junho 22, 2017

notas sobre silêncios

da minha sacada bate um sol transversal que ilumina o feio prédio amarelo de sacadas marrons, à frente dele um gigante cresce mais e mais, fiquei fora três semanas e o horizonte já jaz morto, nem uma última foto do que nunca mais será eu tive a coragem de bater, o guindaste continua imóvel mas sabe-se que de noite ele abocanha os casqueiros sem casa e sem rua.
quando em lisboa, andava perto da beira do rio tejo na parte central da cidade, pessoas agasalhadas esperavam o ônibus no ponto, como agora, havia sirene e um motor ruidoso, o motor se transformou num ônibus, as pessoas entraram, sobraram poucas ou nenhuma. uma lufada de vento encheu o ar e eu o conheci: há muito tempo eu não tinha me deparado de forma tão intensa com o silêncio. é certo que qualquer um que se digne a saber sobre o silêncio sabe que ele é um contraste e isso foi dito e redito e fizeram músicas acerca, mas é difícil tocá-lo em meio à natureza das coisas, em meio à natureza de uma capital.
a lufada de vento preencheu o tempo e o som, os cabelos das mulheres no ponto voaram, o meu também, eu senti ele frio atravessando minha blusa corta-vento vermelha, cruzei os braços e fui preenchida pela sua frágil magnitude.
tudo que havia no mundo era o vento, e não os motores zunindo, nem as buzinas, as sirenas, nem os passos e as vozes longíquas das pessoas. fui tomada de uma emoção alienígena como se daqui a instantes o rio fosse se levantar em um redemoinho e nos abarcaria criando tudo outra vez, de um outro modo. meu coração se expandiu dentro do meu peito.
sentia-me bem pequena e parte deste todo.
o som retornou, me aproximei de um lugar que se preparava para o arraial de noite, pirilampos pendurados e barracas de madeira com os nomes das comidas, gente arrastando coisas, buzinas, sirenas.
são paulo não aceitaria este silêncio porque é impossível que uma lufada de vento seja capaz de cobrir todo esse zunido.
me perguntaram minha cidade favorita que visitei, eu só conseguia pensar em lisboa, eu só conseguia pensar nesse momento, eu gostaria de habitá-lo, de sê-lo. mas é claro que a sua natureza é contraditória para se tornar uma morada ou mesmo um lugar: se faz de contraste, é efêmero. por essa entendo a quando se referem, então, não-lugar?
adentrei num parque bem arborizado em zagreb e procurei pelos lagos que seu mapa indicava. o parque se fazia numa avenida iluminada pelo sol ladeada de árvores e pequenos caminhos pavimentados com pedrinhas selvagens bem colocadas. desde que estive a beira do tejo e o silêncio me invadiu decidi procurar pela água, onde é que elas estariam, nas cidades que eu viveria por não mais que cinco dias. o maior lago tinha uma espessa mata de grandes árvores por todos os lados e parecia um lugar silencioso e recôndito. na outra margem via-se apenas árvores e um morro, sem passagem alguma, resguardando o mistério necessário para que aquele parque urbano parecesse selvagem. um casal de namorados no banco mais próximo ali estava e andei, não querendo atrapalhar possíveis sexos em público, um homem que remexia no lixo falou comigo em croata e eu não sabia o que responder, ele saiu correndo fechando um sorriso malicioso depois de um no meu nervoso. por um tempo, estive imersa nos porquês do medo que eu sentia o tempo todo dos homens que cruzavam meu caminho: há pouco tinha me escondido de adolescentes em bicicletas (extremo e traumático), de uns jovens, da minha idade, rindo e conversando alto e sem camiseta (falariam mal de mim em croata) e por fim do velho que catava lixo.
me livrei completamente das teorias e reclamações que tinha formulado, do meu eu enquanto mulher, oprimida, e o medo escorregou por entre as folhas secas e mergulhou como uma rã escorregadia no lago para ser comida por um peixe grande e esbugalhado. olhei com desinteresse vivo o reflexo da luz na água que fazia correr pelas folhas verdes bem claras desenhos e rajadas de luzes. estive por muito tempo olhando esse lago, essas folhas, esse reflexo.
estive por muito tempo olhando, estive desde que nasci, e desde antes, e me parece que por qualquer razão ou caminho aleatório, me encontrarei sentada no banco de madeira olhando o reflexo fluido das luzes sobre as folhas e a água correndo.
uma mulher se aproximou e foi até o deck próximo a mim, não um deck, mas uma tábua de madeira estendida em direcão ao rio. indo até ali, se via no meio do lago um jardim de samambaias e plantas que desconhecia bem iluminadas pelo sol, artificial como cyborgs assassinos, mas tão lindo quanto eles. por conta das árvores, eu não sabia o que a mulher fazia, mas depois de uns minutos uma mutirão de patos que estavam dormindo na sombra das árvores ou flutuando vazios em cima da água, vieram até o deck a grande velocidade piando e mugindo e grasnando e seu som pareciam como de cem sapos coaxando. vieram filhotes, que mais berravam, e depois os grandes, e eu não pude saber se ela os alimentava ou era uma encantadora de patos ou tudo passou de uma grande coincidência ou se sabia que naquela exata hora os patos se agitam e vão nadando naquela direção e ela os amava intensamente. sim, de qualquer hipótese absurda, ela com certeza os amava intensamente. eu também os amava, mas de uma outra maneira, de praxe tenho um pouco de medo, mas estes eram tão inofensivos às sombras das árvores e dormindo nos seus galhos daquele modo engraçado, que eu simpatizei com eles.
durante muito tempo seu coaxar preencheu o espaço do som. o vento inconstante que rajava as folhas, os pássaros, os patos e umas crianças brincando, uma sirene, um ruído muito grave que surgia do fundo da terra como se fossem seres intraterrestres ou do fundo do céu como um avião tão distante e presente ao mesmo tempo, e pássaros, de vários tipos. dois pica paus bicando uma árvore atrás de mim e eu gravei todos esses sons e me ative à eles de forma tão concentrada como se eles fossem o silêncio que eu buscava.
mas são o oposto disso, e por muitas vezes, gostaria de ter aqui escrito que encontrei o silêncio duas vezes, mas não.
depois por um longo tempo observei as tartarugas - e elas sim, posso dizer que amo, de um amor infantil e puro e platônico até o último ano do mundo. elas se secavam ao sol e estendiam os pescoços de pele enrugada para recebê-lo aonde podiam sentir os minúsculos olhos pretos fechados. àquela hora, muitas estavam ao sol e não no lago. os patos tinham migrado e sumido e elas seguiam seu curso. resolvi me movimentar e observei que o chão se movia e era uma tartaruga que andava com dificuldade entre as folhas secas e pedrinhas se afastando para o lado oposto ao lago, se digirindo a um pequeno morro que daria num caminho pavimentado de pedrinhas selvagens, debaixo de uma grande sombra de árvore frondosa. todas as tartarugas faziam a siesta e ficavam próximas ao lago e esta, tendo os pés aptos a água, insistia em se mover à terra.
me apaixonei instantaneamente por esta tartaruga. eu não sabia se ela estava desnorteada e pensando que se fosse para aquele lado, encontraria o lago, então fiquei triste por ela. eu não sabia se ela tinha desejo de explorar o seu mundo, a área que lhe foi designada, talvez absorta pelos ruídos graves que rugiam do grandioso céu e faziam tremer a terra. por fim eu pensei que ela se afastava de suas companheiras para morrer distante e em terra.
fiquei extremamente triste ao acompanhar aquele velório em vida.
uma bicicleta veio zunindo pelo caminho da tartaruga e eu dei licença para ela passar e resolvi me afastar da tartaruga que continuava seu caminho lembrando-me quando aos onze anos num zoológico observava intensamente um orangotango e como suas mãos eram grandes e humanas, e como tudo nele era humano, e me perguntava o que é que fazia de mim humana e dele orangotango, atrás das grades do zoológico, com aquele olhar triste que os animais deste lugar tem, e que os orangotangos naturalmente tem. eram pensamentos infantis mas eu me lembro da hipnose à que fui submersa e um menino que tinha tentando me roubar um beijo sem sucesso no ônibus da excursão, pedro, cabelo tijela, magro e agitado disse: está apaixonada pelo orangotango, é?
tristemente a rã de quem eu sou, a memória que me constitui, a mulher que me designaram para ser, minha experiência psicológica, voltou galgando as escamas do grande peixe, pulou da sua boca com tanto afã que caiu em terra e em dois segundos estava entalada na minha garganta.
nada mais pude pensar que não em como eu tinha desistido de observar a tartaruga porque tinham me repreendido, dizendo algo em absoluto nojento, porque era um mulecote de ego ferido, porque talvez eu estivesse mesmo num estado de paixão pelo orangotango, porque contemplar intensamente qualquer outro era errado, eu parei de contemplar o orangotango.
eu parei de contemplar a tartaruga.
ainda andando querendo ir embora, dei uma olhada para trás para ver se divisava a tartaruga em meio ao chão marrom, moribunda, perdida ou aventureira desmedida, e não mais a vi, de certo porque se camuflava ou o tempo da rã entrar pela minha garganta e esbugalhar meus próprios olhos para o meu estado interno era o tempo que a faria desaparecer.
eu gostaria de saber se ela tinha ido à terra. ou voltado ao lago.

continuei minha viagem nessa busca pela água mas a espanha me deu águas completamente comuns, lugares inteiros e visivelmente conhecidos, um mar mediterrâneo azul de certo, mas atravessado pelas milhares de pessoas na praia e meu temor que levassem minha bolsa com dinheiro e passaporte, um rio ladeado de concreto em madrid.
madrid fazia mais de 40 graus todos os dias e as pessoas todas também buscavam água desesperadamente. em meu último dia lá, andamos até um lugar turístico que não me interessa explanar, atrás dele havia uma fonte, e as pessoas tinham os pés mergulhados na água da fonte e com roupa se banhavam na fonte qual chuveiro ou cachoeira e se secavam ao sol nas bordas de concreto da fonte. uma moça de cabelo verde sentava na piscina baixa junto ao seu namorado fumando um cigarro.
são paulo escurece logo e as luzes aqui na parte central da cidade são cada vez mais escassas. o som continua absolutamente ininterrupto buzinas constantes de um mesmo carro helicópteros e a porta da minha sacada rangendo irritantemente por conta do vento.

ás vezes, eu penso em você só para ter a sensação de estar apaixonada por algo. é uma sensação inebriante mas você está fixo e enraizado aqui, e ao meu lado, então também não é. minha hipnose, minha contemplação e a forma mais simples de felicidade que eu conheço habita os não-lugares, os olhos minúsculos fechados das tartarugas e as águas que dançam à luz do sol.
então eu penso em silêncio em te foder e tudo fica bem de novo.