julho 21, 2017

nascimento e morte de sofia vieira garcia

sofia veio ao mundo na barriga da minha mãe, eu tinha quinze anos. eu gostaria de contar a sua história como se sofia habitasse a primeira pessoa, mas, por enquanto, eu consigo conceber sofia através de mim mesma. talvez porque houve um antes - sem sofia, e um depois - de sofia ir embora, e eu tenha continuado aqui. anets de sofia, eu tinha visto bebês nascerem, mas nunca um irmão. antes de sofia, meu avô tinha morrido, mas nunca alguém que eu amasse tanto.
aos 15 anos eu tinha vivido tempo demais como filha única, e era, de certa maneira, era uma menina calma e independente. eu acompanhei com curiosidade a gravidez da minha mãe, mas sem nunca pensar direito no assunto. quando ela me perguntou se eu estava bem com ganhar uma irmã, eu disse apenas que tinha medo de não ter dinheiro dali para frente. parece mesquinho e horrível, mas de fato era o que me assombrava. o que me faz pensar que, antes de tudo, pelo menos, eu era pragmática. eu deixei para amar sofia quando o amor viesse por si só. talvez eu estivesse calma o bastante por saber que eu o amor brotaria sem qualquer artifício. ele brotou. não sei quando. não exatamente quando a  minha mãe deu a luz, foi um parto complicado. uma cesária demorada, aflita. tem uma foto em que eu uso duas tranças e seguro sofia recém-nascida nos braços. é engraçado lembrar dessa foto, porque aos 15 anos eu me lembro de estar tão calma e segura, mas aos 15 anos e com duas tranças, uma calça de flanela xadrez e uma regata preta desgastada, eu era uma criança. sofia nasceu dia 5 de janeiro. mas nada mais me lembro, além dessa foto, e de olhar ela através do vidro do hospital, em que era a única menina e tinha 51 cm. era o maior bebê do hospital. a semana seguinte ao parto da minha mãe foi triste, terrível. minha mãe não reagira bem às anestesias da cesária e ela passou uma semana de cama, debilitada. não conseguia comer, e por isso, seu leite estava estava escasso. ela estava fraca, dormia o dia todo, e acordava para que sofia pudesse mamar. talvez ali, eu tenha sentido o amor, o amor urgente e necessário que um recém-nascido demanda. ás vezes meu padrasto estava muito cansado, e restava para que eu ficasse dando volta pelo corredor de casa, com sofia no carrinho - eu tinha medo de segurá-la por muito tempo - tentando fazê-la parar de chorar. eu conseguia. junto dessa urgência, eu tinha algum orgulho de mim mesma. orgulho que me acompanhou durante seu tempo doente, de como eu chegava ao hospital na intenção de fazê-la rir. eu conseguia, algumas vezes. são estes os momentos que mais me doem, porque são minhas memórias que coloquei em uma redoma de vidro, para nunca serem tocados, para nunca serem esquecidos. sofia foi crescendo como se deve, tinha dois olhos muito azuis que a gente nunca sabia se continuariam azuis, e foram esverdeando. eu olhava sofia com um ou dois anos e achava-a bonita até demais. eu tinha um pouco medo da beleza dela. seu cabelo era todo cacheado, loiro puxado para o escuro. sofia amava brincar na rua e ir para a escola. ela sempre gostou de estar rodeada de outras pessoas, de outras crianças. ela brigava com sua melhor amiga da mesma idade, mordia a bochecha do juan da escola. eu cuidei dela durante muito tempo, limpei sua bunda, troquei fralda, ela tomava banho junto comigo. nós desenhávamos, eu gostava de pintar o rosto dela com tinta de palhaço, colocávamos um cd de músicas infantis e ficávamos jogando ursos e bonecos para cima, deixando a casa um caos. nós fizemos isso até seus últimos dias, enquanto ela pôde andar. nós brincávamos e também discutíamos, e na maioria das vezes, ela ganhava de mim nas discussões. eu fazia técnico de meio ambiente, tinha 17 anos e sofia 2 e meio, quando recebi uma ligação antes de entrar para a aula. eu me lembro que estava sentada, esperando o sinal bater, no grande pátio que tinha aquela escola. há mais ou menos um mês, sofia estava doente. ninguém sabia o porquê. tinha dores de estômago, vomitava. achavam que era gripe, resfriado, deram inúmeros remédios. ficava deitada e começou a recusar suas comidas favoritas. um médico chegou a dizer que era psicológico. mas naquela noite ou naquela manhã, não sei ao certo, mas minha mãe com certeza o sabe, ela teve duas convulsões. no hospital, finalmente fizeram uma tomografia. sofia tinha um tumor no cérebro. um tumor do tamanho de uma bola de tênis. quando minha tia me ligou, ela já tinha entrando em operação. eles a operaram na hora. não havia tempo. nunca há tempo. tudo se descobre repentinamente. tudo isso, as doenças devastadoras repentinas, ou o câncer que fica quieto, crescendo, até que, de repente, aparece com uma sentença de morte. eu odeio tudo isso. tudo isso, não terem feitos exames nunca. tudo isso, sem ter a ninguém a culpar. eu lembro de ter chorado no chão, dandara estava ao meu lado. eu contei. e fui para o hospital. de ônibus, da minha escola, que era longe. mas fui e eu não me lembro desse caminho. eu me lembro de estar na sala de espera, e de poder entrar na UTI. sofia estava lá. deitada, viva, careca, com uma faixa de gaze em torno da sua cabeça. cabeça que foi aberta e fechada num mesmo dia, numa operação de seis horas. ela estava viva e tinha resistido bem. todo o tumor foi tirado, eles disseram. ela estava fraca, e dormia mais do que acordava, mas estávamos bem, estávamos felizes.
eu cheguei a acreditar, é claro, que tudo tinha terminado ali.
depois de uns dias, uma amostra do tumor foi enviado para biópsia. quando sofia estava quase recuperada da cirurgia, fomos ao boldrini, hospital de câncer de campinas. não, minha mãe e meu padrasto foram. eu, provavelmente, fiquei com ela, enquanto eles recebiam a notícia de que sofia tinha câncer e que teria de trato-lo com quimioterapia. eu não me lembro se houveram alívios como: descobrimos agora, há grandes chances. na verdade, eu me lembro de sentirmos uma esperança grande e ingênua, mas irredutível, como uma luz cega. eu não cheguei a ficar tão triste, porque dento de mim, eu sabia que ela iria recuperar.
esse é o único jeito de seguir em frente, com a certeza absoluta, completa - a única certeza que eu provavelmente experenciarei na minha vida.
eu tinha 17 anos, era junho e fazia frio. eu fiz dreads e fiquei de recuperação em todas as matérias do técnico e em matemática no médio - foi a primeira vez que isso aconteceu comigo, e eu não ligava.
primeiro, vieram as quimios extensas. ficávamos dias, semanas, no boldrini. ela ainda usava fraldas e nunca deixou de usar, era o jeito mais fácil de cuidar. não podia comer nada natural, nenhuma fruta ou legume ou verdura, porque seu sistema imunológico chegava quase a zero. não entrávamos com sapatos em casa, tinha alcool gel em todos os cantos, tinha sempre que lavar as mãos, se estávamos doentes tínhamos que usar máscara. mas não importa. sofia ficou triste porque não podia ir mais à escola. ela amava a escola. sofia ficou triste porque não podia mais ir aos parquinhos. mas ela soube viver, entretanto. há uma janela de imunidade depois da quimio em que ela não podia sair, depois o sistema se recuperava e podíamos sair. íamos ao shopping, ela comia mc lanche feliz. ela amava muito mc lanche feliz. eu me lembro particularmente de uma coisa, nesta fase: no último dia de cada internação, eu e minha mãe ficávamos muito ansiosas. eu e minha mãe dormíamos no hospital todo dia, revezando entre o quarto com cama ao lado do quarto de sofia ou a cadeira que deita ao lado de sua cama. quem dorme na cadeira, além do pior sono, tem que acordar no meio da noite para trocar a fralda, pesar e anotar. tudo era controlado. então, eu e minha mãe também estávamos sempre doidas para ir embora dali. um hospital nunca se torna a sua casa. havia ali uma brinquedoteca que ajudava imensamente as crianças. era o único contato possível: um monte de crianças carequinhas e com catéter sendo crianças, sendo más umas com as outras, brigando pela posse de certos brinquedos e criando fantasias, excluindo e interagindo. recebíamos pastas todos os dias com desenhos para pintar junto a sofia, com gibis da mônica, com livros infantis. também kits básicos de costura, como linhas e miçangas, paras as mães se ocuparem. mas o hospital não é uma casa. no dia de irmos embora, eu e minha mãe acordávamos bem cedo, comíamos o café da manhã do hospital, minha mãe arrumava tudo, eu aprontava sofia, tirava sua roupinha de hospital e colocava o vestidinho, o chapéuzinho. ficávamos as três ansiosas. só precisávamos que o médico passasse para nos liberar, o catéter de sofia já não estava conectado aos remédios e soros. ás vezes, o médico demorava 3 ou 4 horas. saímos bem depois do meio dia. tudo que ele fazia era passar, ouvir o coração de sofia e dizer: podem ir, semana que vem, consulta tal. mas ele demorava 3 ou 4 ou 5 horas para liberar.
algo tão cruel que eu nunca consegui entender.
ás vezes minha mente fica confusa. eu não sei contar direito com exatidão o que vem depois do que. mas depois do fim desse tratamento, o tumor reincidiu, uma nova operação e um novo tipo de tratamento eles sugeriram. com o tempo, percebemos que os médicos davam ordens claras e precisas e ficavam muito bravos caso não seguíssemos qualquer coisas, mas eles não sabiam o que fazer. sofia era um estudo de caso da médica que era responsável por ela. uma senhora de rosto redondo e cabelo preto em volta que oscilava entre irritada e amorosa. geralmente, era seca, e nunca olhava nos nossos olhos. ela não deixou minha mãe tentar homeopatia, pois isso poderia interferir no tratamento. nós nunca tínhamos escolhas. quando sofia teve de vir se tratar no graac, em são paulo, e mudou de médica, as duas começaram uma rixa de ordens e procedimentos. e todas essas coisas burocráticas, escrotas, humanas demais, que nunca estão nos relatos de alguém que sofre de câncer, tornava tudo mais difícil, irritante. não é um processo linear, e embora os médicos assegurem certeza, eles estão testando, tentando. eu não os julgo, mas no mínimo, gostaria que fossem transparentes acerca de seus processos. eu sempre odiei a ideia de radioterapia. a essa altura, um pouco de cabelo tinha voltado a crescer na cabeça de sofia. quando ela tinha cachos, os balançava e dizia: meus cachinhos, meus cachinhos. parece um filme de drama, mas eu não sei o que dizer, tínhamos essas brincadeiras. quando ela cortou o cabelo dela, choramos. mas ela continuava a balançar a cabeça e dizer meus cachinhos. ela disse isso num dia que estávamos indo para a sessão de radio, no carro, e ela passou em frente a uma creche, com um parquinho e disse: eu queria ir a escola. eu disse: você vai. eu tinha certeza que ela iria.
eu odiava a radioterapia, porque a ideia de jogar radiação num cérebro de alguém me parecia, no mínimo, escrota. todas as manhãs, durante o mês de julho, um ano depois de descobrir o tumor, íamos naquele hospital. primeiro, eles pousavam um pano com éter no seu nariz, e ela dormia. e depois, entrava numa máquina gigante. eu a vi só uma vez. eu e minha mãe ficávamos 4 horas lá, esperando. e, geralmente, íamos pro mc donalds mais perto. eu conheci muitas pessoas com filhos com câncer. nesse hospital, havia um pai muito miúdo e muito gentil que tinha vindo do acre só com as roupas da filha dele. morava numa das casas que o mesmo mc donalds oferecia por causa do dia do big mac. eu também fico impressionada como o mc donalds pôde ser tão presente na minha vida, nesses anos. a mãe da filha desse homem tinha abandonado os dois, ao saber da doença da filha. ele tinha vindo sozinho, buscar tratamento. recebia suplementos de todo mundo, roupas e brinquedos. eu vendia bic macs para todos que eu conhecia no dia que era revertido para "crianças em tratamento", e todo mundo acha isso uma estupidez, mas era o mínimo que eu fazia por todas as crianças e pais que eu conhecia. depois da morte recente de sofia, eu estava ficando com uma menina e tínhamos vindo para são paulo para a casa de uma amiga dela. eu lembro de ter chorado para ela dizendo que gostaria de ir ao shopping comer bic mac porque era o dia do big mac. os rituais que eu construí na minha cabeça, para aguentar toda a dor, não são glamorosos e não tem nenhum tom de superação. eu prometi mil vezes que eu iria ser voluntária depois da morte dela e brincaria com as crianças, eu mandei e-mails. mas nunca fui. eu não sei se teria coragem de olhar as crianças vivas, sabendo que algumas iriam viver e outras poderiam morrer. a única coisa sólida que eu podia fazer era ir ao mc donalds. e isso é extremamente triste e patético, mas é isso.
a sofia amava mc lanche feliz.
(...)

julho 03, 2017

3: diga-lhes que dormi

nita acordou com o frio dos panos úmidos na bochecha, deitada na cama de seu pai, o mosquiteiro cobrindo toda. lentamente movimentou a cabeça e deu a ver um vulto que a vigiava por detrás do véu do mosquiteiro. na boca, faltava um ou dois dentes. os longos cabelos grisalhos, que ao se mexerem, brilharam à luz do sol que entraram pela janela, fez nita reconhecer o fantasma que lhe guardava. o contragosto dominou o seu corpo e fez menção de se levantar, a mão firme da cuidadora segurou seu braço. ela não devia ter mais que quarenta anos, mas seja pelo seus trejeitos e a sua voz rouca, ou talvez os serviços de curandeira e enfermaria que ela prestava seja quem fosse pedir-lhe ajuda em sua cabana, coberta ainda de folhas de bananeiras em vez de telhas, parecia uma idosa. sem nome, com pouca fala, chamavam-lhe inhã ou moça. sozinha, alimentava os gatos mas não tinha nenhum, tinha sido enfermeira durante alguns anos, preparava chás e infusões e receitas aprendidas com a sua família, indígenas do interior, já todos mortos. nita conformou-se com o toque da sua mão quente e sentiu que ela retirava os panos úmidos e recolhia o mosquiteiro; sem o véu tudo estava claro e os dois olhos levemente puxados da moça olhavam-na de maneira clínica. mesmo assim, a visão de nita ainda era embaçada e a moça prestava atenção àqueles olhos grandes e belos, mas baços, que lhe fitavam assustados feio um gato filhote. a moça passou a mãos pelos seus dedos e saiu, deixando a porta aberta. nita sentia um enorme temor no peito, sufocando, tentou lentamente sentar-se na cama. olhou com curiosidade o dedo, o machucado no dedo, ainda vivo, e o risco leve e vermelho, cicatrizado, fez seus olhos se encherem de lágrimas. seu olfato foi invadido por um odor de ervas bem forte, algo doce e inebriante, e a xícara de chá estendida pela moça apareceu na sua fuça. negou sem dizer nada, mas a xícara continuou ali, a mão firme e sem tremer, nita pegou-a e deu um gole que esquentou todo seu corpo. a moça sentou-se de novo na cadeira ao lado da cama. nita agradeceu com a cabeça. depois desse chá, você está pronta, se sentir disposta, a sair. nita tomou-o devagar, pois não sabia se gostaria de sair, pois não sabia para onde é que iria, por ora, o chá dava-lhe uma doce e confusa sensação de irrealidade, de que tudo estava quente e confortável, de que tinha tudo que lhe dispunha. nita sentiu a mão da moça em sua testa mais uma vez, sua mão firme, de temperatura neutra. um sopro quente de ar fez as cortinas balançarem, lançando uma sombra acolhedora para dentro do quarto. nita segurou a mão da moça em cima da mão da testa, desejando que ela não retirasse dali. pousou a xícara de chá e já não contendo o pranto que se avolumava de desejo de escorrer, mostrou-lhe o dedo ferido, colocou perto da boca de moça. moça ou inhã beijou suavemente a ferida, e os seus lábios não eram secos nem rachados, mas molhados e suaves. nita sentiu-se quente e trouxe o corpo de moça para junto do seu, em cima da cama. moça olhou bem em seus olhos, com olhos suaves, nada vorazes, com olhos tranquilos, como duas lagoas, duas poças de água estagnada e clara, dois olhos que lhe faziam esquecer a tortura que se agitava em seu corpo e que não sabia que nome dar, a imagem da feição do homem que não se formava de jeito maneira, mas que espreitava feito uma sombra em seu interior. moça tinha colocado o mosquiteiro novamente e as duas se davam as mãos, no centro da cama, olhando-se nos olhos, nita movimentou-se vagarosamente, passando a mãos nos longos cabelos grisalhos e sentiu a mão da moça percorrer seus seios e seu ventre numa velocidade extremamente lenta, apenas as pontas dos dedos a tocavam, o corpo de nita parecia como o tamanho do corpo do planeta, tão imenso para percorrer com os dedos, ou tão precioso para não se deter em todos os buracos recônditos. quando os dedos de moça chegavam à virilha, nita sentia-se quente, abafada e úmida. ofegava bem baixo, e ainda assim, os olhos de moça calmos como as duas lagoas que nita nunca conhecera na vida, lhe davam paz. quando nita sentiu os dois dedos de moça na sua vagina, sentiu-se toda mergulhada neste lago, rodeada de águas quentes e calmas que faziam cócegas no seu umbigo e entravam voluptuosas pelos buracos do seu corpo, friccionando para dentro do cu e de toda a extensão da vagina, fechando-se sobre si mesmos. somente a boca se mantinha aberta pelo medo de se afogar e nita subia a superfície, mergulhada inteira e sem saída, para buscar ar, o sopro necessário para não se entregar àquela mortalidade. nita viu a boca sem alguns dentes de moça e enrolou sua língua lá dentro de um jeito impetuoso, ainda buscando ar, aspirando o ar quente e morno de dentro do corpo de moça e desceu com os lábios encontrando cada sopro, beijou os lábios menores e enfureceu-se com a tempestade que jorrava líquida, ali não havia calma, se não rebeldia. os lábios pulsavam ferozes e monstruosos, provocativos de um maremoto, foi o que lhe invadiu, às duas deitadas em união, debaixo do mosquiteiro. as duas pingavam e arfavam, mas moça se recuperou logo e os olhos não mais tinham tormenta, como se voltavam à ser aquelas duas poças estagnadas de água, sem emoção alguma. nita sentiu que seu corpo tentava minimamente se desvencilhar do seu, e ela, alarmada, chorosa, dolorida, agarrou seu corpo, ursa como era, montou em cima num abraço, sem deixar alternativa para o corpo magro da cuidadora. ela, então, sentiu seu abraço, e as mãos fazendo um cafuné calmo, trançaram uma grande trança no cabelo de nita. nita afrouxou o corpo e os braços e foi embalada pelo doce caminhar dos dedos sobre seus cabelos, trançando infinitamente de forma carinhosa. adormeceu.
de noite, abriu os dois olhos num susto e do seu lado, dormia a irmã e o irmão pequenos, a cadeira de balanço balançava vazia. ao seu lado pousada a xícara de chá branco, nita pegou em suas mãos, sentiu o cheiro de erva. confusa e ainda sonolenta, dormiu novamente.

junho 22, 2017

notas sobre silêncios

da minha sacada bate um sol transversal que ilumina o feio prédio amarelo de sacadas marrons, à frente dele um gigante cresce mais e mais, fiquei fora três semanas e o horizonte já jaz morto, nem uma última foto do que nunca mais será eu tive a coragem de bater, o guindaste continua imóvel mas sabe-se que de noite ele abocanha os casqueiros sem casa e sem rua.
quando em lisboa, andava perto da beira do rio tejo na parte central da cidade, pessoas agasalhadas esperavam o ônibus no ponto, como agora, havia sirene e um motor ruidoso, o motor se transformou num ônibus, as pessoas entraram, sobraram poucas ou nenhuma. uma lufada de vento encheu o ar e eu o conheci: há muito tempo eu não tinha me deparado de forma tão intensa com o silêncio. é certo que qualquer um que se digne a saber sobre o silêncio sabe que ele é um contraste e isso foi dito e redito e fizeram músicas acerca, mas é difícil tocá-lo em meio à natureza das coisas, em meio à natureza de uma capital.
a lufada de vento preencheu o tempo e o som, os cabelos das mulheres no ponto voaram, o meu também, eu senti ele frio atravessando minha blusa corta-vento vermelha, cruzei os braços e fui preenchida pela sua frágil magnitude.
tudo que havia no mundo era o vento, e não os motores zunindo, nem as buzinas, as sirenas, nem os passos e as vozes longíquas das pessoas. fui tomada de uma emoção alienígena como se daqui a instantes o rio fosse se levantar em um redemoinho e nos abarcaria criando tudo outra vez, de um outro modo. meu coração se expandiu dentro do meu peito.
sentia-me bem pequena e parte deste todo.
o som retornou, me aproximei de um lugar que se preparava para o arraial de noite, pirilampos pendurados e barracas de madeira com os nomes das comidas, gente arrastando coisas, buzinas, sirenas.
são paulo não aceitaria este silêncio porque é impossível que uma lufada de vento seja capaz de cobrir todo esse zunido.
me perguntaram minha cidade favorita que visitei, eu só conseguia pensar em lisboa, eu só conseguia pensar nesse momento, eu gostaria de habitá-lo, de sê-lo. mas é claro que a sua natureza é contraditória para se tornar uma morada ou mesmo um lugar: se faz de contraste, é efêmero. por essa entendo a quando se referem, então, não-lugar?
adentrei num parque bem arborizado em zagreb e procurei pelos lagos que seu mapa indicava. o parque se fazia numa avenida iluminada pelo sol ladeada de árvores e pequenos caminhos pavimentados com pedrinhas selvagens bem colocadas. desde que estive a beira do tejo e o silêncio me invadiu decidi procurar pela água, onde é que elas estariam, nas cidades que eu viveria por não mais que cinco dias. o maior lago tinha uma espessa mata de grandes árvores por todos os lados e parecia um lugar silencioso e recôndito. na outra margem via-se apenas árvores e um morro, sem passagem alguma, resguardando o mistério necessário para que aquele parque urbano parecesse selvagem. um casal de namorados no banco mais próximo ali estava e andei, não querendo atrapalhar possíveis sexos em público, um homem que remexia no lixo falou comigo em croata e eu não sabia o que responder, ele saiu correndo fechando um sorriso malicioso depois de um no meu nervoso. por um tempo, estive imersa nos porquês do medo que eu sentia o tempo todo dos homens que cruzavam meu caminho: há pouco tinha me escondido de adolescentes em bicicletas (extremo e traumático), de uns jovens, da minha idade, rindo e conversando alto e sem camiseta (falariam mal de mim em croata) e por fim do velho que catava lixo.
me livrei completamente das teorias e reclamações que tinha formulado, do meu eu enquanto mulher, oprimida, e o medo escorregou por entre as folhas secas e mergulhou como uma rã escorregadia no lago para ser comida por um peixe grande e esbugalhado. olhei com desinteresse vivo o reflexo da luz na água que fazia correr pelas folhas verdes bem claras desenhos e rajadas de luzes. estive por muito tempo olhando esse lago, essas folhas, esse reflexo.
estive por muito tempo olhando, estive desde que nasci, e desde antes, e me parece que por qualquer razão ou caminho aleatório, me encontrarei sentada no banco de madeira olhando o reflexo fluido das luzes sobre as folhas e a água correndo.
uma mulher se aproximou e foi até o deck próximo a mim, não um deck, mas uma tábua de madeira estendida em direcão ao rio. indo até ali, se via no meio do lago um jardim de samambaias e plantas que desconhecia bem iluminadas pelo sol, artificial como cyborgs assassinos, mas tão lindo quanto eles. por conta das árvores, eu não sabia o que a mulher fazia, mas depois de uns minutos uma mutirão de patos que estavam dormindo na sombra das árvores ou flutuando vazios em cima da água, vieram até o deck a grande velocidade piando e mugindo e grasnando e seu som pareciam como de cem sapos coaxando. vieram filhotes, que mais berravam, e depois os grandes, e eu não pude saber se ela os alimentava ou era uma encantadora de patos ou tudo passou de uma grande coincidência ou se sabia que naquela exata hora os patos se agitam e vão nadando naquela direção e ela os amava intensamente. sim, de qualquer hipótese absurda, ela com certeza os amava intensamente. eu também os amava, mas de uma outra maneira, de praxe tenho um pouco de medo, mas estes eram tão inofensivos às sombras das árvores e dormindo nos seus galhos daquele modo engraçado, que eu simpatizei com eles.
durante muito tempo seu coaxar preencheu o espaço do som. o vento inconstante que rajava as folhas, os pássaros, os patos e umas crianças brincando, uma sirene, um ruído muito grave que surgia do fundo da terra como se fossem seres intraterrestres ou do fundo do céu como um avião tão distante e presente ao mesmo tempo, e pássaros, de vários tipos. dois pica paus bicando uma árvore atrás de mim e eu gravei todos esses sons e me ative à eles de forma tão concentrada como se eles fossem o silêncio que eu buscava.
mas são o oposto disso, e por muitas vezes, gostaria de ter aqui escrito que encontrei o silêncio duas vezes, mas não.
depois por um longo tempo observei as tartarugas - e elas sim, posso dizer que amo, de um amor infantil e puro e platônico até o último ano do mundo. elas se secavam ao sol e estendiam os pescoços de pele enrugada para recebê-lo aonde podiam sentir os minúsculos olhos pretos fechados. àquela hora, muitas estavam ao sol e não no lago. os patos tinham migrado e sumido e elas seguiam seu curso. resolvi me movimentar e observei que o chão se movia e era uma tartaruga que andava com dificuldade entre as folhas secas e pedrinhas se afastando para o lado oposto ao lago, se digirindo a um pequeno morro que daria num caminho pavimentado de pedrinhas selvagens, debaixo de uma grande sombra de árvore frondosa. todas as tartarugas faziam a siesta e ficavam próximas ao lago e esta, tendo os pés aptos a água, insistia em se mover à terra.
me apaixonei instantaneamente por esta tartaruga. eu não sabia se ela estava desnorteada e pensando que se fosse para aquele lado, encontraria o lago, então fiquei triste por ela. eu não sabia se ela tinha desejo de explorar o seu mundo, a área que lhe foi designada, talvez absorta pelos ruídos graves que rugiam do grandioso céu e faziam tremer a terra. por fim eu pensei que ela se afastava de suas companheiras para morrer distante e em terra.
fiquei extremamente triste ao acompanhar aquele velório em vida.
uma bicicleta veio zunindo pelo caminho da tartaruga e eu dei licença para ela passar e resolvi me afastar da tartaruga que continuava seu caminho lembrando-me quando aos onze anos num zoológico observava intensamente um orangotango e como suas mãos eram grandes e humanas, e como tudo nele era humano, e me perguntava o que é que fazia de mim humana e dele orangotango, atrás das grades do zoológico, com aquele olhar triste que os animais deste lugar tem, e que os orangotangos naturalmente tem. eram pensamentos infantis mas eu me lembro da hipnose à que fui submersa e um menino que tinha tentando me roubar um beijo sem sucesso no ônibus da excursão, pedro, cabelo tijela, magro e agitado disse: está apaixonada pelo orangotango, é?
tristemente a rã de quem eu sou, a memória que me constitui, a mulher que me designaram para ser, minha experiência psicológica, voltou galgando as escamas do grande peixe, pulou da sua boca com tanto afã que caiu em terra e em dois segundos estava entalada na minha garganta.
nada mais pude pensar que não em como eu tinha desistido de observar a tartaruga porque tinham me repreendido, dizendo algo em absoluto nojento, porque era um mulecote de ego ferido, porque talvez eu estivesse mesmo num estado de paixão pelo orangotango, porque contemplar intensamente qualquer outro era errado, eu parei de contemplar o orangotango.
eu parei de contemplar a tartaruga.
ainda andando querendo ir embora, dei uma olhada para trás para ver se divisava a tartaruga em meio ao chão marrom, moribunda, perdida ou aventureira desmedida, e não mais a vi, de certo porque se camuflava ou o tempo da rã entrar pela minha garganta e esbugalhar meus próprios olhos para o meu estado interno era o tempo que a faria desaparecer.
eu gostaria de saber se ela tinha ido à terra. ou voltado ao lago.

continuei minha viagem nessa busca pela água mas a espanha me deu águas completamente comuns, lugares inteiros e visivelmente conhecidos, um mar mediterrâneo azul de certo, mas atravessado pelas milhares de pessoas na praia e meu temor que levassem minha bolsa com dinheiro e passaporte, um rio ladeado de concreto em madrid.
madrid fazia mais de 40 graus todos os dias e as pessoas todas também buscavam água desesperadamente. em meu último dia lá, andamos até um lugar turístico que não me interessa explanar, atrás dele havia uma fonte, e as pessoas tinham os pés mergulhados na água da fonte e com roupa se banhavam na fonte qual chuveiro ou cachoeira e se secavam ao sol nas bordas de concreto da fonte. uma moça de cabelo verde sentava na piscina baixa junto ao seu namorado fumando um cigarro.
são paulo escurece logo e as luzes aqui na parte central da cidade são cada vez mais escassas. o som continua absolutamente ininterrupto buzinas constantes de um mesmo carro helicópteros e a porta da minha sacada rangendo irritantemente por conta do vento.

ás vezes, eu penso em você só para ter a sensação de estar apaixonada por algo. é uma sensação inebriante mas você está fixo e enraizado aqui, e ao meu lado, então também não é. minha hipnose, minha contemplação e a forma mais simples de felicidade que eu conheço habita os não-lugares, os olhos minúsculos fechados das tartarugas e as águas que dançam à luz do sol.
então eu penso em silêncio em te foder e tudo fica bem de novo.

maio 09, 2017

a buceta

clara caiu de cama durante três semanas e em meio à febre, descobriu sua buceta. ela lhe apareceu, marrom e carnuda, em meio aos sonhos bruscos da noite. embora todo o tempo parecesse noite, as janelas permaneciam fechadas, abertas apenas para receber a brisa morna da manhã. nas manhãs, clara recebia as visitas. vinha o doutor, dia após dia, ele a olhava atentamente e apalpava seu corpo em busca do micróbio que lhe tinha infestado e causado a nefasta doença. não, ele não sabia dizer o que era, e sussurrava preocupado à mãe aflita: poderá isso ser psicosomático, o que seria isso, meu irmão? pois o doutor era meio irmão de sua mãe, coisa da cabeça dela, glória, que se desenvolve no corpo de tal maneira que se fica assim... prostrada, glória levava as mãos à testa, ó, essa pirralha, tão fantasiosa, vai me fazer cuidar dela dia e noite por causa de uma cabeça ruim, ó não, escute glória, é preciso cuidar com mais carinho das doenças mentais que das do corpo: de manhã, abra a janela, dê um banho e deixe-a bem limpa, higiene é fundamental, troque os lençóis a cada dois dias; visitas até o meio-dia, depois do almoço feche as janelas, o escuro e o silêncio é fundamental para restaurar a sanidade, ouça-me bem, siga estas regras de maneira rígida; na primeira hora da manhã, aqui estarei para examiná-la a fim de achar um motivo que não seja tão trágico quanto a doença mental, qualquer comportamento anormal deixe-me saber. e assim glória seguiu restrita e exausta, embora, quando de tarde apenas trancava a porta, aliviava-se com os pés mergulhados na bacia de água morna, e continuava o bordar, arte pela qual era tão prestigiada. doutor ícaro estava, ainda, certíssimo, na parte da manhã apertavam a campainha ansiosas as colegas de escola de clara, todas impecáveis com suas fitas enroladas nos cabelos ondulados, a saia colegial batendo na coxa, mal davam o bom dia e invadiam o corredor trazendo seus cadernos à tiracolo. elas diziam que vinham atualizar clara das lições, mas o que faziam eram tagarelar ao infinito. como este era o único horário permitido para ouvir música, clara logo pedia para que elas ligassem o rádio e suas amigas subiam em cima da cama e dançavam esbanjando vitalidade. clara ria, corada, e em seu coração, invejosa. ás vezes, seria melhor que elas não viessem, mas não tinha coragem de pedir, se as ofendesse, as únicas visitas que sobrariam era o doutor e suas apalpações irritantes e a mãe rezando um terço de muitas contas. clara não via seus irmãos ou seu pai, já que o horário noturno era extremamente proibido, clara se sentia o próprio dente-de-leão que ao menor assoprar espalhasse uma doença branca e misteriosa. clara apertava as maçãs do rosto olhando-se no espelho, emagrecia e empaledecia. ao menos quando ardia em febre, as sentia finalmente quentes e rubras e talvez até mesmo mais rechonchudas. ás vezes, clara pedia até mesmo que as amigas a abraçasse, rubia e lídia eram puro amor entre uma e outra, andavam de mãos dadas e se abraçavam à menor comemoração, mas à esse pedido as duas se afastavam, enojadas, você está doente, clara, não queremos pegar esta doença, queremos ir à aula e ver o ian, e mandar recadinhos para o ian, vocês mandariam mais um recado meu para o ian? queria tanto uma visita, quem sabe meu corpo não transmitisse doença a quem é dono do meu coração, todas elas riram, fazendo-a esquecer de tal absurda ideia, o ian se manteria intocado, bem longe dela, ia sim. quando a buceta lhe apareceu, portanto, era noite e escuro, clara estava úmida, o ar estava pesado e quente, ela lhe veio na sua cabeça inteira e perfeita como era: clara poderia comprovar se houvesse luz para olhá-la. a primeira coisa que lhe apareceu à mente depois da buceta foi ian. não entendia muito bem, mas lhe ocorria que ian gostaria também de ver a buceta dessa maneira tão perfeita! e quem sabe ele poderia lhe beijar! mas foi só imaginar tocar os lábios de ian que a figura desvaneceu tornando-se o velho doutor ícaro e o gosto da sua boca ficou todo amargo, clara quis recorrer à qualquer outra imagem e encontrou sua mãe rezando o terço de contas azuis piscinas. não sabia como estas contas lhe despertavam esse imenso interesse, mas quando sua mãe ali se sentava, rezando a ladainha de olhos fechados e produzindo aquele som rouco dos sussurros fervorosos, clara não tirava os olhos das contas, que iam passando uma a uma por suas mãos de pele queimada, sua mãe segurava de maneira tão intensa cada uma que as deixava úmidas e as contas que se abandonavam pelo seu colo eram de um azul mais vivo, completamente hipnótico. clara achava que talvez fosse o efeito de deus invocado pela mãe que lhe mantinha tão vidrada e achou deus realmente poderoso. então, que se não seria a buceta que lhe apareceu de maneira tão súbita deus, nosso senhor, pai todo poderoso, enviando-lhe a cura, sua própria forma, seria clara uma profeta? pensava, em puro delírio, se retorcendo na cama, as duas mãos abertas e juntas pressionando a região pélvica por cima da camisola, era uma pressão completamente viril e apaixonada que acabou por penetrar o buraco que se fazia xixi, ao longo da falange toda a mão tocava a extensão de sua genitália e clara chorou de intensidade. gostaria de gritar, mas sua mãe se assustaria, então gemeu como pôde bem baixo, até que todo aquele tormento tornou-se algo extremamente preocupante e inexplicável. tudo por um momento ficou branco e leitoso e sua cabeça se desprendeu do seu corpo, flutuou por alguns instantes no nada. sua boca seca abriu-se involuntariamente e um longo suspiro subiu como um vapor demoníaco. clara havia voltado a cama, a cabeça em ordem, chamava-se clara. estava apavorada. não sabia que é que tinha lhe acontecido, mas exausta que estava, se contentou com duas possibilidades: ou o diabo tinha lhe invadido ou a doença tinha ido embora. dormiu pesada como fazia dias que não conseguia.

a mãe

a primeira a entrar no quarto, como sempre, foi glória. encontrou os lençóis ensopados e a menina ardendo, dormindo profundamente de um jeito que nunca vira. abriu as janelas e tentou acordá-la. clara, ao acordar, entreviu a mãe e morrendo de vergonha pediu-lhe que deixasse dormir mais, tinha passado uma noite muito difícil, tinha tido delírios esquisitíssimos. três semanas em cama e deus não tinha ainda mandado uma cura para aquela doença devastadora, glória buscou o terço, enrolou-o no braço e rezou-o todo até que clara tivesse acordado espontaneamente. não foi mais que uma hora. o sussurro da mãe entrando nos seus sonhos reavivaram a noite vivida e a buceta se mostrou mais uma vez. clara quis manter-se calma, a fim de que a mãe parasse com a reza, que não lhe adiantava de nada.tudo que glória fazia era passar as mãos na sua testa, chorando, ó meu deus, ó meu deus, ó meu senhor, por que me abandonaste. o desespero da mãe não ajudava o estado interno de clara, que se perguntava a cada segundo como sua mãe reagiria à notícia que o diabo tinha vindo visitá-la à noite. conte-me, meu anjo, conte-me que delírio te deixou assim, clara já se posicionava no colo da mãe que, ignorando as contravenções médicas, deitara-se na cama. se é para levar embora minha menina, leve-me também, leve-me também. veja bem, mãe, ponderou muito bem clara, que temia que sua mãe não deixasse suas visitas matinais acontecerem, eu acho que deus veio a mim. veio, foi, é? veio, e tinha uma forma tão linda! como foi, clara, como era? ah, mãe, era... veja mãe, a senhora acha possível que eu seja uma profeta? ora, clara, começou a rir de maneira espantosa a mãe, você, você... imagine! imagine! ora, mãe, a senhora não acha, que se eu tiver agora curada, deus me enviou a cura, e eu o vi, e por todas as noites desejo recebê-lo, e por todos os segundos da minha vida, eu irei transmitir a sua mensagem. glória ponderava já de pé, um pouco mais sã agora que sua filha se mostrava completamente fora de si. deus, em clara? clara, profeta? ora... deus estava ocupado com tantas outras coisas, deus estava preocupado com os grandes homens - foi o que lhes disseram quando ela, aos dezessete anos, vinha contar à avó que deus se mostrara em um dos seus bordados. ela, lhe dando um safanão bem merecido, disse: você acha que deus estaria num bordado? num bordado, glória? que penitência. a avó tinha então a ensinado que ela era uma mulher pequena, sem nada de especial, mas que aprenderia o bordado como todas as mulheres da família então aprenderam e para curar esta fome de se igualar à deus, glória devia rezar para o senhor todos os dias, devia se lembrar sempre o quão era pequena diante do grande, do misericordioso. glória não tinha coragem de dar um safanão em clara e não sabia também como falar do modo que a sua avó falou, tão rigorosa, tão ressoante, escolhida as palavras a dedo... que diante dessa sua incompletude, de uma voz de ladainhas e cantos de boca fechada enquanto o bordar se fazia, glória simplesmente mandou-a ajoelhar-se e pedir perdão por tamanha blasfêmia. e que já não era sem hora do doutor ícaro chegar, exclamou quando ouviu a campainha tocar.

o doutor 

o doutor entrou no quarto apressado e aturdido, clara estava no quinto pai-nosso, rezava de voz alta, pois se o fizesse de voz baixa logo se distraía, a cada intervalo de pai-nosso ela contava o número em que estava, preocupada que estava em perder a conta. deu de cara com a menina de camisola ajoelhada aos pés da cama, a julgar pelo seu jeito, sua mãe tinha lhe contado tudo, como a encontrara, as asneiras que falara, por deus, glória! trovejou! deixou a menina se ajoelhar assim no chão frio em meio a febre! ele correu a socorrê-la como faziam os bravos médicos, como se imaginava sendo, bravo médico, embora por ser mestiço não lhe tinham dado a oportunidade completa de ser todo esse médico, por ter lhe restado apenas as casa pobres, empestiada de ratos e diarreias, que não lhe dava vontade alguma de fazer o que tinha feito com clara: encontrava-se, ao lado da cama, com a menina em seu colo, ilustração de um jornaleco de um verdadeiro bombeiro em ação. achou-se tão emocionado com esse comovente gesto, que não sabia que era capaz, que beijou a testa da menina com força. sua plateia era apenas glória olhando-o com seus olhos grandes e apavorados. o que é isso, doutor ícaro, começou a ladainha, ele, recomposto colocou-a delicadamente na cama. você nem ao menos deu-lhe banho! ora, ora, toda molhada de suor, que pecado, que pecado. posso dá-lo agora, falou aflita glória, estupefata com este esquecimento diante de tão trágicos acontecimentos! essa pirralha me dá nos nervos, nos nervos! doutor ícaro tirou a temperatura e ouviu o coração, não a leve para a banheira, está muito fragilizada, passe um pano úmido em todo o seu corpo, qualquer coisa anormal me avise. esperarei do lado de fora. clara não tinha aberto a boca ainda, pois não tinha havido pausa em que pudesse falar, então disse: doutor ícaro, posso conversar em particular com o senhor? ela se sentia um tanto assustada. depois do banho, minha cara, depois do banho, pois agora você cheira a peixe. e saiu atrapalhado e confuso, dizendo que precisava visitar outras casas, mas que voltaria na manhã seguinte, e que suspendesse as visitas para que clara descansasse. sem poder protestar, clara aguentou um longo e unguento banho de pano úmido em todo o seu corpo nu. glória limpou as axilas, o rosto, os seios, a barriga e a vagina pois esta estava incomumente molhada. glória olhou bem nos olhos da filha, ressabiada, e segurando o coração na mão, lamentou a tarde toda para si mesma que tinha uma filha pervertida, uma pirralha pervertida. sem saber a quem recorrer, exausta do silêncio dos santos, ligou para o doutor ícaro e pediu para encontrá-lo num lugar vazio e silencioso pois tinha uma dura anormalidade a relatar. não tendo nenhum lugar nesta cidade que passasse por vazio e silencioso, ícaro sugeriu a igreja, sob os protestos de uma glória choramingona, que penitência, que penitência, deus é que me perdoe. ícaro lhe respondeu, do outro lado da linha, que glória precisava ser forte e racional, que há coisas que apenas os homens podem fazer, que os médicos eram como anjos enviados por deus para fazer acontecer a sua palavra. encontraram-se os dois na igreja e sentaram-se lado a lado no banco. glória tentava encontrar as palavras, mas nada, por isso ajoelhou-se e murmurou. daqui a pouco seria seis horas e a missa começaria e para sempre estaria perdida a oportunidade de contar o assombro, aquele diabo ao doutor ícaro. pediu que ele se ajoelhasse também assim deus os perdoaria mais fácil por falar daqueles assuntos na sua santa casa. o doutor se ajoelhou, desconfortável, as igrejas o irritavam imensamente, gostaria de sair dali antes que o sino tocasse e as beatas entrassem enfileiradas, as viúvas, ah, como o irritava a devoção das viúvas, os padres a tagarelar, enquanto ele fazia a verdadeira missão de deus nesta terra. fale logo, glória, por deus, não deve ser nada demais! que mulher dramática, que menina mimada que você foi! glória era irmã mais velha e, ainda por cima, legítima, mas mesmo assim nunca respondia àquelas provocações. era bom ter ícaro como bom meio irmão, pois era médico, mas a ele havia sido privado tudo que tinha vindo da família, seu sofrimento por esta arrogância já era pago todo dia. e, por assim dizer, glória nunca respondia a ninguém, nunca reclamava, principalmente aos homens que lhe rodeavam e prestavam tantos serviços. já mais calma, e convencendo-se que precisava contar aquilo a um médico, lhe segredou. ícaro sentiu-se tonto, abobalhado. aquilo dito de forma tão concreta e bestial provocou-lhe uma reação desproporcional e inapropriada nas calças. por alguns segundos, ícaro não queria ter sabido, mas o primeiro sino que badalou lembrou-o vivamente: era ele, médico, mensageiro de deus na terra, era ele médico, e tudo sabia e por nada se abalava, ele era médico, intocado e bem intencionado, um homem bom. certamente um homem bom, gentil, sem nenhuma moça que lhe espichasse os olhos. ora, glória, isto nesta idade é realmente preocupante, temo ter que fazer um exame de toque para ver se tudo está nos conformes. glória lhe arregalou os olhos, a cabeça finalmente erguida, quando o tempo todo esteve curvada à cruz e jesus cristo sangrando no peito. ora, glória, eu sou médico, ele leu os óbvios pensamentos dela. isto não é normal, você me entende? clara ainda não teve sua menarca, isso é absolutamente anormal! isso é tão deveras anormal que seria esta a causa de sua febre, de sua doença psíquica! clara passava por perturbações das mais severas, das mais inusitadas! sabia que havia mulheres que sofriam de doenças com nomes terríveis! ninfomania, glória, ninfomania! eu nunca vi nada parecido em meus anos de estudo, mas me interesso absolutamente pelas doenças da loucura! a loucura é o diabo, glória! é como o diabo instalado no corpo dela! ora, ícaro, bufou a velha, atormentada, que raio de diabo, a clara é tão pequena e tão criança que não pode receber em seu corpo nem deus nem o diabo. nenhum dos dois! nada! ora, glória, ora! você deixará sua filha apodrecer da pior loucura! você deixará ela cair na desgraça dos prazeres da carne! da carne, minhas senhoras! ele olhava estonteante para as primeiras beatas que vinham à missa das seis, para as viúvas com os lenços na cabeça, ele gritava e o grito ecoava na igreja, agora que todos sabem que sua filha sofre de prazeres, tão pequena e antes de sangrar! tão pequena e antes de sangrar! você tem que dar à ela a cura! a cura, glória!

as amigas

no dia seguinte, a mãe permitiu que as amigas a visitassem. ela assentiu isso com uma tristeza pálida no rosto, olhando bem para clara. clara lhe assegurava que estava tudo bem, pois se assustava com aquela melancolia estranha pairando no rosto de sua mãe. geralmente, ela rezava e chorava, depois bordava e cantava, mas tinha sempre num jeito de olhar uma fé que não deixava a sombra lhe abater. clara dizia isso, mas era mentira. a buceta tinha visitado outra vez seus sonhos. dessa vez, já não apavorada, pôde contemplá-la com calma, pôde apalpar bem aonde as mãos automaticamente desciam, e sem virilidade nos movimentos, o que lhe ocorreu fora uma tremedeira de alguns instantes que ela associou a uma intensa febre. mas sentiu tanta energia depois que não se preocupou tanto com esta febre. além do mais, o carinho na sua genitália fora tão suave e indolor que clara pensou que poderia ter descoberto antes, a fim de dar um sentido àquelas horas tediosas que perdia deitada na cama. clara estava extremamente curiosa quanto à buceta, que face de deus era essa, que é que ele queria lhe dizer com aquela forma e estava pronta para dividir isso com as suas amigas. mas logo elas entraram, não encontrou o clima, a música estava alta, elas tagarelavam sem parar, hoje tinha tido uma festa na escola e o ian estava cheiroso. como está ian? diga-me para ele me visitar, choramingou clara, sentada com a coluna ereta na cama, lídia disse: temos que contar! rúbia discordou: não, ela vai se achar! rúbia, ela está doente! ela está triste! tá bem, mas é só porque você tá doente, clara, só por isso, veja bem hein, e clara sorriu contente com a moeda de barganha recém descoberta com as suas amigas tagarelas. o ian perguntou como você tá, as duas disseram, quase em uníssono, por isso, um sopro quase triste de ter de falar isso. o ian! exclamou clara, ah, o ian! ele me ama? ele me ama? clara pensava na buceta, enquanto suas amigas riam dela, quem sabe a buceta tinha soprado nos ouvidos do ian o quanto clara o amava tanto, o quanto queria beijar aquela boca, ei clara, ei clara! para de sonhar sua idiota, todo mundo acha que você vai morrer, é por isso, gritou lídia mal-humorada. um silêncio pesou no quarto e clara sentiu os olhos fumegarem, era vontade de chorar. eu não vou morrer, disse uma vozinha embargada, cheia de pavor sincero. deus me protege. ora lídia, que horror! é claro que ela não vai morrer. e rúbia, danada que era em desfazer tensões, treinamento garantido por uma família violenta, ligou a música alta e subiu na cama, dançando descontroladamente. lídia, envergonhada que estava por ter vindo de uma família bem criada, saiu correndo porta afora. clara, ainda com lágrimas nos olhos, ria da dança estapafúrdia de rúbia. ela rebolava, subia e descia, a saia curta quase mostrava a calcinha. ei, rúbia, teve uma ideia genial clara, você pode tirar sua calcinha, por favor? rúbia olhou-a longamente. por favor, eu estou tão triste, eu vou morrer, eu estou tão doente, eu juro que não é nada demais, mas é que tenho tido uns sonhos, eu só preciso ver, por favor. rúbia obedeceu, deveras culpada, e arrancou fora a calcinha quase sem cerimônia. achava clara um doce de pessoa e ás vezes se perguntava por que é que ela, escura, com os cabelos tão duros que tinha de trançar todos os dias, filha de pai bêbado, não adoecia. clara tentou não demonstrar o torpor que sentia com esse recém poder descoberto, e assim pediu, docemente, vá, dance, minha querida! e se deitou debaixo das pernas arqueadas e dançantes de rúbia, viu-a. era ela, a buceta! a buceta que aparecia nos seus delírios ali estava! rúbia continuava a dançar, desprendida de tal maneira que se perguntou se gostava de estar dançando daquele jeito em cima da cabeça de clara. é ela, rúbia! gritou, clara! é ela, quem aparece nos meus delírios de febre, é ela! desse jeito! não é deus, rúbia, é a sua coisa entre as pernas, que é igual a minha, você quer ver? rúbia concordou, igualmente curiosa, e logo estava vendo a buceta de clara! é ela, vê? elas não são iguais? você acha que elas são como deus ou como o diabo? rúbia encarou aquela vulva com demorado interesse e disse: acho que não é nada, clara! não é nada, é só o lugar que a gente faz xixi, sabe? o lugar que os bebês nascem, sabe? é como um braço, clara, é só um braço. clara se enfureceu por rúbia não ter compreendido a sua luz, o estado divino de ter encontrado a buceta, a ocupante irrestrita dos seus sonhos. rúbia voltava a dançar, completamente satisfeita com a sua explicação, quando sentiu o toque. clara tocava a genitália dela de maneira gentil, e rúbia, ao invés de parar continuou a dançar, seu movimento ritmado do quadril condicionava o toque de clara e rúbia se sentia, pela primeira vez em muito tempo, dona da situação, irradiada de um poder tão incrível. veja rúbia, veja, em pouco tempo, talvez, se tudo estiver como foi comigo... você vai senti-lo, deus ou diabo, você vai senti-lo, mas não fique com medo, pois é... é... e corou antes de conseguir terminar. eu não tenho medo, falou rúbia! eu não tenho nenhum medo, por favor, continue! eu sou tão boa, clara, tão boa por lhe deixar ver a minha coisa! e agora eu queria que você se aproximasse, chegasse mais perto, queria que você, isso, assim?, isso, dentro, ah! rúbia sentiu um arrepio do pé à cabeça, uma tontura e a boca abriu-se e um perfeito ó, deixando escapar um grito longo e agudo. antes mesmo que pudesse voltar aonde estava, havia uma lídia enfurecida no quarto, chorando, quente, o rosto branco todo rubro, pegava os cabelos com a mão e queria arrancá-los. depois de algum tempo clara pôde distinguir o que ela dizia: suas... suas... sujas, eu vou contar para todo mundo, suas sujas, vocês não podem fazer isso, suas burras! vocês tinham que ser virgens, virgens! virgens! brancas! sujas! você vai morrer rúbia, você vai morrer da mesma doença que ela!

dente-de-leão 

a sua doença era como um dente de leão, quem a assoprasse se esfarelava em instantes, pensou uma clara insone. ela se esfregava na cama, e na falta de qualquer coisa naquele quarto insípido, enfiava continuamente uma grossa cruz na buceta. clara se sentia solitária e a única que atendia ao seu chamado, dia após dia, e no seu aniversário, era ela, quem tinha descoberto, a sua buceta.


abril 20, 2017

ainda moro na mesma rua

eu estou apenas triste. apenas triste. eu gostaria de dizer à alguém: na verdade, estou triste. tenho vivido cenas de uma série norte-americana qualquer, sem nenhum espectador a compadecer.
hoje arrumei o quarto. recolhi suas coisas. separei-as das minhas e coloquei-as num canto. achei o cartão de aniversário que eu te dei do último ano. ele dizia pra você viver, pra você se lembrar de quem é você. diz que eu não sei porquê te amo. eu nunca saberei, acho, pelo menos pelo próximos meses. talvez, com alguma distância. não. a distância não me faz bem àqueles que eu achei que amei. mas algo me diz, que com você será diferente. você será a primeira a não ser uma ilusão, uma história cômica. porque eis aqui os objetos espalhados pela casa, os retratos, todos os clichês, tudo que foi tocado, algumas músicas. eu poderia chorar ouvindo marília mendonça, mas foi com um girassol da cor do seu cabelo.
uma amiga nossa um dia longíquo teve pânico ao ouvir essa música. eu a compreendo e lembro de tudo isso, a piscina azul, nosso estado de cocaína. estou sóbria e por fim escolhemos todos os móveis do quarto cor da madeira. é uma cor sóbria, como se fosse neutra. mas mesmo a escrivaninha maciça sofreu e guardou seu toque. o meu corpo todo, tocado. e agora, eu me privo do contato do outro, talvez com medo de imacular essa memória grudada à pele. e agora, eu não deveria me privar de nada. nem ler cartões de aniversário, nem ouvir esta música. no mais, é certo, se eu morrer, não chore não, é só, só, poesia. eu estou apenas triste e com medo de sentir saudade.

abril 12, 2017

2: digal-lhes que sonhei

a chuva fria e fina acordou-a. sobre seu corpo repousava uma manta de algodão cru, puxou-a à altura do pescoço. ao movimentar seu corpo sentiu que o mundo estremeceu. estava deitada na rede, lembrou-se. tentou não fazer movimentos bruscos e estendeu as mãos debaixo da manta, os olhos fechados. não havia sol e não poderia dizer que horas eram, mas a claridade opaca indicava as primeiras horas da manhã. o rio murmurava aquele eterno lamento, ainda plácido, tímido, acalmando-se às margens depois de uma noite um tanto turbulenta. a maré devia ter baixado e os pássaros da manhã piavam solícitos uns aos outros sua harmonia repetitiva. tudo que havia passado no dia anterior tinha a mais azeda tônica de sonho. ela tentou se lembrar do homem, dos pelos grisalhos, do chinelo de dedo largado no chão, do gosto. a um custo, as peças se juntaram, ainda fragmentadas; ainda assim o rosto dele não vinha, brusco, inteiro, e belo, como deveria ser. tentou lembrar-se do júbilo, daquele alegria, do calor nas bochechas; com muito cuidado, quis sentir as bochechas, num ato infantil, desesperado, tateou-as, estavam frias como a manhã, estavam cobertas de orvalho. ela se integrava de forma orgânica à paisagem e de súbito tudo aquilo destoava de como tudo sempre fora. nita teria ali passado passagens de sua infância, com sua avó, e adoecendo, a adolescência, e tinha ido embora dali, para a cidade, e tinha retornado, pois seus olhos ressecavam-se de tantas noites que vagava insone, e desde então, nita, como era chamada, não entendia o que fazia ali. e por quê, agora, a sensação de pertencimento a envolvia tal como se ela tivesse voltado a ser pitica? andando chorosa aos pés da mãe e sendo embalada na rede - que parecia tão grande - por uma vó muito velha que cantava cantigas da qual ninguém jamais recordaria. ela puxou a manta para cima da sua cabeça. ser encaixada de maneira tão harmoniosa naquele morro, naquele rio, entre aquelas árvores, a ouvir besouros e maritacas, siris e peixes que pulam do rio ao ar, garças, os arbustos e, inclusive, e de maneira perfeita, com o açude de esgoto que, do alto das casas, entregavam, dia após dia, suas oferendas fétidas ao rio, fez-a em pânico. o que havia acontecido ao homem, o que havia acontecido com o seu desejo? levantou-se já barulhenta, a rede se deformou e ela sentou, tonta, com os pés descalços no chão. o mundo ainda girava um pouco, as costas doíam. nem na rede gostava de dormir, pensou, mas se aqui dormi, satisfeita, fui embalada por esta insanidade. na boca estalava a palavra que não ousava se formar, sequer dentro dos teus pensamentos - paixão. e agora sentia o amargo. a sensação de irrealidade do dia anterior era tão concreta quanto os dois pilares de madeira que a rede pendia. e a rede, por sim, aguentava trançada e firme, embora seu corpo fosse volumoso. nita, grande urso, disse a avó quando ela nasceu, gorda, marrom e cabeluda. por anos, nos seus momentos de angústia, sem saber reconhecer sua imagem nem no espelho d'água nem no espelho do banheiro, teve de se agarrar à estas palavras que sua avó cuspia rindo qual uma maritaca: nita, grande ursa, e o pai, nita, grande ursa, e as irmãs, ursa peluda. era esta sua concha, sua morada, seu último reduto. levantou-se pé ante pé e foi até a beira da casa, debruçando-se a olhar o rio largo lá embaixo correndo. vislumbrou o barco que ontem tinha ali aportado, entre a neblina, mas não fazia sol ontem? e nita, de uma vez, convenceu-se do sonho estúpido, tão estúpido, que parecia real e não, que tinha lhe dado um desejo cego de ir embora dali e seguir serpenteando o rio, seguindo um homem que não sabia o nome, se guiando pela lua, tentando encontrá-lo em martim sá. sim, em são joaquim e martim sá. lembrava-se disso tão translúcido quanto era a água, mas o eco desses nomes não faziam provocar nada em seu interior, nem uma borbulha, quem diria a corredeira, a corredeira que seria preciso para seguir alguém desconhecido. o gato preto enroscou-se em sua perna, o suficiente para tirá-la do absorto do seu olhar. chispou-o irritada e entrou para fazer o café.
o dia transcorreria sem grandes surpresas, ela começava a se acostumar com aquele sentimento de pertencer àquele lugar. lavaria as roupas dos outros, seu ofício passado através de gerações, com afinco e atenção, ciente de talvez, aquelas camisas e mantas de algodão faziam parte adequadamente àquele ambiente, às pessoas que ali moravam, comiam, tinham filhos e morriam. não tão ursa, pensava, esfregando no tanque uma blusa de lã, mais um siri vermelho, com duas e boas patas ruidosas. seu pai chamou-a, ela levantou-se do tanque, e num movimento distraído, chupou o dedo mindinho da mão, que doía. ali, ela viu, um corte quase cicatrizado, embora vermelho pela fricção e talvez irritado com o sabão. o corte existia. ela sentiu-se mole, tonta, os olhos soltos da cabeça, algo como um desmaio assombrava uma palidez na tez escura.

abril 10, 2017

penumbra

ela caminhava há mais de quarenta minutos, os ombros se encaixavam encarando o chão, as mãos soltas. embora fosse outono, o sol ardia sobre sua cabeça, a carapuça de cabelos se erguiam mais como uma estufa, apenas um filete de suor escorria ao lado do rosto. descia. não há nada mais a contar sobre ela, a não ser seu movimento último e lento: descia, pé ante pé, em um morro. poderia o morro ladeado de árvore e arbusto, teia de aranha, tronco, pedra, folha verde viva, e seu caminho desembocaria na areia, na areia da praia, na água salgada. os seus pés se banhariam leves na água gelada, a areia fina estaria quente antes. poderia o morro rua asfaltada, ladeada de túmulos de pedra, bronze, talvez prata e ouro, anjos ornamentados, jesus e nomes inscritos, acima da sua cabeça pinheiros se curvavam e faziam meia sombra. no final do trajeto, estaria no seu trabalho. não há mais o que escrever a partir daqui.
há redemoinhos escusos, como pilhas de roupa suja, um monte, sobre a sua cabeça, há escuridão sobre as ideias. um dia, ela ardia de tesão e no outro, aspirava repulsa. ela não consegue pedir ajuda, não consegue nomear o que sente.
não é tão iluminada quanto os outros.
apenas está descendo o morro e não há trejeitos que decodifiquem sua personalidade e a faça, para nós, interessente. apetitosa.
havia uma vida convulsionando há poucos dias em seu interior e foi em poucas horas que desceu um frio fio gélido de água na espinha (curvada) e toda a convulsão se viu, ante morte, devastada. estagnada não tal qual calmaria antes da tormenta, tal qual um rato que ingere veneno. e sua imagem no velório é os pés cinzentos retorcidos, a barriga gorda virada pra cima, os olhos revirados e por isso brancos, estáticos.
é preciso falar dos ratos e das baratas quando sente a podridão, para afastá-la. deixá-la próxima, e alimentá-la, para não deixá-lo pútrido, o seu íntimo.
em última instância, mandaram-me ir embora, e também ficar e esperar, mandaram-me orar, e também cuidar de mim, não mandaram-me alimentar meus desejos. sinto-os destrutivos.
enquanto amordaço-os, na esperança de que continue tudo intacto, a fina superfície sobre o planeta, a terra embaixo dos pés para que nos sustente de joelhos erguidos e calcanhares enterrados, sei que estou destruindo a mim mesma.
vou dizer claramente: calar meus desejos pútridos e possivelmente destrutivos, destroem-me. todos os dias, ela desce, encurvada, preocupada apenas com o próximo instante: se poderão se encantar com o meu sorriso, se eu conseguirei dizer alguma palavra, qualquer coisa, que faça-os sentir que eu sou importante. que eu sou alguém, que eu estou iluminada. que eu desejo. mas eu não exibo meus desejos, não exibo minhas unhas, eu retraio as minhas pernas, meus olhos evitam olhar. permaneço na penumbra.
por uma centena de vezes, nesta vida de alguns anos, meus olhos sempre evitam olhar. eu achei que havia alcançado alguma sinceridade comigo mesma e com os outros; eu contornei tudo o que é e poderia ser verdadeiro para mim mesma. eu não sei aonde me encontrar.
meus desejos não destruiriam, por fim, a vida deste planeta, nem tem fins sistemáticos, mas encontrariam o fim do que eu conheço como vida.
não me mandem embora, ao menos que eu queira. não tenha piedade.
em última instância, eu gostei de me enrolar nessa teia de aranha; mas no fim, tudo está tão interligado (eu fiz o esforço de nada separar, de tudo ser interdependente, um sistema sustentável) que se desfazer de um fio ou me enlaçar mais completamente em algum, é desfazer quase toda a teia.
eu ainda não estou preparada, então não me mandem embora ainda. eu sinto saudades.
vocês não sabem como eu sou um bicho sentimental e apegado. e como é difícil, no fim das contas, ser um pouco livre.
não há caminhos livres, quando se tem que chegar a algum lugar; no fim, ela gostaria de nunca precisar chegar a lugar algum.
e é isso que me impede de viver honestamente.