o meu longo olhar, que é castanho, porém é cheio de vontades de você. queria era te fazer meu homem, embora você já o seja antes disso, com esse seu cigarro pendendo da boca, a menina, a menina sou eu, com uma flor mastigada entre os dentes ainda brancos (e os seus são tão amarelados, amor!). mas sem pestanejar, meu homem você não, seguiu em frente, indiferente e só, plácido e lascivo - nos meus mais sorrateiros pensamentos, lascivo e languido, de frente para mim. você seguiu pela cidade, se confundindo com a sua cor, o tom bege das pedras da calcada, as pastilhas desgastadas dos prédios antigos e decaídos, os tons de cinza do asfalto. tornou-se a cidade, parte dela, massa não compacta e heterogênea, convulsionada, louca e colorida. confundiu-se com os rostos tristes, semblantes de quadros modernistas, a boca encerrada por si e os olhos abertos sem ver e o corpo que se move apenas pelo objetivo bastante e só. o quão egoista é este mundo! o quão egoísta você se tornou, misturando-se à turba urbana, à trupe fria que habita esta mesma nossa cidade. e fico crente de perceber que você é tão piche quanto o asfalto, tão argamassa quanto a construcão, um mosaico sem forma das pastilhas caídas e amareladas, o tempo que escorre pelas paredes e postes, o chiclete na rua que nunca some. será que toda a forca que vem do meu amor, todo amor que dediquei à sua revolucão entoada não por poesia, mas por brados políticos carregados de intencões e estigmas maquiavélicos acabará por terra - não terra, mas cimento, então, soterrado pela ausência de timbre? vermelha era sua camiseta quando na rua te avistei, mas já não sei se vermelho é o seu sangue e se em seu corpo deterioriado pelos vícios da idade (e da cidade) guarda uma alma singular, a louca e única faísca de algo que escapa, a diferenca mais explosiva entre ser humano e ser turba conformada. só não sei se de seus olhos escapariam uma chance de tudo desafiar e de me amar, ao menos no seu pensar, e de amar (ao menos então!) o mundo que o envolve - ainda que sádico, trágico, cômico, ignóbil, doentio e estremuchado. espero, enfim, o chamado da sua alma para um dia talvez de você realmente me aproximar e não apenas te olhar entre os tantos (e os tontos), distanciada e só, assim como olho para esta minha cidade que, apesar de tudo e tanto, não parecer. espero que no azul do teu olho exista uma chance de fuga, para assim, fazermos da cidade nossa morada, nosso mundo, nosso ideal e fazer brotar do cinza do chão o vermelho sangue que corre por suas veias, pois ainda não morta, mas em coma sem diagnóstico nem acompanhante.

p.s: perdoem a falta de cedilha.

julho 27, 2010

sobre se reerguer (ou não)

escuta, achei melhor arrancar meu coração. cirgurgia simples, quase indolor. foi durante o sono, porque consciência, quando tá ativa, enche o saco. vem cheia de indagações, vem cheia de incertezas, vem cheia de pavores. foi lá, feito linha tracejada em volta do órgão, e em volta do órgão, o tirei, completo, ainda bombeando um sangue invisível. foi assim: decisão tomada de uma hora para outra. e foi assim: quando você se foi. porque é preciso saber lidar com a partida, é preciso saber lidar com a ausência. poderia, então, começar a ir num analista. poderia, então, me afundar de vez na vida. mas não: preferi não sentir mais dor. não sentir mais nada. não querer sentir, só esquecer. cada dia é um dia: junto do coração me vai a memória de supetão. a memória é recheada de lembranças sentimentais, sem as tais, deixa de existir e fica aquela... funcional - que em mim pouco funciona, mas veja lá, dá para se viver. e por aí fui... para cada dia rir de novo da mesma piada, estar bem com as mesmas pessoas, que é para deixar de perceber que você não está mais aqui. porque com o coração se vai a esperança, essa agonia que insistem em otimizá-la, mas não passa de espera dolorida, ferrugem que corrói.
mas não - pior que não, não tirei meu coração, não ousaria a tanto, não poderia com isso. sem coração de que adianta viver? e se vivo é para te homenagear, para ser um pouco daquilo que você me ensinou a ser.
acho bem que o costurei, sim, mal sei costurar, mas acho bem que sei costurar coração. é preciso agulha, é preciso linha, é preciso falta de amor próprio. costurar o coração pouco a pouco, encapá-lo, feito almofada, patchwork, bordado, crochê, falta-me a técnica. costurei com linhas tortas, com desajeito, entre lágrimas que não cessavam. eu estava tentando fazer elas pararem, e assim, encapado e dentro do meu peito, eu poderia esquecer, eu poderia deixar de esperar, eu poderia fingir que não tinha coração. bate ele, agora, o suficiente para me deixar viva, para me deixar sentir um pouco que seja.
e pela falta de técnica, pelo desajeito, pela falta de conhecimento de como se deve proceder nestas horas funestas, deixei vários furos. por estes furos, conectando o lado de dentro, o coração quase farto, e o de fora... ainda sinto sua falta, ainda me lembro do seu riso e ainda espero que você esteja, algum dia, do meu lado. que você esteja, algum dia, para me fazer feliz como fui com você. é carregando tristeza e a despejando na veia, por estes furos finos, que vou sendo tomada, de corpo inteiro, por ela, tornando-me mais pálida talvez. tristeza essa, ácida, constante, invasiva. jorra com intensidade quando passo pela estante do meu quarto (e lá estão suas bonecas de pano sorrindo ironicamente) pelas lojas de brinquedo pelas ruas pelo milkshake pelo mc donald's pelos livros infantis pelas crianças outras por tudo que eu sinto, irreversivelmente, eu sinto, vontade de destruir. e torna-se branda, quase imperceptível, quando não estou sozinha, e então minha costura bem funciona, veja só: eu rio, porque me esqueço, eu amo, porque me convem, eu sofro por causas pequenas. só assim eu conseguiria viver, aos trancos de não ser inteira. porque ser inteira, menina, é estar do seu lado, com o coração desremendado, inteiro e desprotegido: sabendo viver a vida em sua máxima euforia. e não tendo como - por que diabos não tendo - viverei assim, de trancos de esquecimento, de tristezas herméticas, de risos salgados e respingados de ironia explosiva. e de um coração muito bem guardado, muito bem escondido, muito bem no fundo, de modo que ninguém há de tocá-lo de vez.
se este método é eficaz, aí já não sei, não poderei garantir (e é por isso que a consciência é melhor que fique quieta, sem interferir com sua razão insuportável onde não é chamada), mas aguardo as consequências sem maiores dores - até por que existirá maior dor, menina? - nem maiores entusiasmos. apenas vivo com o que me deram, não seria boba de me dar a morte ou de apenas existir num mundo tão cheio de aléns, apenas sobrevivo para ser um pouco, ainda e mesmo assim.

julho 06, 2010

virgínia

ela deu o nome da filha de virgínia, porque era virgem. ela, a mãe, jurava que era virgem. virgem, intacta, branca, olhos cor de mel, rabo-de-cavalo. não era feia. mas naquele dia, o dia em que concebera o filho (ou achava que fosse esse o dia, não havia outra explicação) ela saiu para a noite, pensar aflita sobre as dores da vida. é que a vida é cheia de dores, aqui e acolá, alfinetadas de insatisfação, problemas irritantes. ela não saiu para pensar na sua dor de ser virgem, porque não sentia dor nenhuma nisso. a vida é muito mais do que sexo ou não, ser desse tipo de gente ou daquele. não, mas naquele dia, tristonha e só, conheceu um homem, e foram para o bar, um bar cairia bem. ela gostava de beber, porque beber deixava a vida mais colorida, porque é preciso ber para aguentar a dor de ser si mesma. como é que os outros mortais não sucumbiam a delícia de não ser eles mesmos por algumas horas? dissertava ela, para o tal homem. depois, não se lembrou de nada. quando acordou, no dia seguinte, na sua própria cama, sem lençol nem cobertor, e ela adorava cobertor. tudo que se recordava era de um breu: um buraco na memória, uma falta de cor e de luz e aí, tudo bem. ela não levou a sério. continuou a viver. e aí, vieram aquelas dores. dores no abdomem, enjôos a qualquer motivo. uma chatice. foi no médico e descobriu: estava grávida. grávida como, doutor, se eu sou virgem? ele sorriu. deixou que ela engulisse a informação, ele deve estar pensando que eu sou louca, mas eu sou virgem. foi embora intrigada, conversou com as amigas, todas já muito bem cheias de sexo em suas vidas. e perguntram: e não doeu? e ela disse que não sentiu nada. e prazer, sentiu? olhou atônita. o que é prazer? tomar sorvete de morango numa tarde ensolarada era um prazer, um retorno a infância, o máximo de alegria que se contia. não, respondeu, pensando no prazer de chupar o sorvete, nenhum prazer, nenhuma dor. estranho, elas disseram. então elaboraram a teoria: tinha ele dado remédio, esses boa noite cinderela, esse tipo de coisa que apaga, e aí ele vai e pimba. ela ficou preocupada, voltou ao médico e disse: bem, doutor, pois é, eu achava que era virgem, mas tô achando que o cara me deu um daqueles boa noite cinderela, sabe como é? desmaia e vai. isso eu não ligo, não, o que eu ligo é se isso pode fazer mal pro meu filho. é uma droga, não é? e o doutor, acostumado com esse tipo de malandragem, sorriu e disse que não, não, fica tranquila, minha filha. e no final da consulta lhe prescreveu um psicológo que ela nunca foi. então, nasceu a filha: virgínia. algumas pessoas disseram que era para ela tirar o filho, mas tirar pra quê? por quê? não fazia sentido nenhum. e a filha, menina, tinha olhos pretos, pretos redondos feito jabuticaba, deve ser do homem da noite, não sei, bochechas rosadas, branca feito ela, nem tão magra nem tão gorda. e assim foi, nasceu virgínia, filha de mãe virgem. e ela? ela continuou a se proclamar virgem, com seu rabo-de-cavalo muito bem feito, sem nenhum fio desordenado.

junho 30, 2010

minha tartaruguinha

quisera eu saber escrever de outra coisa - nessa viagem que faço, já pensei muito em outras histórias, sempre envolvendo mulatas, desilusão, miséria e amor - mas nada disso me contenta. vou seguir a minha alma, o que estrangula minhas entranhas e faz meu coração bater pausado, quase parando de tristeza. meu espírito sempre voa e pára em você... sofia.


hoje nós jogamos suas cinzas. o que são cinzas, nana? cinzas são... um pó.. ah, cinzas são... deixa quieto. não é bom saber o que são cinzas, basta saber que elas existem, doem mas existem, e é preciso espargi-las. espargi-oquê? jogá-las, sabe? não sei se esse verbo serve só pra cinza, não entendo bem disso, tudo que eu me lembrava de cinza antes de hoje era do filme Chocolate, filme esse que você não viu, mas eu vi milhões de vezes por tê-lo em casa. e neste filme, a mulher guarda as cinzas da sua mãe, carregando por onde for, numa urna - sim, urna... quem é que deu esses nomes para esse tipo de coisa também não sei - bonita, de pedra. mas cinzas não são para serem guardadas, doem muito assim... é preciso libertá-las, deixá-las voar, seguir seu rumo, como seguiu sua alma. essas cinzas a gente jogou no mar. esse praia, chamada praia dos padres, ninguém conhecia. e acho que assim fica bonito: a gente lança ao desconhecido. é uma praia bonita mesmo, você precisa ver. tem uma orla de mata atlântica (árvore de todo tipo e tamanho), um coqueiral (um monte de coqueiros, que dá uma vontade de sair correndo entre eles), uma areia grossa... você não gostava tanto de areia, né? pois bem, mas boa de se brincar, eu mesma fiz um buraco e achei uma alga lá no fundo. acontece por esses mares aqui perto o encontro do atlântico norte e o atlântico sul, uma ressurgência. ressurgência de ressurgir, de renascer. e esses dois pedaços de mares se encontrando, tentando se achar. e também é a foz do rio -foz? onde o rio desemboca: nas águas no mar. é tanto encontro para tentar te encontrar... e você, solta, leve, entro da gente, num fio que nunca se soltará. mas deixa eu lhe contar: neste mar tem muita alga calcária, muita pedra, muito coral. coral tem uma diversidade danada, é bonito de ver. você ia gostar. coral é onde o Nemo mora. mas você não gosta tanto de procurando Nemo, mas você se lembra...? as anemonemonemonas! a gente viu uma porção de peixinhos, peixinhos bonitinhos. e por aqui, vem as tartarugas, as história da tartaruga, se lembra? essa eu contei faz pouco tempo - e a tartaruguinha queria ir na festa lá no céu, mas o céu era distante, e a tartaruguinha viajou na aba do elefante. e vem também as baleias, lá por setembro, e alguns pinguins perdidos, é um paraíso sem fim, de bichos dos mais bonitos. e um mar azul, um mar verde, um mar assim, que eu definiria como sendo a cor dos seus olhos. uma cor assim: era azul, ficou verde; quando chorava, azul céu, e alegre verde-água, o mar de vai-e-vem, um olhar de ressaca - e então, quantos corações arrastaria? sei que na escola, já teve um namoradinho, o Juan - Juan, nome de príncipe até! - mais concorrido na sala, e até brigou com a sua melhor amiga que o roubou, a Flora. e você até mordeu ele, de gostar, de abocanhar. nessa ânsia de viver, você viveu de tudo. eu quase não mordi nenhum menino de tanto amar, veja só. a vida é mesmo engraçada. e a gente jogou perto de uma ilhinha submersa, a ilhinha sofia. e quando jogamos junto com as sempre vivas da bahia - flores que nunca morrem - veio uma gavota pequenina, branquinha avoar. gaivotinha que era sofia, era você, voando, em cima da gente, supervisionando nossas lágrimas. e é tanta coisa bonita, tanto consolo... ah, sofia. você tá no meu coração... sempre estará. e toda vez que eu olhar para o mar, eu verei dois olhos me espreitando e pedindo para brincar.

tá bom, nana, mas agora vamos brincar? vamos vai, porfavore!

junho 04, 2010

sofia

está passando Mister Maker na TV. vamos ver, pra gente fazer um trabalho bem bonito. bem trabalhoso. com tinta. canetinha. cor-de-rosa, sua cor favorita. saudade de te dizer pra usar as outras cores, e você insistir em rosa, rosa, rosa. tão menininha. você gostava de desenhar umas pessoas já, que eram umas formas com olhos nariz e boca. era engraçados, pareciam fantasmas. eu os adoro. e eu e a mãe te dizia pra você parar de ouvir xuxa. mas você nunca parou, só quando quis. te deram todas as xuxas possíveis, a nosso contragosto. e você cantava e dançava, toda feliz. a gente acabou entrando na dança também - literalmente. mas o que eu gostava mesmo era quando a gente dançava aquele cd do Antonio, aí a gente pegava uns bichinhos de pelúcia e jogava pra cima quando tocava aquela música do chico buarque com os trapalhões - que fala de circo e de cambalhota. você foi no circo, sofs? não sei, não me lembro. eu imitei uma palhaça pra voce, não é? na corda bamba, aí eu espirrava, caía, voce dava risada, depois fazia igual. queria pular em cima da bola de pilates, igual eu, ás vezes comia o que eu comia. e quantas vezes a gente brigou ein? que coisa, hahahaha, as pessoas devem rir de mim, mas a gente brigou sério, uma vez, eu fiquei ofendida, eu chorei, e voce irredutível e arrogante, quem vai pensa que eu tinha 19 e voce 4? hahahaha. voce puxava meu cabelo, me batia, e tinha vez que eu até achava engraçado. como eu era brava contigo, não é? gostava de ser brava, que era pra você ser uma pessoa boa, não sei, algo que passava pela minha cabeça, sem ser mimada, esse tipo de coisa de irmã mais velha. e eu sei que voce sempre ia voltar pra mim, toda amorosa dizendo 'nana...' porque eu tinha certeza do seu amor. voce tinha certeza do meu? talvez eu quisesse te dizer mais... posso te dizer mais? que eu te amo te amo te amo. te dando abraços e beijos. adorava te beijar, passar a mão na sua cabecinha, nos cabelinhos que iam crescendo, ou quando voce tinha cachinhos. ou abraçar voce, enquanto voce ia dormir, assim, o seu corpinho pequeno enroscado no meu. acho que não consigo mais escrever por hoje, sofia, volto logo mais: pretendo te descrever minuciosamente que é pra voce nao sair de mim, viu? não vai, não. te amo muito, esteja bem onde quer que esteja, te mando minhas energias mais sinceras e positivas dessa sua viagem. talvez eu te encontre um dia, mas agora eu tenho que fazer meu papel de filha muito bem - que responsabilidade voce deixou pra mim... - mas não tem importancia, eu vou cumprir muito bem, eu vou durar, viu? eu sei que voce quer que eu faça isso, eu vou fazer viu? vou fazer tudo que voce me pedir, vou sim, e eu que tanto quis que voce nao seja mimada, fazendo tudo agora pra você, hahahha, voce deve tá rindo gostosamente de mim, desse sentimento que só existem entre as irmãs - mesmo que a diferença de idade entre nós seja graaaaaande né? - esse sentimento de... sabe... essa provocação gostosa, esse amor de alfinetes, esse espeta-daqui-pra-dizer-que-me-ama. te amo como nunca vou amar nada, pronto, falei, você tá em mim, tá em nós, mas tá livre também... tá livre pra ser feliz e viver sem restrições... tantas privações, que chatice, não é? mas era preciso e vamos lá, não choraremos o passado que não volta. billy te manda lambidas, eu tenho certeza que ele gostava de você, viu?

maio 06, 2010

o jeito que seus cachos

o jeito que seus cachos, uns fios que se encaracolavam em suaves círculos, ciclos, circos, roçavam na minha pele, o jeito que me faziam cócegas bobas, como se tivessem em si a brisa - como se fossem a brisa - e perpassavem de jeito leve, úmido, claro na minha pele maltratada, o jeito que seus cachos tratavam a minha barba, como a mão de uma mãe que faz seu filho dormir, de um jeito de paz, com um jeito materno que não sei - nessa hora, eu segurava o rosto dela e enfiava a língua dentro daquela boca que era minha, nessa hora, eu era a tempestade que respondia à brisa tímida que me aconhegava, nessa hora, eu era monstro, e ela... sempre menina.

e ela... sempre menina, gemia baixo e me correspondia.

abril 30, 2010

tenho a sola do meu pé doendo. queimada, de tanto andar descalça. daquela crosta que a terra é feita, daquele jeito que menina disfarça. os dois peitos do pé até doem: são os dois corações do pé. e o coração pisa leve, de seu jeito, forte, palpitando sobre os chãos, as texturas, macio, duro, áspero, ai, um caco de vidro. sangra nosso coração, forte, sangra para deixar ver. e o pé, que coisa engraçada que é. por muito tempo achei feio, de mal gosto, sem jeito. mas há de se ver que o feio também tem utilidade. e não há maior utilidade, se não as mãos talvez, do que os pés: sem pés não se chega em lugar nenhum. e que farão os olhos, os ouvidos, as mãos sem lugar para seus sentidos descobrirem o resto do mundo? é então, primário, pé, base, sustento, arroz com feijão. de tantos fetios tem a sua face, é quase á parte do corpo: tem sua própria característica. é também gente, porque tem alma em si. que é um pé sem alma? é um pé que não anda, não vai, não busca. e sem buscar, que há de se fazer? se a vida é esse constante ir e vir. e também parar. mas não doem seus pés quando param por muito tempo? também dói a alma. quer buscar o próximo. o próximo espaço, tempo. nem que seja para voltar atrás. nem que seja para, na ponta do pé, bailar. acompanhar o pé de outro, num vai-e-vem de coração. e com os passos que dar, bater no chão de indignação, fazer valer a palavra, que é a argumentação sem o aprumo dos pés e das mãos? que é do beijo sem o pé apontado ao corpo, que é do sexo sem o pé escorregando, escorrendo, emparelhando por todo o outro corpo? também é sentido, também é lambido. também é bonito, o pé, na beleza do seu ser: por que nem toda gente bonita também é gente que vale a pena conhecer. e na sua sola, copia a mão, em uma maior extensão. tem também suas linhas de expressão, delinea-se e conta a vida, a vida por quem debaixo vê. quisera as ciganas também pudessem ler os pés: então veriam ali o ser, a luta calada, os tantos caminhos percorridos. a história de quem sempre foi pisado, e não do sucesso do passado: a mão conta o futuro, mas o pé guarda o passado - e não há como saber do futuro sem consultar o passado. o pé é ainda, indicativo de classe social: operário ou bancário, o pé diz. mas no fundo, pé, como mão, e como olho, e como pélvis, é tudo igual: dentro de si só procura ser feliz, só procura o lugar certo para se aconchegar, se exaltar, se enlamear com a vida, com a morte, com a ferida. e tem lá sua beleza, e a contraponto, sua feiúra, e entreato, mil definições que são só sentido: seria pecado traduzir em palavra.

abril 25, 2010

hoje tenho apenas uma pedra no meu peito

dentro da caixa toráxica nada bate. não grita, não esperneia, não luta. parado aqui, dentro e fundo, lá no fundo, que não sei onde mais. parado, intacto, intocável. uma pedra, talvez, dura, cravada, ilhada. pedra só, latente, aqui aonde? não mais vive, não mais pula, não mais engasga. a garganta corre limpa, sem nó, sem dó. a casca, uma lasca, um nada. o cabelo nem mais se despenteia, o olho não mais chora, e a pélvis não mais molha. é casca, é lasca, é corpo. falta-me alma. falta-me arma. falta-me sua voz. seu silêncio em mim petrifica. sem palavra, você vai, volta, lota, não olha, vem, passa, me passa, me amassa, sem palavra, você vem, você vai, se esvai. e aqui dentro não encontro palavra: o seu propósito torna-se minha cor preferida. cor que fere, cinza, cinzento, branco, de nada, calada. obrigada.

hoje tenho apenas uma pedra no meu peito,
e exijo respeito,
não sou mais um sonhador,
chego a mudar de calçada
quando aparece uma flor,
e dou risada do grande amor.


mentira.

abril 16, 2010

roteiro

apresentação da personagem: faz curso de cinema. tem dezenove anos, cabelos curtos. quer seguir o que o coração lhe manda, mas teme o que vem pela frente, mesmo assim anda, e não hesita em virar a direção, sem nunca desviar do caminho.

seq. 01 cidade universitária - externa - dia
está caminhando. travelling acompanha seus passos. passos incertos, anda vagarosamente, de um jeito próprio.
plano próximo do rosto. os olhos castanhos exprimem tristeza. exprimem medo. a boca fechada em riste, exprime contenção. repressão.
(e se houvesse um jeito de enfiar a câmera pela garganta, ali um nó, um nó da faringe com a laringe, ou das cordas vocais entre si, um nó de algum jeito, um nó que é o nó de não poder chorar, um nó que engasga e rasga. e se descesse a câmera pelos tubos, por estes tubos que não são mecânicos, e desse no coração, vermelho brilha, bate forte, comprimido pelos dois pulmões brancos e arrebatados. pulmões que apertam o coração, que o sufocam)

seq. 02 cidade universitária - externa - noite
plano geral. vemos uma outra menina, distante.

- que saudade de casa.

repete, repete. plano médio. plano próximo. vemos a menina de perto.

- que saudade de casa.

ela diz alto, louca, desvairada, anda em círculos.

plano médio da personagem central. ela olha a menina.
plano geral, as duas no mesmo espaço, a central olha a outra. abaixa a cabeça, sai andando.
no mesmo plano, câmera em travelling a acompanha. anda rápido, foge dela. pára e senta.
plano médio, dos ombros. os olhos encharcados de lágrima, a boca treme. treme, esparsa, convulsiva, querendo escapar, querendo imitar. plano detalhe da boca. corta.
plano médio, olha para os lados.

- parece que eu tô num filme.

ela olha para trás. vê algo entre as folhas. é uma câmera, câmera, lente, lente, câmera, quer tudo transformar em filme, tudo isso é só ilusão, ela diz, a lente diz, está claro que diz, é tudo mentira.
- que porra é essa?
corte. tela escura.
- que porra é essa?
tela escura.
- isso é um filme.
tela escura.
- é só um roteiro.
tela escura.
- é literatura.


seq. 03
plano próximo da menina, descabelada, peito sobe e desce, a íris aberta, transtornada, suor na testa brilha, seu pulmão ofega, seu coração se esconde, e o nó enrola tudo que tem dentro dela lá: toda ela é um nó. toda ela é nada.

- não... não é possível. isso é minha vida.
sou eu. óbvio que sou.

ela ri. um riso triste, irônico. os dentes arreganhados, a boca distorcida.



corta.

março 28, 2010

os passos

a vó viu a neta mais nova, um ano, aprendia a andar, caía, sorria, toda gente ria. se apoiava nas cadeiras, de cara no tapete felpudo, nos móveis, nas pernas longas das pessoas grandes. a vó olhava, quieta, e sem sorrir. tinha os olhos um pouco úmidos, mas há quem diga que as vós sempre tem olhos úmidos. a menininha foi até ela, apoiando-se em tudo, talvez sendo chamada pelo seu olhar imperativo - um azul profundo, descendente de alemã, nervos de aço, coração mole. quando a meninha puxou o chale de crochê da vó para baixo, pedindo-lhe atenção, um sorriso talvez, pela graça dos primeiros passos.
- olá, netinha. está tentando dar seus primeiros passos, não é? primeiros passos. há muito tempo eu os dei, e depois aprendi a correr, e andar de bicicleta. na alemanha, andávamos muito de bicicleta, pelas ruas asfaltadas, o vento a brincar livre com meus cachos loiros. loiros, como os seus, querida. você vai ver, querida, depois desses primeiros passos, virão outros. os passos da infância, os passos da adolescência, que passos. um de cada jeito, com sua graça, e sua dor. a gente cai, sempre cai, netinha, o que não pode é chorar demais. a sua avó chorou pouco nesta vida. depois que trabalhou nos campos de concentração, nunca mais chorou. mas a vó tem sempre um pouco de lágrimas nos olhos, que são lágrimas eternas, lágrimas da velhice, você me entende, netinha?
- babababuuuuu.
- já você muito chora, tem lágrimas da infância, lágrimas fáceis, que saem por qualquer motivo e não tem vergonha de se mostrar. não me lembro mais dessas lágrimas, não me lembro de muita coisa. mas deixemos o choro para lá, falávamos de passos, não é? eu queria lhe dizer... netinha... você vai aprender a andar de muitos jeitos, e quando ficar velhinha, de cabelos brancos, como a sua avó, com esses olhos úmidos, essa pele enrugada, você, então, vai desaprender a andar. é preciso desaprender a andar, como se aprende. para poder sair dessa vida, para poder dormir o sono eterno, em paz, sem choro nem dor, é preciso parar de andar. a sua avó pouco anda, com dificuldade, e toda gente quer que eu ande, me exercite. mal entendem que é preciso também não andar mais. é preciso saber parar. descansar as pernas na cadeira de balanço e contemplar o mundo que já não é mais seu. este mundo, este mundo aqui e agora, é todo seu, e não tem nada, nada de mim, querida, você tá me ouvindo?
- vóóóóóó.
- quando ficar bem velhinha, você vai saber a hora, vai desaprender devagar, e vai ser uma luta terrível, como essa que você trama agora. é tanta dor, filha, mas também é alegria, é alegria um dia deitar-se no caixão e cobrir-se de terra, de tanta terra, para nunca mais voltar. é preciso saber dar adeus, minha netinha, sabe como é?
a menina a olhou com os olhos grandes de surpresa. o mesmo azul da avó, se encontrava naqueles olhos, que também eram úmidos, mas uma umidade nova, fresca, reluzente.
a mãe da menina, preocupada com a filha, comentou, preocupada, com a irmã:
- a mamãe falou uma porção de coisas para a menina. está gagá mesmo.
pegou a menina no colo, facilitando-lhe a caminhada, sob o olhar contido de reprovação da sua velha mãe maluca. a avó continuou sentada, contemplando suas próprias pernas, com certa tristeza retida. nunca mais andariam, nunca mais aprenderiam nada, aquelas pernas, já recheadas de todo tipo de passos e corridas.

março 20, 2010

chuva de março

era março e chovia lá fora. as gotas na janela deixavam a imagem difusa. também quem iria querer mais uma vez olhar pela janela? a visão dos prédios estava já gasta. não havia mais graça em qualquer diversão voyer, big brother do vidro embaçado dos vizinhos. mas, enfim, era um sábado preguiçoso, e henrique resolvera cozinhar. já era bem mais das três da tarde, mas o café da manhã havia sido meio dia. de maneira lenta, mexia no fogão com a pá de madeira o molho branco do macarrão. orégano, queijo. manjericão. alho. o vapor saía da panela, o perfume da comida o deixava levemente alegre. daquela alegria que não se explica, que é só algum salivar, talvez a alegria ruminante do próprio estômago, do cérebro entorpecido. por isso, olhou pela janela, olhou a chuva que inundava as ruas, e pensou, com uma certa comodidade que não cabia real tristeza, que não havia metáfora nesta frase. morava em um andar alto, de maneira que estava protegido das chuvas que ameaçavam casas em barrancos, morros, vales, próximas à rios - rio, que rio? rio era o que nadava quando criança, na fazenda do tio, rio de água marrom, marrom por causa da terra embaixo, com pedras escorregadias e pontudas, água gelada, ele e o primo tremendo de frio, caçando sapos gordos. eram grandes esgotos, tais rios da cidade, com seu caminho regulado pelo cimento em torno, recebendo todo os restos da humanidade local, sendo visitado por ratos, pelo seu dejeto que descia descarga abaixo, e até corpo de gente morta - ouvira falar. só alguma coisa na janela chorosa o fez parar de pensar nestes esgotos, e da infelicidade de nascer um esgoto - e não rio como outros felizardos, escondidos em serras inabitáveis - só alguma coisa na casa lá embaixo. podia ver o quintal das poucas casas que circundavam o prédio, e aquela era uma particulamente perto, sempre teve um quintal sem graça, um pouco sujo, de cimento batido, vassoura e rodo, garrafas de vidro de coca-cola, quase nenhuma planta. ali tinha muita água, água suja da chuva, mas quem liga pra água? uma mulher estava naquela água, podia jurar que tinha a calça arregaçada, ou podia estar segurando a saia, as costas curvadas, um pouco aflita, brava com Deus, com São Pedro, com a merda da chuva. e atrás dela vinha um homem, podia jurar que era negro, era tranquilo, vivia ironizando tudo, levava a vida na boa, sorria pra tudo. henrique queria ver algo, queria ver o que eles faziam na água suja da chuva. abriu a janela, e mal ligou pros pingos gelados da chuva em diagonal que caiam no molho fumegante. alho, manjericão e gosto de chuva. pôs o pescoço pra fora, o negro acariciava a mulher curvada, ela ainda brava. ele queria abaixar a calça dela - resolvera que era calça. tinha acordado bem, sonhara com a Debora Secco, tava excitado, sorrindo, querendo. ela brava com o mundo, ele querendo comer o mundo. abaixou a calça, a mulher virou a cabeça, disse-lhe meia dúzia de palavras feias, e ele no ouvido dela - vamos aproveitar a chuva, benzinho. podia ouvir aquela voz grossa no seu próprio ouvido, fazendo os pêlos da sua nuca arrepiarem, o molho estala fervendo, a chuva molha seu rosto. ela continua salvando algo na aguacera, talvez um gato dela molhado, talvez o tapete que colocou pra lavar - o tapete de sisal que uma tia avó fez, decidiu. ele passa os dedos pelo tronco dela, aperta a barriga volumosa, lambe a orelha dela, curvado sobre ela quase totalmente. sua orelha molhada, chuva de saliva. ela continua não querer, continua sem ligar, não quer saber do seu nêgo agora, não quer saber há muito tempo de malandro boa vida que vive às custas dela. mas ele continua, vem, benzinho, vou te fazer feliz, vou devagarzinho, você vai gritar de prazer. henrique, a boca aberta, recebe os pingos de chuva, desbotoa o botão pretaeado da calça jeans, a mão por debaixo da cueca furada de ficar em casa. henrique já não vê, a mulher se vira brava e dá um tapa na cara do negro, a mão cor de mel contrasta em bonita fotografia, ele segura o braço dela, o sorriso desparece. henrique, em êxtase, daqueles êxtases bem comuns, prazer solitário, o mesmo cérebro entorpecido, mas o pênis que agora ruminava. o homem negro joga a mulher na parede de tinta descascada, henrique continua a imaginar o que lhe apatece - como o rio que nunca será esgosto - de olhos fechados, imagina a mulher gemendo de prazer, o negro devagar, carinhoso, sorrindo, o negro, o negro, que negro. e lá embaixo, a mulher chora e grita, não vê carinho nem sorriso no estupro concedido, forçada a sentir prazer, inundada por uma chuva que nunca quis. henrique, já saciado, tira a mão e larga o braço por cima da pia, cai o molho branco e quente na sua pélvis. dois gritos pelo mesmo motivo - um de cima outro de baixo - a dor pela invasão daquilo que é quente e entorpecente. henrique cai, com a mão cobrindo o que arde, fecha os olhos, que droga. não pensa mais na mulher, nem no negro. a chuva chove dentro do apartamento, e pouco a pouco, a pia fica toda inundada. por todos os cantos essa chuva suja, inunda e imunda.

março 07, 2010

Bela

bela sentou-se no banco da estação de metrô. tinha um cachecol marrom enrolado em seu pescoço. fazia frio, e lá fora, chovia uma chuva fina e ardida. os cabelos cortados irregularmente, os cadarços do seu tênis sujos e a barra da calça jeans preta e encardida mal contrastavam com o ambiente escuro e fechado da estação. olhou desdenhosamente para as pessoas que se apressavam em viver. gostava da idéia de morrer vagarosamente, que é um viver em intervalos de inércia comtemplativa. resolve tirar uma gaita de sua bolsa, para fazer o tempo passar. os ruídos do ambiente misturavam-se ao som que saía do instrumento. de início desafinado e irreconhecível, montava-se uma melodia de altos e baixos pouco a pouco. olha adiante um menino. seria bom se falasse com alguém. vê que ele se aproxima lentamente da sua pessoa, não por vergonha, mas por estar a observando. temos aqui outro. bela encara-o com a gaita ainda na boca. usava uma blusa preta de gola alta. era branco e por baixos dos olhos castanhos divisava-se olheiras arroxeadas. o tênis velho caminhava lentamente, e quase podia-se perceber um meio-sorriso que entortava a sua boca fina. seria bom conversar com alguém.
- está tentando conseguir algum dinheiro?
diz uma voz grave quando se aproxima o suficiente para bela ouvir além da música que entoava e dos ruídos de todo o resto das coisas. ela o olhou, com as sobranchelas arqueadas, e nada respondeu. continuou a tocar. gostaria que por ali passasse um fotógrafo profissional. ele trabalha num estúdio e tira fotos de modelos, mas nas horas vagas, gosta de matar instantes da vida dos outros. é loiro, como em blow up. ele passa e os vê. tira uma foto, o click se percebe, mas eles continuam indiferentes à imagem que posteriormente será revelada a olhares desconhecidos. para sempre revelados e recentemente desconhecidos íntimos. nunca saberiam da foto, olhariam com preguiça para o fotógrafo e ele continuaria sua jornada, sem acreditar muito na beleza daquilo. seria em preto e branco.
- bob dylan?
ela tira a gaita da boca, e sorri pouco, confirmando. molha os lábios. silêncio. ele continua ao seu lado, e ela poderia estudar tudo que fosse de seu interesse: as mãos ossudas e grandes, dedos compridos e cheio de linhas, pianista. o nariz ossudo também, grande e adunco, conferindo masculinidade onde se veria apenas traços femininos. desvia o olhar. ele também a olha. deve estudar tudo que lhe permita. no que mais ele prestaria atenção? nas roupas largadas e escuras, e talvez, se estudasse antropologia, poderia classificá-la em certo grupo de pessoas e a torná-la comum e desinteressante, levantando-se e bloquando qualquer tipo de contanto. ou gostaria de literatura erótica. e procuraria as mãos pequenas e nuas, o pescoço alongado, as orelhas pequeninas, a alça de sutiã preta que aparece sem querer. ou fosse lá músico. e entoaria por canções o que mais lhe apetecia, a doçura dos olhos, o sorriso contido, a leveza dos pés, a convidaria para dançar. permaneceu parada, fingindo observar os outros, para que ele a estudasse da maneira que lhe convinha. esperava algum convite. ouviu o corpo se mexer, talvez de incômodo, ao seu lado. queria dizer algo para que ele não fosse embora, mas não pensou em nada.
viu seu corpo se levantar, acompanhar o mapa dos metrôs e observou ele assentindo com a cabeça para ninguém, além do próprio. talvez seria ator.
viu-o esperar antes da linha amarela, pessoas sem rosto acumulando-se ali pouco a pouco. bela levantou-se também. queria que ele a acompanhasse com o olhar preocupado em saber onde ela iria, mas não o olharia. colocou-se na porta mais adiante. logo o metrô aparecia pelas suas vias, comprido e ruidoso. entrou. não poderia perder de vista seu objeto de estudo. mas ele se confundira na multidão de pessoas. sentindo-se ridícula, sentou com a gaita ainda das mãos. olhava para os próprios pés, os tênis também sujos.
- para onde você vai?
não conseguiu conter um sorriso ao vê-lo ali. deu de ombros, então.
- vamos pular na próxima.
fez-se silêncio.
- você fuma um?
não era ator, dançarino, modelo ou administrador. mas isso a satisfez mais do que esperava.
- claro.

março 02, 2010

diário de bordo ou coisas que percebemos quando se passa muito tempo dentro de um ônibus sozinha

não sei bem se as pessoas me acham bonitinha, sim ou não, não, talvez. devem me achar esquisita, isso sim, sei que sim, e é um lugar de esquisitos estes que ando frequentando. é que não gosto de cumprimentar, não sei cair em formalidades, não gosto de dar oi a quem não falo com proximidade. pois estes ois são distâncias disfarçadas em popularidade desnecessária. ou este viés seja mesmo muito pessimista. são só maneiras de iniciar um relacionamento. esta aí coisa que não sei como faz: como estabelecer relações com as pessoas. mas sim, me relaciono, a todo tempo, acho amigos, mesmo que porção-única, mesmo que me distancie, mesmo que os ame logo de cara, mas não sei como fiz eles, eles me acham, a gente se descobre. e se derem chance, eu vou falar até nunca com quem quer que me sinta bem, falarei de qualquer coisa que você escolher: eu darei risada de quase todas as piadas. vou falar, eis coisa que gosto de fazer. vou dissertar sobre o mundo ou qualquer grunhido de emoção. mas talvez seja para disfarçar. disfarças os silêncios. eis coisa que não aguento: silêncios. sei que são saudáveis e necessários, que a quietude faz os olhos baixarem, e os pensamentos devenear, e tal cumplicidade se dará pelo ar, pelo instante, pelo olhar, tudo isso muito bonito... mas não agora. não com quem acabo de conhecer, acho silêncios constrangedores. acho que são ótimos em relações íntimas: aquelas que se pode silenciar e o outro não invadirá seu espaço - pois já pertence completamente ao seu espaço. mas naquelas relações-início, tento preencher todo tipo de silêncio, mas digo de cara, não sou boa nisso. e acabo por me rebaixar, pois frequentemente ouço comentários de outras pessoas: tal pessoas é tão animada, sempre tem o que falar, fulana tão interessante. e assim: pronto, além de não ser bonitinha, ter o rosto de certa forma montado de um jeito ou outro que pareça agradável à vista alheia, não sou interessante. não sou animada, engraçada. todos os requisitos para não ficar sozinha e presa com os próprios pensamentos. coisa mais terrível essa: você com você na multidão colorida. e não é multidão esta idiota ou desinteressante, é uma multidão de multiplicidades lindas, e eu tenho vontade de abraçar tudo isso, de me achegar de todas as pessoas, e ouvir o que a alma diz baixinho para os ossos, para os músculos, para os órgãos. quero explorar todos ao fundo, mas não será possível: sei que não. nem tudo é hamornia, mas no momento, a harmonia muito me agrada neste caos de pessoas.

fevereiro 20, 2010

roendo unhas e sofrendo por uma amizade perdida.

por que eu fui nascer tão sentimental?

fevereiro 19, 2010

poema de seis estroes e quatorze palavras.

acaso
caso
aso
as


por acaso
caso contigo
logo te asso
às avessas


acaso
caso
aso
as


por
contigo
logo te (deixo às)
avessas.

três acasos
dois casos
quatro as
dois contigo
dois logos
dois tes
dois avessas

e só um deixa.

fevereiro 15, 2010

terça-feira de carnaval

deixei o homem em casa, batom vermelho na boca, pena azul na orelha;
a rua de paralepípedo, este vai-e-vem, vem aqui meu bem, nesta louca dança;
amélia, carol e lina, e a minha alegria.

a rua me seduz, toda gente é bicho, atrás de luz, mariposa, atrás de flor, abelha;
e o samba soluça seu choramingar, os corações juntos a batucar, corpo que nunca se cansa;
laura, luisa e josé, pisaram no meu pé.

o meu homem se enfadonha, dorme, ronca, não mais me olha, quem me molha é amé-lha;
olhou-me nos olhos, comeu meu medo, deu de carinhar, meu corpo nessa dança balança;
amélia, amélia, amor, sinto tanto calor.

noite, linda noite se consome, o sol que nasce minha alegria come, adeus amélia;
alma solitária, vazia, quase chora, maquiagem colorida se borra, toda euforia se amansa;
amansa amélia e tchau, até o próximo carnaval.

fevereiro 01, 2010

eu mesma.

sou eu mesma desde que nasci, se nasci quando me lembrei, se minha vontade criou-se do nada, ou tudo isso é memória recriada para parecer mais fantasiada? gostava mesmo dos livros encadernados, cheio de figuras, gostava do nome do escritor na capa. isso é presencial. talvez eu quisesse ser estrela - vamos parar de romantizar o meu passado. não é só porque eu nunca quis ser modelo, que não quis ser famosa. quis ser escritora, e ser famosa. obrigatoriamente. assim como a maioria das modelos não se tornam famosas, tampouco as escritoras. o mundo da moda e o mundo das artes se confundem muito facilmente.
então esta ilusão que sempre fui eu mesma, sempre introvertida e tímida, nenhum acontecimento me fez ficar assim. talvez alguns tenham intesificado, mas a personalidade veio intrísica aos olhos fugidios. e esta mania de desistir? não sei se foi criada, mas sempre me pareceu presente. talvez, então, tenha sido eu mesma, desde que nasci, lendo um livro, chorando escondida, gritando.
mas o mundo sempre se expandiu. o mundo sempre mudou! e eu me expandi com ele, eu não mudei um pouco de cada vez: foram explosões no espírito. no espírito do mundo. a primeira que tenho clara: quando mudei-me para o primeiro ano para o Bentão. saí de escola particular, pequena e apertada, sempre tive os mesmos amigos - crescemos juntos e agradeço por isso. descobrimos as coisas lendo na internet, compartilhando impressões assustadas, delineando nossas próprias personalidades teóricas, que não se repetiram em igualdade em nenhum de nós.
e então, o mundo novo se abriu. era tanta gente, era tana informação, era tanta coisa na prática: e foi tanta decepção. logo eu, queria entrar num mundo maior, num mundo de filmes punks sujos, e me encravei por pátios abertos, pelas turmas populares (enganam-se então, os filmes americanos, estas turmas populares, por excelência, acumulam um tanto de gente que os odeia, e não os inveja de jeito nenhum, e os populares na verdade, são os nerds, estranhos e losers). mas tudo foi uma festa: assim me lembro do meu primeiro ano, uma grande festa. eu estava espantada a todo momento, mas não podia deixar meu queixo caído o tempo todo. eu tentei me expandir a todo tempo, eu me adaptei rapidamente: logo, eu amava esse novo mundo.
mais recente, um outro mundo se abriu, muito mais real e sujo, quando entrei no cursinho. ainda bem que fiz cursinho, pois não estaria espiritualmente preparada para uma faculdade. novamente me assutei, e novamente fingi que tudo era normal, para os outros, neguei a mim mesma um passado de amores platônicos e desistentes, loucuras normais e conversas fúteis. finalmente: aqui estou. hoje sou menos culta do que nunca; embora sempre busquei isso. hoje, já tenho preguiça de citar livros e filmes, tenho preguiça de esconder meu preconceito, de não formar estereótipos. e também, hoje sou mais real. tenho até preguiça de conversas filosóficas em certos momentos, e do bom e correto sempre bem intencionado. estou propensa à loucura fútil e busco isso: busco uma dose de alegria na vida amarga. e poderá me dizer, então, ah que vida amarga o quê, que adolescente boba, que adolescente boba! este esteriótipo me percorre por toda vida. ainda peço desculpas por ser uma adolescente boba. mas veja bem: a vida me amargou já, a vida me deixou triste e pesada, me recobriu de chumbo, e foi quando eu vi outro mundo.
vi outro mundo quando descobriam o tumor da minha irmã, o meu próprio mundo, o meu espírito conturbado, o negrume de tudo, sim! e vi um mundo que não conhecia, só ouvia falar, o mundo da luta por doenças ingratas e sem explicação, misturado à falta de dinheiro, tempo, misturado ao cansaço de tudo, à vontade de desistir, e o amor. um mundo de amor e cansaço se abriu para mim, e o que parecia contraditório, na verdade, se fortalecia. não existe luz, sem sombra, já diziam tantos. este mundo fortaleceu meu lado mais íntimo: não era a vida (a grande festa) que se mostrava, mas sim a morte (a grande dor), face a face. conhecer a morte é um dos caminhos mais dolorosos para entender a vida, mas, por isso mesmo, perdura como não cem mil festas ou conversas profundas poderão nos ensinar.
vi mundos diversos: vi meu mundo desabar ao ser assaltada pela primeira vez (na verdade segunda, mas na primeira só tive vontade de rir - histórias à parte). um mundo meu que primava pela justiça social e pela bondade da natureza humana se desfez em alguns segundos de pura raiva. eu não pude entender - eu ainda não entendo - logo eu? olá, assaltante, eu estava disposta a mudar essa merda de sociedade por você, mas por que você faz isso? por que fala que vai me matar? eu já conheci a morte, você não deveria fazer isso comigo, você sabe, eu sei que você conhece a morte mais que eu, tão mais, que ela é banal para você. para você, então, conhecer a morte não fez celebrar a vida, e sim, tornar a vida um fiapo, um nada, facilmente eliminável. são destas coisas, não são? são destas coisas que me faz ter sentimentos nobres - eu disse que estudei em escola particular? - que me faz parecer superior, mas todos estamos num barco, mas o seu está mais furado que o meu, vê? e esteve afim de me afogar, já que o meu barco continha um buraco talvez consertável.
e o mundo se expande continuamente, e a minha alma aqui dentro modifica-se a cada expansão, mesmo que seja contraída, e fique com medo, que medo deste mundo! e mesmo com todo este temor, eu peço, quero que meu mundo se expanda mais, para assim, eu tornar a me assustar, e ter que me adaptar, e ficar por uns segundos eternamente encantada com o mundo novo apresentado.
mas os mundos se vão e são suplantados por outros maiores, continuamente, será? ou será que essa é uma fase adolescente, e quando os sonhos se vão pela realidade crua e tosca, o mundo tende a se tornar menor? cresce até não poder mais, como um balão, e com o passar dos anos, oi balão perde ar sozinho - não é sempre assim? - torna-se mucho e fraco, sem graça, até acabar por se esvaziar sozinho, ou então, alguém o estourará, irritado por este balão fraco e desajeitado - desaptado ao novo mundo.
espero que os mundos não sejam balões... mas será melhor estourá-los quando estão em sua fase melhor? cheios de vida, cheios de planos, cheios de cores, de um mundo grande, e você, andarilho, pronto para conquistá-lo e engulir tudo que lhe mostram no caminho? a morte será a explosão em pedaços rasgados de um mundo, e a eterna ilusão do espírito que ficou preso no mundo das maravilhas.
não sei, como eu saberei? por agora, o meu mundo se expande, e eu acompanho, saciada e feliz, por sempre me modificar, e por isso - então é por isso? - eu não sou quem nasci, de tanta modificação, mas ainda restará um pouco de mim em qualquer mundo que eu pise, não? ainda restará uma força mínima que me acompanha desde o nascimento, e esta força, que acabará por me enterrar debaixo de sete palmos de mundos pesados.

janeiro 19, 2010

dos urubus

mas olhe, veja bem, acompanhe a cena: o nobre está para morrer. como sabem, todos, que a morte ronda seu espírito? acham que o sabem. o velho agoniza na cama há dias, de uma febre de não se-sabe-o-quê, peste negra, febre terçãa, no fim, acaba tudo sendo castigo de Deus. e os outros, como que avisados por este Deus misterioso, postam-se perto do seu quarto. velhas mulheres de preto reviram os olhos, e choramingam rezas antigas e cruéis. os conselheiros, mais perto da cama, espicham de rabo de olho, como répteis aguçados, um pouco temerosos de não mais participar da corte, e um pouco gananciosos de certa herança, e a língua guardada dentro da boca - mas ah! se fossem lagartos, todos veriam - o veneno doce da vingança. há uma infinidade de pessoas, não se sabe daonde, que ali ficam, vestidos de negro da cabeça aos pés. sobrinhos e sobrinhas, com olhares de malícia uns para os outros, que ninguém é de ferro enquanto espera a morte chegar. filhos, filhas, netos entediados. a mulher, se já não morreu antes, ajoelhada do lado da cama, desde o dia que seu marido tossiu sangue, tem sim os joelhos doendo - por que não teria? - e entende que Deus escolheu aquela hora pro seu marido. não foi, Senhor? então por que não leva este marido que me deu uma vida de desgostos d'alma, de uma vez? enquanto isso, os olhos vermelhos, chorosos, os lenços brancos molhados, uma encenação que se faz passar por real - o corpo da gente já sabe quando é preciso encenar. e mesmo que a morte esteja muito ocupada nos campos de batalha, nas grandes guerras, entre as crianças adoecidas, com os pobres jogados em valas comuns e sem tempo para chorar em grandes enterros, é empurrada para tais castelos suntuosos. é empurrada - sim, como não seria? - se há tanta gente ali, o padre já pronto, o quase-defunto já confessara seus pecados, falta o tom da morte para o contínuo das histórias. acho eu, vendo desta óptica de hoje, o ontem, acho eu que toda essa morbidez, que toda essa pretidão que veste o mundo, todas as preces baixas antes da hora, aceleraram as mortes destes velhos nobres. tudo isto já é morte, não? imagina se o velho passa a sentir bem, recobre-se a cor, não mais pálido, não mais fraco, e recomeça a assinar papéis e desfrutar de cortesãs selecionadas, hein? não é mais possível, pensa a morte, sem seu canto, calculando os números atingidos. e por qualquer que seja o motivo, cai-se o nobre, morre-se, depois de palavras histéricas, afundadas em roncos roucos e soluços tardios, poderá pedir perdão à mulher? poderá avisar que cuidem da amante prenha e amada que chora na choupana destroçada? poderá chamar o filho e rogar-lhe preces de sucesso para a continuidade da tradição familiar? revelará um segredo escondido à sete chaves? ou apenas, morrerá, enfim, sem nada a dizer, ranzinza e enfadonho de viver a vida, de provar dos mais bem feitos vinhos, das mais formosas tetas, dos mais famosos bailes, dos maiores desgostos de filhos que se enveredam por caminhos da burguesias ou pensam em se casar com raparigas. não é assim, não? então, é melhor deixar o mundo para que sigam o caminho deles, ? e morre-se assim, e no fundo, toda a corja, respira, cansada dos trajes pesados e quentes, cansada de toda formalidade. e o que resta? restarão as intrigas, as disputas, os mal-explicados, uma amante miserável.
restarão um filme inteiro, não? em tempos que a moral e a étnica não eram das mais bem explicadas, e toda essa chatisse do tempo de vocês, toda essa justiça que só cai em injustiça, e essa legislação que nada legisla, tudo isso não existia, mas no fim, dará no mesmo, não?

eu, como contador da história, e não da História com H maiúsculo, pois nada mais entendo que fuxicos e tento decifrar as feições malignas, eu, como vencedor dos tempos, e não do Tempo, não senhor, não sou Deus, não sou profeta, sou mero observador, de todos os tempos: eu... lhes digo que quase nada disto mudou. os pobres continuam a ser enterrados em valas, terrenos comuns, jogados ao mar, e dura pouco seu luto, e dura pouco sua intriga, e dura pouco seu sexo. do resto, necessita-se sobreviver. e quando a sobrevivência já é garantida, diria eu aos nobres, diria eu ás classes altas de todas as sociedades estratificadas: aí vem-se a vida. e o que é a vida mais do que busca pelo prazer, por amores demorados e chatos - quando não platônicos, ah, que horror - disputa por status e tronos, intrigas entre irmãos, entre sócios, entre corporações, ambições e sonhos, tudo isto não é a vida, meu caro? então aproveite bem a vida que lhe foi dada, e em vez de observar - como fiz isso, embora tenha trocado por esta chata eterninade (porque a história é um ciclo enfadonho) - faça de tudo para criar confusão, neste mundo, a confusão serão seus passos, a busca de si será seu maior apreço.
mas... veja.
se você for pobre, caro rapaz, esqueça-se de tudo que disse até agora, esqueça-se de tudo, para não pensar que há gente capaz de criar confusão, que há gente capaz de criar enterros, sim, inventam-se os enterros, os lutos! esqueça-se e siga, jamais tenha se encontrado comigo: pois sou bobo da corte, sou palhaço pago pela elite, sou o interesse de quem interessa, e nada tenho a dizer a você.