março 07, 2010

Bela

bela sentou-se no banco da estação de metrô. tinha um cachecol marrom enrolado em seu pescoço. fazia frio, e lá fora, chovia uma chuva fina e ardida. os cabelos cortados irregularmente, os cadarços do seu tênis sujos e a barra da calça jeans preta e encardida mal contrastavam com o ambiente escuro e fechado da estação. olhou desdenhosamente para as pessoas que se apressavam em viver. gostava da idéia de morrer vagarosamente, que é um viver em intervalos de inércia comtemplativa. resolve tirar uma gaita de sua bolsa, para fazer o tempo passar. os ruídos do ambiente misturavam-se ao som que saía do instrumento. de início desafinado e irreconhecível, montava-se uma melodia de altos e baixos pouco a pouco. olha adiante um menino. seria bom se falasse com alguém. vê que ele se aproxima lentamente da sua pessoa, não por vergonha, mas por estar a observando. temos aqui outro. bela encara-o com a gaita ainda na boca. usava uma blusa preta de gola alta. era branco e por baixos dos olhos castanhos divisava-se olheiras arroxeadas. o tênis velho caminhava lentamente, e quase podia-se perceber um meio-sorriso que entortava a sua boca fina. seria bom conversar com alguém.
- está tentando conseguir algum dinheiro?
diz uma voz grave quando se aproxima o suficiente para bela ouvir além da música que entoava e dos ruídos de todo o resto das coisas. ela o olhou, com as sobranchelas arqueadas, e nada respondeu. continuou a tocar. gostaria que por ali passasse um fotógrafo profissional. ele trabalha num estúdio e tira fotos de modelos, mas nas horas vagas, gosta de matar instantes da vida dos outros. é loiro, como em blow up. ele passa e os vê. tira uma foto, o click se percebe, mas eles continuam indiferentes à imagem que posteriormente será revelada a olhares desconhecidos. para sempre revelados e recentemente desconhecidos íntimos. nunca saberiam da foto, olhariam com preguiça para o fotógrafo e ele continuaria sua jornada, sem acreditar muito na beleza daquilo. seria em preto e branco.
- bob dylan?
ela tira a gaita da boca, e sorri pouco, confirmando. molha os lábios. silêncio. ele continua ao seu lado, e ela poderia estudar tudo que fosse de seu interesse: as mãos ossudas e grandes, dedos compridos e cheio de linhas, pianista. o nariz ossudo também, grande e adunco, conferindo masculinidade onde se veria apenas traços femininos. desvia o olhar. ele também a olha. deve estudar tudo que lhe permita. no que mais ele prestaria atenção? nas roupas largadas e escuras, e talvez, se estudasse antropologia, poderia classificá-la em certo grupo de pessoas e a torná-la comum e desinteressante, levantando-se e bloquando qualquer tipo de contanto. ou gostaria de literatura erótica. e procuraria as mãos pequenas e nuas, o pescoço alongado, as orelhas pequeninas, a alça de sutiã preta que aparece sem querer. ou fosse lá músico. e entoaria por canções o que mais lhe apetecia, a doçura dos olhos, o sorriso contido, a leveza dos pés, a convidaria para dançar. permaneceu parada, fingindo observar os outros, para que ele a estudasse da maneira que lhe convinha. esperava algum convite. ouviu o corpo se mexer, talvez de incômodo, ao seu lado. queria dizer algo para que ele não fosse embora, mas não pensou em nada.
viu seu corpo se levantar, acompanhar o mapa dos metrôs e observou ele assentindo com a cabeça para ninguém, além do próprio. talvez seria ator.
viu-o esperar antes da linha amarela, pessoas sem rosto acumulando-se ali pouco a pouco. bela levantou-se também. queria que ele a acompanhasse com o olhar preocupado em saber onde ela iria, mas não o olharia. colocou-se na porta mais adiante. logo o metrô aparecia pelas suas vias, comprido e ruidoso. entrou. não poderia perder de vista seu objeto de estudo. mas ele se confundira na multidão de pessoas. sentindo-se ridícula, sentou com a gaita ainda das mãos. olhava para os próprios pés, os tênis também sujos.
- para onde você vai?
não conseguiu conter um sorriso ao vê-lo ali. deu de ombros, então.
- vamos pular na próxima.
fez-se silêncio.
- você fuma um?
não era ator, dançarino, modelo ou administrador. mas isso a satisfez mais do que esperava.
- claro.