abril 12, 2017

2: digal-lhes que sonhei

a chuva fria e fina acordou-a. sobre seu corpo repousava uma manta de algodão cru, puxou-a à altura do pescoço. ao movimentar seu corpo sentiu que o mundo estremeceu. estava deitada na rede, lembrou-se. tentou não fazer movimentos bruscos e estendeu as mãos debaixo da manta, os olhos fechados. não havia sol e não poderia dizer que horas eram, mas a claridade opaca indicava as primeiras horas da manhã. o rio murmurava aquele eterno lamento, ainda plácido, tímido, acalmando-se às margens depois de uma noite um tanto turbulenta. a maré devia ter baixado e os pássaros da manhã piavam solícitos uns aos outros sua harmonia repetitiva. tudo que havia passado no dia anterior tinha a mais azeda tônica de sonho. ela tentou se lembrar do homem, dos pelos grisalhos, do chinelo de dedo largado no chão, do gosto. a um custo, as peças se juntaram, ainda fragmentadas; ainda assim o rosto dele não vinha, brusco, inteiro, e belo, como deveria ser. tentou lembrar-se do júbilo, daquele alegria, do calor nas bochechas; com muito cuidado, quis sentir as bochechas, num ato infantil, desesperado, tateou-as, estavam frias como a manhã, estavam cobertas de orvalho. ela se integrava de forma orgânica à paisagem e de súbito tudo aquilo destoava de como tudo sempre fora. nita teria ali passado passagens de sua infância, com sua avó, e adoecendo, a adolescência, e tinha ido embora dali, para a cidade, e tinha retornado, pois seus olhos ressecavam-se de tantas noites que vagava insone, e desde então, nita, como era chamada, não entendia o que fazia ali. e por quê, agora, a sensação de pertencimento a envolvia tal como se ela tivesse voltado a ser pitica? andando chorosa aos pés da mãe e sendo embalada na rede - que parecia tão grande - por uma vó muito velha que cantava cantigas da qual ninguém jamais recordaria. ela puxou a manta para cima da sua cabeça. ser encaixada de maneira tão harmoniosa naquele morro, naquele rio, entre aquelas árvores, a ouvir besouros e maritacas, siris e peixes que pulam do rio ao ar, garças, os arbustos e, inclusive, e de maneira perfeita, com o açude de esgoto que, do alto das casas, entregavam, dia após dia, suas oferendas fétidas ao rio, fez-a em pânico. o que havia acontecido ao homem, o que havia acontecido com o seu desejo? levantou-se já barulhenta, a rede se deformou e ela sentou, tonta, com os pés descalços no chão. o mundo ainda girava um pouco, as costas doíam. nem na rede gostava de dormir, pensou, mas se aqui dormi, satisfeita, fui embalada por esta insanidade. na boca estalava a palavra que não ousava se formar, sequer dentro dos teus pensamentos - paixão. e agora sentia o amargo. a sensação de irrealidade do dia anterior era tão concreta quanto os dois pilares de madeira que a rede pendia. e a rede, por sim, aguentava trançada e firme, embora seu corpo fosse volumoso. nita, grande urso, disse a avó quando ela nasceu, gorda, marrom e cabeluda. por anos, nos seus momentos de angústia, sem saber reconhecer sua imagem nem no espelho d'água nem no espelho do banheiro, teve de se agarrar à estas palavras que sua avó cuspia rindo qual uma maritaca: nita, grande ursa, e o pai, nita, grande ursa, e as irmãs, ursa peluda. era esta sua concha, sua morada, seu último reduto. levantou-se pé ante pé e foi até a beira da casa, debruçando-se a olhar o rio largo lá embaixo correndo. vislumbrou o barco que ontem tinha ali aportado, entre a neblina, mas não fazia sol ontem? e nita, de uma vez, convenceu-se do sonho estúpido, tão estúpido, que parecia real e não, que tinha lhe dado um desejo cego de ir embora dali e seguir serpenteando o rio, seguindo um homem que não sabia o nome, se guiando pela lua, tentando encontrá-lo em martim sá. sim, em são joaquim e martim sá. lembrava-se disso tão translúcido quanto era a água, mas o eco desses nomes não faziam provocar nada em seu interior, nem uma borbulha, quem diria a corredeira, a corredeira que seria preciso para seguir alguém desconhecido. o gato preto enroscou-se em sua perna, o suficiente para tirá-la do absorto do seu olhar. chispou-o irritada e entrou para fazer o café.
o dia transcorreria sem grandes surpresas, ela começava a se acostumar com aquele sentimento de pertencer àquele lugar. lavaria as roupas dos outros, seu ofício passado através de gerações, com afinco e atenção, ciente de talvez, aquelas camisas e mantas de algodão faziam parte adequadamente àquele ambiente, às pessoas que ali moravam, comiam, tinham filhos e morriam. não tão ursa, pensava, esfregando no tanque uma blusa de lã, mais um siri vermelho, com duas e boas patas ruidosas. seu pai chamou-a, ela levantou-se do tanque, e num movimento distraído, chupou o dedo mindinho da mão, que doía. ali, ela viu, um corte quase cicatrizado, embora vermelho pela fricção e talvez irritado com o sabão. o corte existia. ela sentiu-se mole, tonta, os olhos soltos da cabeça, algo como um desmaio assombrava uma palidez na tez escura.