dezembro 25, 2011

joana e a cavala

nunca me contara que teve irmã. teve irmã, joana? e seus olhos entristeciam. tristes de saudade, eu sorria. também sentia falta dos meus irmãos, mas eles me abandonaram, abandonaram todos nós, não é mesmo, joana minha? se a gente falha, eles vão embora, vão indo rindo, eles riem da gente toda a vida e depois nos abandonam, quando lhes convém. não prestam, eu lhe contava. para que deus faz irmãos, eu não sei. é um amor tão impuro, tão obrigatório, que se dissipa logo na primeira curva da vida. mas eu não entendia. a sua tristeza não era saudável - nada em você era saudável, joana. tudo em você é esquisito, doente, cheira a creolina, enxofre, amarela. ah, joana. sua irmã, uns cabelos pretos, tão pretos que davam medo. é assim mesmo, medo de se prender no escuro daqueles fios. quando vi a foto de vocês duas, que estranho, eu pensei. e você já chorava e gemia, debaixo do armário. se encolhia, assim, debaixo do armário, quando a dor era grande. joana tinha medo dos vultos, dos fantasmas da memória. quando acordava assim, tinha que lhe por no colo e dizer que aquilo que vem dos sonhos, aquele horror que não sai das nossas cabeças, não é real. chupava o dedo, por vezes, me olhando, incrédula. era como dizer que papai noel não existia. e eu te beijava os dedos todos, joana, os chupava por você. chupava por você, ai que saudade, joana, desses dedos, tinham gosto de. não poderia dizer. chupava por você porque assim você parava quieta, parava de chorar. conta da sua irmã, me conta. do seu lado, no retrato, não parecia irmã, duvidei que fosse ela. os cabelos pretos e a cara bruta. do lado dela uma menina pequena, frágil, um sopro de vida, branca, os cabelos laranjas, mal se via o verde dos olhos apertados. tão frágil perto daquela outra. grande, um corpo enorme, a cara cavalar. quem é essa, joana? violeta. e relinchava, nos dias piores, para me lembrar. violeta, a irmã cavala. eu chamava assim, você ria de nervosa, a irmã cavala. no dia que conheci sua mãe, os olhos verdes sofridos, cada dobra cheirava à álcool. era uma dessas mães que a gente não pede, quando nasce. não sei se era triste porque bebia, se bebia porque era triste. era tudo uma coisa só. era frágil também, não sei como tinha parido um cavalo. nem ela sabia, não se lembra mais desse dia. violeta, não sei porquê. nome de flor. violeta era tão grande que te levava deitada, debaixo dos braços dela, sem jeito. violeta te punha na lombar e andava de quatro, fazia você rir, você três anos. violeta sentia cheiros, sentia o cheiro da mãe bebinha, já de longe. trancava a porta de casa e esperava a velha chegar. a velha batia, esmurava a porta, violeta, cavala, não abria. joana minha, chorava baixo. deixa a mãe entrar, deixa. ah, joana. quem te entenderia? rainha do submundo, mãe dos desvalidos, era você. era mãe da sua própria mãe, que era inválida. entendia o hálito cruel da mãe, tinha bebido o leite alcoolizado dela, tinha dela no sangue, mas violeta não. desde nenê, devia ter recusado o leite da mãe. não tinha vínculo algum com ela, era bruta com a vida. se joana é rainha, violeta era do dia, perdoava quase nada. e violeta deu para si a responsabilidade de criar joana. que dó de você, joana minha. quando contava as crueldades que meus irmãos me faziam, a você... pareço sempre tão idiota. violeta, como cavalo, chegava a relinchar. tratava a cria feito cavalo também. criava a menina de tão perto e tão rígida, que não sabia onde começava o encantamento ou a brutalidade. não sentia amor, ah joana. sentia outra coisa. desses sentimentos mais próximos com o ódio, que em um instante se confundem, não se sabe o que é isso ou aquilo, não se sabe nada, porque se sente, somente. tinha paixão por você, joana. ela, eu e o mundo. ela, daquela maneira cavalar, brutal. relinchadora. dentes fortes, amarelos. mordiam. que dor, joana. mordiam. choro por você, sozinha, sem você, você odiaria que eu choraria pelos seus vultos. seus vultos eram tão somente seus. não era meu. não era de ninguém, só seu. eu não podia sentir o que você sentiu, o que sentia ainda lá, mordida. cavala. levava para passear, é certo, brincava de descontrolada. dava cabeçada. coice. enquanto dormia, até, coice. tinha olhos no rabo. te vigiava assim. joana, guardadora das dores do mundo, junto das dores de ser a si própria. de possuir isso de... da gente não se controlar. amor, do nada e para caralho, no âmago e debaixo das unhas. violeta, te odeio. e no meu ódio, choro, te entendo. violeta, te repudio, fez de joana ainda mais esquiva, escorregadia. quem sabe se você tivesse morrido ao nascer, joana seria toda-minha, para sempre minha, não ia querer voar. não ia entender seu verdadeiro lugar. permaneceria entre as minhas pernas, como casulo, como gostava de ficar. para sempre, entre as minhas pernas. mas a cavala. ódio, que me faz relinchar. morre marcada, filha de uma.

dezembro 21, 2011

joana, um rato morto

joana, esses dias, andava e pensava em você (eu sempre ando pensando em você) e eu o vi, ali, diante dos meus pés: o rato. morto. embolado em torno de si, os pêlos cinza, cinzas. a cabeça esmagada, e o rabo, joana. foi o que mais me apavorou: aquele rabo de cobre, como se nunca pudesse ter sido vivo. meu horror era tanto que não sabia se era pela morte ou pela vida daquele animal. como pode existir, joana, você que sempre tudo sabia, sorria serena e nada respondia, eu gostaria de segurar suas canelas, brancas, e implorar: como pode existir esse tipo de bicho, esse tipo de bicho. e como pode que esse tipo de bicho morra, joana? é injusto que morra, que morra na minha frente, a altura dos meus olhos, no meu mundo terreno, por que morreu, o pobre bicho? pertencia ao submundo, esse animal imundo, aos esgotos, rasteja meticulosamente por debaixo dos nossos pés, ri de agonia entre a sujeira do mundo todo. aquele rato, joana, morto no lugar que não era dele, a ferida aberta para quem quisesse ver: a ferida de um outro mundo, joana! eu não estive preparada para você, para este submundo, eu não me aventuraria dentro das tubulações, joana. só de pensar em te seguir por elas, longas e infinitas tubulações, "não há horizonte" você diria entredentes, "apenas ir e ir e ir" você iria e iria, porque você era parte daquilo, joana, me perdoa, eu não poderia simplesmente ir. sinto o sufoco mesmo antes de tentar, seria a morte. pobre rato. se aventurara por terras desconhecidas, por que? morrera tão logo vivera sob o sol. a morte, a morte, você ria descabida, joana, minha flor. a morte é que é divina. queria olhar nos olhos, se tivesse olhos, daquele rato destroçado: fora delícia, fora divina? seus olhos, joana, eu não pude. eu sou como aquele rato - ou você é? arreganhava os dentes para mim e saía correndo descabida. filha do submundo, irmã das ratazanas. de vestido branco e longo, cercada por todas elas, te vejo. se comunicava por granidos, havia dias. consumida por ratos. comem as veias, os ratos. comem a linfa, joana, aquilo, a proteção. entram por debaixo da pele, sem saber, vão fazendo comichão. a linfa, o sangue, se puder. filhos de vampiro, ah, joana. ria descabida da vizinha que pendurava alhos quando te viu. comeu minha linfa logo de primeira vista. eu não tinha como me proteger - eu não queria me proteger. você era toda candura, toda branca, os olhos verdes estáticos, joana minha. entrou dentro da minha pele desde a primeira, a primeira vez. ia se encostando devagar, seu corpo era tão leve e fluido, com todos os membros ia subindo como se fosse una, uma cobra, uma gosma. a carne dos lábios de uma vez aderiu-se por completo a mim: eu não pude fugir, eu já te amava para não perceber, que perigo, te achava pequena, podia cuidar de você, frágil, ai joana, que vontades de te sentir aqui. ainda sinto, dentro e quente, aqui, ainda te sinto e por isso te amaldiçoo, pequena vampira. dentro de mim, comeu meu sangue, meus órgãos, ai joana, triturou meus clítoris, alojou-se no meu coração, grande e cardíaco. bicho de barbeiro. um rato morto, o rabo de cobre torto, o bicho enviesado em si mesmo, uma bola de pêlos, circular e medonha, o rabo de cobre, tão inexistente. o bicho morto, o quanto eu chorei, joana. voltem para o mundo da onde vierem, fiquem com os deuses que te aceitam! voltem, criaturas do submundo, avessos ao sol. joana, ai, joana, se eu nunca tivesse te visto, joana minha, que seria de mim? me destruo fabulosamente nas memórias que recordo de ti. as memórias percorrem meu sangue, circulam rápido, todos os meus órgãos te amam. todos os meus órgãos vão parar, de falência de ti. que grande ironia seria, joana, se eu morresse da sua falta, se sua falta foi porque eu não quis morrer. eu, não, joana. sempre fui coerente, sempre quis viver setenta anos limpos. você me desperta aquilo que não pertence à mim, faz-me chorar com ratazanas mortas no meio da rua, faz-me chorar enquanto gozo. faz-me pensar como aquele rato, criatura de um outro mundo em meio deste, morto por querer tanto. te quero tanto, joana. te odeio tanto, ratazana.

dezembro 13, 2011

joana

por que comigo, joana? olhos verdes, pés brancos. abraçava as pernas em torno de si mesma, era um casulo. no meio da praia, assim. toda essa praia, para nós, joana. você aí, pequena, encasulada. no meio da praia. você sorria. olhos verdes, joana, que tortura. quando sorria, as sardas ruivas se contorciam. torrada de sol. uma pintura de Monet. joana. eu te chamava sem saber porquê. gostava de repetir o seu nome a qualquer momento do dia, joana, joana. grandes janelas brancas. aqueles dias foram poucos dentro do resto. janelas de ferro, joana! e o sucrilhos de manhã. derrubava o leite branco na cumbuca. leite, joana. lambia o leite devagar. por que comigo, joana? seus olhos me encaravam, mais mortos que vivos. fixa em você. longos cabelos alaranjados. amarrados em volta do próprio pescoço. branco. joana! quis te salvar. você tão encolhida, eu te dizia: levanta, joana. você não queria. levanta, joana, que já é dia. você, triste, nada dizia. quando dizia, dizia que tinha vontade de me matar. logo eu, joana? tinha ganas de arsênico. desde que viu na televisão: menina mata família colocando arsênico na sobremesa. era mousse de chocolate. eu e você gostávamos de imaginar a família comendo o mousse. tão banal. a morte num pouco de leite com chocolate. arsênico, arsênico. você ria, extasiada. sempre tão viciada na morte, joana. eu não podia mais aguentar, me entende? eram olhos verdes tão frios e quentes ao mesmo tempo. como ácido, joana. eu já não sou tão do outro mundo como você era. tão esquisita. criada sem pai, uma mãe que sabe-se-lá quem é. acostumou-se a ser tão quieta, joana, eu tinha rugas por todo o corpo, mas mesmo assim você me beijava. não sei do que gostava de mim, gostava de ouvir a minha gargalhada. pedia para ouvi-la e ficava perto só esperando. dizia que lhe lembrava a morte. a morte, joana. por que assim? tão bonita você era. ninguém podia a ver, joana, gostava de ler Cem Anos de Solidão, joana, você é tão bonita quanto a moça que mata mil homens. você ria, extasiada. joana. era mentira. a sua beleza era toda tão minha. feito bicho, você vivia. já tinha começado a se rastejar, e os dedos já se acostumavam a andar pela casa dobrados, feito garras. garras, joana. gostávamos de brincar de rato e gato, você rosnava, com a lombar arrebitada. choro tanto, joana, enquanto gozo sozinha. ah, joana, minha. por que você fez isso comigo? foi embora, sem rastro, para o mundo da onde veio. ria. pálida, ria. conheci sua mãe, tão velha quanto eu, os mesmos olhos verdes e tristes. não gostava de viver a menina, disse. como é que deus põe no mundo alguém que não gosta de viver, meu deus? rezava baixo, porque tinha medo de que me ouvissem. tão idiota parecia minha prece. quem irá me ouvir se a própria criatura se dá assim, ao deus que a espera de braços abertos. que deus egoísta, joana. te fez e te admirou, desde os pés brancos até os cabelos alaranjados. e te invejou e te quis, te desejou, joana. filho da puta de um deus que me tirou de você. ah, joana, se me ouvisse. iria rir nervosa e se esconder, ladra, segurando na boca um pedaço de carne crua. um bicho, que eu tinha. nua, no mar, você brincava. deitava-se na orla, esperando o mar chegar e brincar com os pêlos púberes, joana, joana. você ria e se contorcia. eu olhava de longe, me corroendo de ciúme. deus maldito, mar maldito. fazia-te tão feliz. e eu te arrastava, tão furiosa. e você me prometia: vamos nos matar, vamos nos matar. tão esperada felicidade, joana. eu não pude cumprir. vi o seu olhar esverdeado entoando maldição para o meu lado. eu não era o bastante para você, você já o sabia. se escondia, gemia baixo. queria tanto de mim, joana! por que fez isso comigo? injusto é me deixar assim, se eu pude fazer tudo o mais o quanto pude. nem todo mundo é assim, um buraco, igual você. um poço de mistério, igual você. nem todo mundo conhece deus, joana. fiz o que me era feita a fazer: meu molde é coerente. você queria tanto, joana. tinha medo, tenho medo! sempre fora compreensiva, mas você nunca pôde. percebendo minha debilidade, afugentou-se em si mesma. não pude competir contra o deus que mora em você, joana. joana, joana. eu chamava. o leite, deixa-me. olhava-me brava. era do mundo. de um outro, dizia. um submundo. dispensou-me, cobra. foi-se. entregou-se. joana, joana. parada encolhida no meio da praia, levada pelas águas do mar, rindo de febre viril, quente feito exú. quente, joana, morrera quente, juro por tudo que é mais sagrado! a tez pálida e quente, aquele deus te possuía, enfim, tinha seu corpo, joana. serva de deus, rogai por nós. serva de prazeres esdrúxulos, joana, toda a sua vida e toda a sua morte. menina estranha, olhos verdes, pés brancos, joana, joana. já não ouve mais meu chamado, já não quer as minhas súplicas. pertencente a si mesma, enrolada na sua fixação, platônica e sepultada, quente de felicidade inútil.

dezembro 04, 2011

na casa de ferreiro

o tempo se foi, querida. esse cabelo e essa cara. e a sua avó não é mais gorda. e seu avô que está velho. e ela que não está mais lá. você dizia amor. ela dizia nana. o tempo se foi tão rápido. tudo mudou. parece tão rápido.
ah, dificuldade desgraçada de aceitar a passagem do tempo. a crueldade do fato de que o tempo passa. caralho. eu queria lutar por. mas isso não está mais nas minhas mãos. é tão abominável. que abismo entre nós. que abismo entre mim e o universo. não sei.
eu não sei hoje eu só estou chorando. em casa de ferreiro, a colher é de pau. é de se desesperar. para que serve um cineasta, josé, para que serve uma câmera. para registrar no mínimo. para a memória no máximo. que abominável que você é. eu nunca vou te perdoar. dói tanto.
na casa de ferreiro, ferro quente. é.

novembro 14, 2011

outros

A coletividade virou cafona. Para salvar o meio ambiente, use sacolas de pano. Desgastada, porque empatou. Intervenções daqui e acolá. A coletividade não ilude mais ninguém, é melhor lutar por si, no seu quadrado.

Na era das expansões, nos fechamos em quadrados. O espaço já não nos detém. O tempo é contado a vira-gotas: depois de um segundo passado, o mundo já é mudado. Adeus, barreiras geográficas. O quadrado das barreiras sociais. Parece ser impossível passar ao outro lado.

Dentro do seu espaço-tempo primordial: uns amigos de quem gosto, pintar uma parede de verde-água, do positivo para o negativo. Um suco vegetariano para comemorar depois. Mudamos o mundo hoje, amigos. Sorrimos. Mil e uma visualizações no youtube. Sorrimos, dormimos em paz.

A geração das ações individuais: o máximo é um flash-mob engraçado. Por quê? Filhos da democracia assentada. Distantes de qualquer tempo: guerra/ditadura. A democracia nos deixou burros, burros demais. A democracia nos deixou cômodos, cômodos demais.

Não ultrapassarei as barreiras do sistema. Não desobedecerá às ordens judiciais. Se contentará em protestar dentro do que a lei, santa, permite. Sem maiores desdobramentos. O marginal inexiste. Os grafites estão em galerias. É preciso estar dentro, do mundo.

Não se vê aquilo que já pertence. Que já está ajustado às regras dos outros. Não é preciso ver. Engole-se com facilidade incrível. É tudo Nosso.

A individualidade paga com avanços mínimos, pulinhos de rã. Não sai do lugar. Ninguém ouvirá uma voz, sozinha. O mundo é vasto, o penhasco maior. Não há eco. Não há transmissão.

Propagação: de um para outro. Vamos celebrar a existência do OUTRO. Se o mundo fosse só você. Que merda seria. Eco. Não repetição, nem reiteração. Eco construtivo. Uma voz não pode ser única: tem de ser una.

A individualidade não nos deu poder. Não sei onde está. O nosso alcance vai até a parede branca do vizinho. Não será verde-água. A individualidade não nos levou à revoluções. Palavra distante, nostálgica: revolução. Radicalismo. Palavra mal-vista, mal-ouvida. Repito, para ganhar novo sentido. Precisamos de novos sentidos, construídos conjuntamente.

Apenas o abandono do velho, apenas o muro quebrado das regras sistematizadas. É preciso sair do quadrado para visualizar o mundo. É preciso sair do quadrado para ser visto pelo mundo. Se não, mais do mesmo. É um velho mundo, já acostumado com revoluções. Não pode mais ser de papel. É preciso ferro. É preciso cal e ácido sulfúrico.

Abandonar a noção de pertencer somente a si mesmo e daqueles que escolheu para ser sua patrulha: a noção de pertencimento a um ideal, a um novo mundo. Coletividade. Não só de sacolas de pano, abandono de um sistema que tem por base exploração. Por um outro que ainda não foi escrito. É preciso. Não mais se alimentar em velhas ideologias. Nem na ideologia que vigora, triunfante. Não ao triunfo. Sim aos perdedores, juntos. Eu, você e o outro. OUTROS. Coletividade. Resgatar a força poética da palavra. Refutar o indivíduo, pelo menos em crise. Pelo menos AGORA.

outubro 29, 2011

memo-amor

tenho sentido fome. sinto o teu cheiro debaixo das minhas unhas. comidas. ás vezes, vem-me seu cheiro numa ou outra amiga suja que conservo. é que gosto de. melhor não dizer.
fome, para sentir o vazio. é engraçado: depois do estômago roncar, ele pára. e por longo tempo, hitato, sente-se nada. nem fome, nem nada.
isso explica tudo: de certa maneira, mais nada sinto. faz tempo que não como, amor. não como amor. o estômago ronca, e eu espicho, repentinamente desesperada. gato ouve ronronar de rato debaixo da escada. caça. mas tudo é ilusão.
eu não sinto mais nada. nem fome, nem vontade de comer. nada. vontade de. atropelada. digam que é auto-censura, não sei. meus mecanismos de defesa estão além de mim. já não sei, porque não sinto. e pouco penso. não me esforço. não mesmo. sou mimada. por mim, em mim. mima-me.
mas vem-me teu cheiro. amora. ai! é que a nostalgia ainda me apela. sinto-a correr pelos poros: saudade. eis amor que não largo. saudade aperta-me os braços, as pernas. sinto-me paraplégica. tetra. quatro de ti.
saudade, eis amor que não largo. me move em larga escala. por ela, sigo assim. saudade. e o receio de sentir saudade, é o que me segura. saudade.
por você, ainda vivo, aqui. e te procuro. gosto de lembrar: lembro do prato de comida que me recuso a comer. debaixo das minhas unhas, você. logo aí, debaixo das minhas unhas. tão sujo. tão puro.
memo-amor. se amo, é de memória. amo a mim, infortunamente. sou desgraça. se me odeio de pouco em pouco, de largo caminho, acabo por amar só aquilo que construo. eu. egoísta, de um jeito trágico. quem dera fosse egoísta como os outros falam. sofro.
egocêntrica, porque o mundo esteve em mim. aqui. vontades de criadora. besteira. acabo por não viver, apenas lembro. e se não vivo, é mentira. pura estupidez. sofro e sei porquê. continuo. masoquismo. continuo.
memo-amor, meu amor, me perdoe. sou assim, toda eu. não há mais nada aqui, embora pareça. sou nojenta. continuo. mas não me deixe. eu choro. de solidão, juro que choro. é idiota; contraditório. mas continuo. não sei viver de outra maneira. continuo a barrar a felicidade. continuo a. não sei. se fosse possível viver sozinha. não é, que graça teria?
gosto dos olhos, do cheiro, do líquido dos olhos, do cheiro, do tato, dos ossos, sentido. sentir a fome, fisicamente. preciso sentir. em ti, massa. real. concreta. continuo. auto-destrutiva, destruirei um mundo (o meu). e quem se aproximar. se aproxime, por favor. sou inofensiva, me sinto sozinha. juro. comigo, por favor, me toque. no estômago que parou de roncar, há muito. faz cócegas aqui onde não sinto, eu deixo, vem.
de algum jeito, me consome. quero sentir-me consumida. quero levar de ti a memória dos olhos líquidos. me martirizar com a saudade infinita. quero a infinitude do memo-amor. eu sou assim. é simples. gozo, choro. continuo.

outubro 13, 2011

carta de amor a Marguerite Duras

Marguerite,

tenho que lhe dizer, hoje encontrando tantos livros seus na biblioteca municipal, tive vontade de chorar. juro por tudo que senti aquele comichão por detrás das bochechas, aquilo que não se sabe se é felicidade ou tristeza. lendo título por título (três exemplares de O Amante, três de A Dor, dois de Deslumbramento, dois de A Vida Material; diante de tais títulos poderia te descrever a sensação que é encontrar seus livros, prontos para serem lidos, a meu alcance) procurei, não sei bem o quê, pois poderia pegar tudo (e repetindo) de uma vez. vou-lher ser sincera: essa vontade quase ninfomaníaca é porque sou nova em te amar. achei, uma vez, numa barraca de livros, teu livro largado ao fundo. Dois Livros por Dez Reais, dizia o cartaz. eu recordava não sabia de onde de teu nome, e embora a capa da minha edição seja pouco atraente, levei.
eu não podia esperar que...! Ah. esse tipo de paixão, esse mesmo que eu tive com Hilda Hilst. essa vontade imensa de engulir. e tanto uma quanta a outra (em fluxos diferentes, mas acima de tudo, fluxo, acima de tudo, água) me deram imagens de velhinhas um tanto quanto razinzas, parecidas em juventude. alguém me disse que a beleza antiga, rostos que não nascem mais, se perderam. vocês tem algo dessa beleza antiga, sextita, velhinhas de fim de século segurando cigarros acesos. e tem algo que me... me faz amar, de certo modo. logo eu, que sou má nisso. e como não te amar, Marguerite, ao te descobrir escritora e cineasta. de certa forma, alimentou, mais que ninguém, a minha alminha comprimida. alminha com ares de grandeza - sempre me sinto envergonhada ao falar das minhas vontades, mas espera! são sinceras, ao menos. como não amar seus filmes, Marguerite, mesmo sem vê-los ainda? como não esperar que o que eu procuro, a solução que não me vem (o cinema literário a literatura cinematográfica que sejam as taxonomias baratas) em teus filmes, em teus escritos? sinto vontade de chorar novamente. porque também é mulher. porque tem crescido, em mim, a consciência de ser mulher. porque preciso ser mulher e preciso de ídola-mulher. preciso ver-me em vocês, Hilda, Marguerite. porque minha arte não é panfletária, é de destoar, como quem escreve no ar, no vai-vem da vida; e quanto mais sei da tua vida, mais me apaixono por você. corresponderia? eu te amaria em qualquer quarto, em qualquer idade. eu te amo, mesmo se for o espectro que sobra de ti em qualquer coisa que faça. eu te amei antes de saber teu nome, digo: te amei quando vi Hiroshima Mon Amour. amei porque saí deslumbrada e disse "é um filme tão literário". é um filme tão literário. e saber de ti sem saber quem é, com uma amiga me dizendo, orgulhosa de uma fotógrafa mulher. cineasta. saber de você nos textos um tanto quanto chatos de som no cinema. amei Hilda porque era escritora e porque era da minha cidade, amo você porque você está em tudo que eu sou, mesmo que de vietnã e frança eu nada tenho. não me importam barreiras geográficas (será que você leu Hilda ou ao contrário? será que vocês se apaixonaram ou sentiram repúdio pelo espelho deformado?) não me importam barreiras temporais. se você fala da memória como ninguém falou, te falo de um futuro do pretérito, de um sonho. te falo de amar alguém que já se foi, que não se conhece, te falo de se espelhar naquilo que se pensa que se foi, que deixa registros alguns para tentar desvendar, te falo de um amor irreal e atemporal, de um sonho curto, que fica, te falo de tempos que não se encontram jamais, mas de amores que explodem em outro plano que não o real. te falo de um real deturpado por uma visão romantica, de uma esperança de permanencia, te falo, ainda, de luta de sobrevivência artistica, te falo do que não existe, mas que deveria, te falo e te peço que me escute. leia-me com cuidado, despreze-me pouco. aquilo que amo, geralmente, me escapa. e aqueles me amam, geralmente, acabo por escapar. o amor concreto me parece falho e quebradio, de curta duração estúpida. o amor que te tenho é eterno porque irrreal irrealizável, sobretudo, porque não te conheço e jamais poderia.

com amor,
Mariana.
(gosto de ti porque Mar.)

outubro 01, 2011

manifesto para levantar (a minha) estima

a língua há de convir. a linguagem vem em manifesto próprio, sentido único. a palavra é também pintura: ou imagem, em movimento, é também cinema, a língua há de convir. quero enfiar todos os s's possíveis. letra lânguida e escorregadia, sss, vai e volta, vem, sss, quero encher tudo de sss: fazer da exceção essessão, essa é a minha. não importa mais, fodac a ortografia. gramática de quem? fodac. tudo limita e cria barreira, diabo de mundo. não-quero-mais-o-x. letra reta, roxa, rasa, um plano cartesiano no meio de todo esse paraíso de palavra. pa-la-vra-mi-nha. quero uma chícara de chá, para a chícara servir o chá, há de vir com ch. x só se for de ex. ex-mundo-ex-palavra. a linguagem não suporta minha vontade. PRECISO ULTRAPASSAR. pareço grande. sou porra nenhuma. MAS PRECISO ULTRA-PASSAR. CONTRA-DIZER. preciso fazer com quê. issssso. e dizer o que é dito: a palavra não-mais-lida, a palavra se escuta, dentro, no ribombar do seu coração. ri-bom-bar. não sei se essa palavra existe, mas me parece ser o que o coração faz dentro do peito. ESTOU SENDO CLARA. um manifesto é lógico, vou me esbaldar. esbalde de prazer em escrever. uma a uma, escolher, palavra, SEGUIR O QUE SE SEGUE aqui em mim E AQUI NO MUNDO. não sou toda subjetiva: ando tentanto ser mundo. eliminar o plural quando convém, o plural que foi engulido pelas entranhas da minha (mais nova) terra cinza paulistana. TER LUGAR, SER LUGAR. aquele que escreve não está acima: se preferir, coloque-o abaixo, é preciso que pisem em mim, PISEM COM TODO ESSA MERDA, para poder devolver vo-mi-tar, en-gu-lir ENGULIR DEGLUTIR E DEVOLVER TODA ESSA MERDA. sou toda lugar, toda do centro vermelho da Terra. sou fruto e produto, ENTÃO NÃO. prefiriria não segregar, por favor. preferiria que fosse aquilo LIBERDADE DE ESSPRESSÃO. não sei o que é. parece bonito dizer: liberdade de. CRIAÇÃO. desculpa. RE-CRIAÇÃO. tudo se recria.


não vou me justificar. sinto vergonha-culpa-alvoroço de alma suja. juntar e separar, não pontuar, o que seja para que POSSASSE criar ALGUMA COISA. onesta. SOBRETUDO ONESTA. é preciso pular os muros, para destruir os muros, VAMO DESTRUI. tudo-é-junto-em-tudo-seu-bando-de-babaca-eu-quero-que-vocês. quando vier dizer que É PRECISO ISSO OU AQUILO. que estudado está para usado ser e AI QUE VERGONHA. COMA-SUA-PROPRIA-PORRA. intelectual maldito que prega igualdade de classe e ri sem s. EU PRECISO DIZER ALGUMA COISA DE UM JEITO QUE SE POSSA. EU NÃO POSSO ASSIM. você também vive aqui. você vive do lado da porra do seu visinho, VOCE VIVE. voce finge que tá tudo bem mas VOCE ESFREGA SUA LIMPEZA precisaconcisaprolixa NA CARA SSSSUJA DOUTRO.


FODAC. EU PRECISO DIZER. EU PRECISO DIZER, de algum jeito que dê, EU PRECISO QUE DÊ. eu preciso-dá.

setembro 25, 2011

açúcar meu bem

açúcar, meu bem, passa a salada. muito boa a comida, açúcar, meu bem. seus olhinhos de boneca, açúcar. e a boca pequena, açúcar. tão pequena e indefesa. eu posso protegê-la. cuidar antes que se desfaça, açúcar, meu bem.
passei meus lábios em ti e qual espanto não foi: açúcar. toda por ti, açúcar, meu bem. e eu lambia, açúcar. e você dizia: comia. cubos de. sua pequena menina e eu engolindo-a, devagarzinho. devagarzinho até acabar. do doce de dentro de ti. eu senti. você gemeu baixinho, pequenina. eu te mordi.
me dá.
foi se diluindo, de água n'água. ai, açúcar, meu bem. volta. se recompõe. se recompõe, eu preciso te abraçar. dentro de mim, eu preciso te sentir, apertada em torno de. aqui. preciso te sentir, açúcar, meu bem, pois sinto que vou sumir. sumir, escorrer, não-sei-bem. você ri. ri cristalizada. pequenos dentinhos de açúcar, dentes-de-leite, açúcar, meu bem. eu os chupei, todos, como balas, cubos de. não ria, meu bem. não ria da minha sangria, desatada, meu bem. conhece isso? san-gria-de-sa-ta-da.
desatada.
tenho pressa de você, açúcar. pressa antes que. se derreta, aqui, melaço de. melaço. pescoço de boneca, umbigo de mundo. te melar com seu melaço, açúcar, meu bem, fazer cócegas no seu riso fácil, açúcar, meu bem, me passa a espátula, açúcar em você. querer te. cristalizar, eternamente, aqui, dentro de mim, te deixar, aqui. amar, açúcar, meu bem.
você ri, de novo.
me passa a xícara de chá, açúcar, meu bem, pestanas fechadas, os pés curvados. é estátua, açúcar, meu bem? é de açúcar? se dilui, se desfaz em mim. aqui, em mim. dentro de onde que não há dentro aqui - sou todo fora todo-fora. mas aqui, nas minhas mãos, aqui, eu te juntarei, guardarei - onde? onde, aqui. açúcar, meu bem, me escuta:

me olha já guardada. me olha já diluída em si. por que tão egoísta, açúcar, meu bem? por que não pra mim, em mim, eu que experimentei bem antes de ti - bem antes de ti saber que é comer. por que. eu que nunca sequer te entendi - açúcar meu bem - mas também não pedi, só pedi que. em mim, antes que você. açúcar, meu bem, se desin

meu bem açú meu bem.


setembro 08, 2011

o mundo

"eu vou te dar o mundo, meu bem."
você se lembra que eu te disse isso naquela tardezinha, na sombra de uma mangueira, se lembra? você me olha com esses olhos grandes, essa barrigona despontando, outro filho, outro filho pra alimentar, eu pensei. você me olha com essa carinha triste, essa sua cara torta, um olho meio vesgo, há tempos você não tira os pêlos que nascem debaixo do nariz, fica brava quando eu chamo isso de bigode. você passou pó de arroz na cara, ficou com as bochechas brancas e o resto todo moreno, você pensa que eu gosto das brancas porque fico olhando com cara de tarado pras moças da tevê, você diz assim mesmo,"cara de tarado". e nesse dia, você tinha perfume doce de pó de arroz e a gente fez amor, de novo, e desse amor outro filho, e agora você anda ainda mais torta, com as mãos nas costas, desempregada, põe um pano de prato no ombro e diz "só desgraça, só desgraça neste mundo." diz pra eu cuidar do menino mais velho, diz que está cada vez mais velho, também nascem muitos pêlos debaixo do nariz dele, e já sabe lavar as remelas dos olhos, passa gel e deixa o cabelo espetado, eu digo "o que é isso?" ele não me responde, nunca me responde. ele trouxe um celular pra casa, um desses coloridos, toca aquelas músicas que ele gosta, "isso não é música, moleque, onde cê arranjo isso?" ele não responde, nunca responde, me olha com um olho enviesado, também é meio vesgo, igual você. você diz que já não pode mais conversar com ele, que tem que cuidar dos menores, diz que é pra eu ser útil. como se eu não fosse útil, como se eu não tentasse, e debaixo daquela mangueira, embora o sol brilhasse forte batia uma brisa fresca cheirando a manga, ou era você que cheirava à manga, à flor de manga, ê minha flor. eu pensei vou fazer de tudo pra fazer essa moça feliz, você era nova e menos preta, dava pra ver a bochecha avermelhada de vergonha. "eu vou te dar o mundo, meu bem", você riu porque nasceu pessimista, nasceu amargurada, e tinha aprendido desde pequena que não se pode sonhar (você nasceu num cubículo na cidade, eu me lembro bem) disse "uma manga já tá de bom tamanho". o menino sentou-se do meu lado, tinha comprado fone de ouvido, balançava a cabeça pra frente e pra trás, "você compra coisa demais"; ele não ouviu, eu tirei o fone do ouvido dele, o ouvido encardido. "o dinheiro é meu". fiquei quieto, calado, carrancudo, diabo de menino, não sabe viver, dezesseis anos ou coisa assim, esse mundo que a gente vive é um perigo, não se dá para viver, é tudo sujo, escuro e encardido, é tudo cheio de fio, tanto fio "você devia ir pro campo, menino, lá se vive" comecei a descascar uma manga, manga ruim de mercado. aquela nossa manga da magueira, eu alcancei uma bem no alto do pé, você riu à beça, eu me sentia um gigante, comecei a descascar com a faca que ficava no meu bolso, sempre uma faca junto pra matar cobra, escorpião, aranha, bicho ruim, me roubaram a faca de bolso, cobra, escorpião, aranha, ladrão. e eu ia descascando enquanto você ria abobada, ia tirando a casca laranja-ocre-avermelhada devagarzinho, com tanto carinho, e você se dizia arrepiada, ria esganiçada. te dei a manga pra chupar. "quer manga, moleque?" nem me respondeu, ele nunca respondia, voltou com o fone de ouvido, "quer manga, merda?" tirou o fone assustado, fez que não com a cabeça, vontade de esfregar a manga na cara dele. você chupava a manga devagar, de um jeito só seu, te dei o caroço todo "isso é meu amor, todo esse caroço" e você sorriu, os fiapos de manga amarela preso no dente amarelo, que delícia de manga, aquela manga era amarela de sol, era inteira feita de amor "viu? te dou o mundo?" e você gemeu precipitada, escorria o sulco amarelo perto da boca reconchuda, escorria o sulco por toda a terra, "todo o mundo". "come essa merda de manga, você não come nada, só come porcaria" fez que não com a cabeça, fez menção de levantar, puxei ele pra baixo "come" ficou me olhando com o olho parado, seu mesmo olho parado, sem reação alguma, "você não sabe de nada do mundo, você é uma idiota qualquer" ele me olhou parado, dava para ver a veia da têmpora do moleque vibrando, ele morria de ódio mas nada falava, "come seu imbecil", ele olhou duro, falou baixo alguma coisa, o quê? ele repetiu baixo, imbecil, filho imbecil, filho do sulco amarelo, do mundo mais bonito que eu quis, eu disse "nêga, te dou todo o mundo" mas todo o mundo é muito grande e muito ruim, é só desgraça e porcaria, é só sujeira e injustiça, eu te dei todo o mundo, sim, e ele veio com tudo de ruim que tem dentro dele: e pra aprender eu esfreguei a manga na cara suja do menino, esfreguei no olho até ardê e ele gritá e enfiei goela abaixo o caroço inteiro, de uma vez, e quis que morresse engasgado, se ela não chegasse correndo estabanada, as mãos na costa, a bolsa estourada, o sulco amarelo da terra divina, o sulco divino da terra amarela e infernal, que mande tudo pro inferno, o mundo todo, essa manga de merda que um dia eu te dei e te enfiei goela abaixo, essa manga amarela que me fez crer num mundo amarelo, mas esse mundo é amarelo - amarelo podre, e eu te dei tudo isso, pena que te dei.

setembro 02, 2011

banho de espuma

muito agravada à mãe lavar a criança. primeiro os olhos úmidos, de um azul pouco, chorosos do iminente contato com a água. e depois a lisergia da água quente, o nenê a sorriso solto, mole feito uma massa branca e disforme, um pedaço de algodão boiando em água fervente. o nenê sem reação, nem mérito, todo entregue à delícia da água e a à autoridade das mãos da mãe. e a mãe, apesar de nova e elétrica, com os cabelos meio presos em coque, canta com a boca fechada sem saber o que cantar. acha que a música doce faz o nenê (ainda mais) serenar. mas é somente a água quente, conclui infeliz, quando tenta lhe cantar quando tenta fazer o nenê dormir.
então, se prepara feliz para o ritual minimalista. o nenê é tão pequeno e tem tanta pouca pele que é possível passar-lhe o sabonete diversas vezes. só nele, de um para outro, é possível esfregar com excessivo carinho e quase ódio. vontade de arrancar escama por escama, não só da sujeira invisível, mas também a derme cor-de-rosa, a espuma de que são feitas as crianças brancas. como as ondas que quebram na praia plana, deixando restos de espuma esbranquiçada na beira, a mãe também brincava de ser mar no corpo areal da sua criança. era possível lavar com cuidado os braços, dos ombros, os cotovelinhos, os pulsos, os pequenos dedos, dedos por dedos, passar um a um, unha a unha arrancar-lhes qualquer sujeira. e as pernas, que por ironia são maiores, se deliciar no lavar das pernas, no devagar caminho dos dedos finos de mãe por todo o comprimento de perninhas. lavar com extremo amor o umbigo e os mamilos e os lábios e a mucosa, lavar como terapia de mãe afoita. se antes lavasse o corpo de outro, com costas largas, agora sua mão era do tamanho daquele todo o corpo e podia, se quiser, com os cinco dedos levantar e subir lavando tudo, de uma vez. se quiser, mas como se pensava cuidadosa, lavava tudo que lhe permitia aquele tamanho de corpo e suspirava inquieta quando percebia que o corpo se acabava, escapava aos seus dedos ávidos. e recomeçava, achando, por via das justificativas, que sempre é bom lavar e lavar e lavar as crianças. o perfume do sabonete infantil a hipnotizava, como a própria música que saía da sua boca, como que automática, e dava pequenos beijos naquele corpinho quieto, naquele corpinho todo - que se deixava ficar quieto apenas ali. você está dando um presente para mamãe, não está? perguntava ela enquanto passava seu indicador pelo esfíncter da criança. que presente bom. beijava a bochecha, mas a criança não reagia. lavava, lavava e lavaria, passaria toda uma vida a lavar aquele corpo, sem pensar em nada mais, nem sentir mais que o presente lhe dava: o perfume, o seu próprio som, o toque macio da pele inocente da criança, o amor primário que sentia, que não precisa de recíproca. o amor tão primário que é querer passar a eternidade lavando aquele corpo, sem pausa, lavando, lavando, esfregando, e tirando dali tudo que dali é, e de repente, seu nenê era também água, água e espuma, perfumada. poderia aspirar seu nenê para dentro de si e levar tal amor primário assim, sem o peso de carregar um corpo, de aguentar um choro, uma tonelada de, eu já entendi, Senhor, entendi, aprendi, posso só levar comigo o sentimento e deixar para lá a casca, deixar para lá a matéria? e a mãe parava de cantar porque lhe vinha vontade de chorar, e o nenê sempre nessa hora também chorava, como a avisar, a punir, a chamar-lhe por seus dóceis carinhos, mas o bebê continuava mudo, boiava na água, perfumada, feito espuma, se desintegrava, e a mãe assustada, ria, desesperada.

agosto 22, 2011

amor de cheiro

pele e mucosa, pele, arrasta. arrastão-arrasta-não.
amor de cheiro, de perfume, de fumaça.
de cinza dos olhos, aroma de chuva na sua pele:
fizeste chover dentro dos meus olhos, castanhos
estranhos olhos seus, delineados de borra negra
respingastes dentro de mim, mucosa, pele, borra de café
café, limão, açúcar, doce mel onde não cria-se abelhas
colméia de ti, cachos de mel, enrolados entre si
entreabertos em mim, te desejo, te consumo
rugido de leão, amor de cheiro, de ronronar
juba de mel, amor de café, cheiro de chuva
sorrirei se o dia nublar, sorrirei se o sol sorrir
se qualquer tempo me faz sorrir, o seu me faz chorar
choro de chuva de verão, de longe ficar,
pele na pele, amor de pouco em pouco
e a chuva vem, e eu que tenho medo de me molhar
- e eu que águo e deságuo e desabo em ti:
rugir de tempestade, cachos de mel



agosto 07, 2011

língua nos teus

minha língua nos teus dentes, teus afiados dentes, meus. minha língua a desmanchar-se (em vermelho-vinho-vivo) desmembrada carinhosamente por teus. e em contraponto com todo o macio da boca (seus lábios me matam) e a gengiva salgada, sangrada, e a língua macia, desenvolta, a desenrolar em círculos, mas mais do que isso: teus, dentes. duros, pontiagudos, resistentes, em riste. ali por eternidades de vícios. teus. meus, dentes. ósseos, amarelados, calcificados. a tudo superam e a tudo trituram: ali, sem pensarem em ceder ou desistir, ali, sem bambolearem ou se desmancharem, ali, existentes, ali, enraizados, eternos. quero lamber tal eternidade de razão, tal tão concreta existência de persistir, tal coragem de permanecer. quero nos mínimos detalhes e orifícios esconder minha - vadia, lânguida - língua, descobrir, desvanecer, puxar do sulco ácido dos seus dentes críticos. e dos meus, nos meus, me espetar, me ferir e vermelho, e dolorido, doer. para então, estar, fazer, ceder à quietude daquilo que é, que está em mim, prisioneiro de, ficar. nos teus, me deleitar em fazer dos permanentes-dentes-de-leite. de leite, me esfalecer, nos teus. me encontrar, me encaixar e ali - ficar, língua nos teus dentes, ser, por tanto e em tanto, sofrer, quieta, e sempre, sentir. não mais sorrir, teus dentes, aqui, dentro de mim, e só, usá-los para mim, para me deliciar, para me provar da permanência do mundo como mundo, dente como dente, isso e isso. e então, dormir, com a língua dentro dos teus, dentes, dentro dali onde não se vê quando se sorri, dentro, do preto, do branco, do vermelho de dentro de um qualquer dente - o teu, que é meu. minha língua dentro de dentro dos teus, meus dentes.

julho 26, 2011

barbatanas e etecetera

veja bem, eu tive um sonho com você, um sonho não, isso realmente aconteceu, mas não, eu estava em um forró, eu estar em um forró já me vem cheirando à sonho, mas te digo que estava, e não estava, enquanto no forró fingia que dançava (o corpo bambaleando sem acompanhar ritmo algum) eu pensava em você, e também em

é que eu não sei como me controlar, eu não sei, eu sinto assim, AVALANCHE, assim, vem e me sufoca e eu acho patético, são sentimentos tão patéticos, mas me afogam, eu não sei mais, como fugir pensar que eu não sou eu, escorpião meu amor

então, você chegava no forró, neste forró que eu estava, você chegava e era maravilhoso você chegar, eu esperei a noite inteira você chegar, você veio, feliz coincidência, você veio, eu abri o meu sorriso, eu me sentei ao seu lado, assim rápido, estava tudo roterizado: há milênios que te espero e você finalmente veio

eu te falo assim, astrologicamente, acho um pouco pobre, literalmente, mas não estou em questões de literatura, apenas de te dizer, de um jeito um pouco menos lúgubre, que não soe rouco, triste,

triste, me disseram há um tempo que sofia significava tristeza, triste, triste, eu não levei à sério, me recordei disso hoje enquanto fingia que dançava e te esperava, eu não dançava, pura mentira, apenas balançava meus pés, sem propósito algum

eu escrevo assim, estou sob influências malignas d'o jogo da amarelinha, sabe? céu, terra, céu, inferno, um, dois, três, não sei

triste, sofia não era triste, nem um pouco, que besteira, eu lhe disse, com um sorriso triste, triste de verdade, mas era um sorriso, apesar de tudo um sorriso e não caretas, e não lágrimas, na verdade sua partida é que nos deixou triste, deixou tudo mais triste, um pouco mais triste, não percebe como o mundo ficou cinza depois da sua partida?

eu devia estar escrevendo isso no word, ou não sei, por que publicar, talvez na esperança que você leia

você tem que me entender: antes eu era triste, eu sempre fora, mas nunca soube o porquê, eram diversos deles, eram tantos desgostos, e ela se foi, e eu fiquei triste, realmente triste, de um jeito que eu nunca mais vou voltar, nunca mais entende? mas mesmo assim eu posso ficar triste, de um outro jeito, triste por você, você tem me deixado triste, desculpa, mas eu tenho sentido isso: tris-te-za, não sei, com z esse z, faz toda diferença, vê? diferente de an-gús-tia nenhum z, nenhum zigue zague que faz o coração doer, não sente o coração doer?

e depois disso você me olhou nos meus olhos, ainda tocava forró, ou não, porque no sonho se escolhe trilha sonora (se escolhe?) e depois você me beijou, foi incrível, você se aproximou, senti o calor, o calor e eu sempre quis, que você se aproximasse assim, desse tanto, então era tanto, era tudo que eu

eu acordei, na verdade, em pleno forró, acordei, ainda magoada com as suas, ainda triste com a partida, ainda ma-go-a-da, goada, de afogada, de aguada, plena água, é tanta água, você entende? tá tudo interligado toda essa água, toda essa água, dentro de mim, rebuliço, redemoinho, aguaçero, eu não sei,

você me ensinaria a nadar, mas vocês se foram, todos, todos vocês se foram

e eu não tenho barbatanas, meu amor, eu não tenho
eu tenho uma cauda (dizem que há veneno) mas eu não sei usá-la (ainda) eu não sei




o bairro-fantasma

era, por assim dizer, um bairo de classe alta. as ruas arborizadas, as calçadas impecáveis - nenhuma erva daninha saía entre as rachaduras do cimento, porque também, não haviam rachaduras. e as árvores, envoltas em cercas, bem podadas; não haviam primaveras e trepadeiras por cima dos muros, pois estas se esparramam sem métrica e, tampouco, se permitem alguma regularidade. via-se muito as quaresmeiras, espécie regular que pelo nome já se sabe em que tempo dá flores. o que condizia com aquele bairro: democrático-liberal, mas acima de tudo, cristão. pairava a cruz de sua grande e antiga (mas reformada) igreja, como Deus olhando todos de cima. mas não se via cultos ou outras igrejas que praticam os berros. aquele era um bairro do silêncio, do pudor, da prudência. via-se lojas espelhadas, vitrines de bom gosto, chocolaterias de bom senso, padarias com garçonetes bem vestidas. e as casas todas bem arrumadas, muros de tijolo à vista, portões eletrônicos, todas do bom gosto clássico, reformadas para atender à demanada tecnológica do tempo presente. na rua se viam poucas pessoas, sendo eu uma delas. via-se os guardas, guardando as casas e lojas e prédios altos, sentados em cadeira, em pé, ou om cabines próprias, uniformizados, olhando feio para todo e qualquer pedreste; se é pedreste, é de se desconfiar. passavam pelas ruas os trabalhadores (assim o sabia pelas roupas que usavam), eu (que nada sou) e idosos. imagino que os idosos há muito já moravam naquele bairro, e conservavam suas velhas casas escondidas - quase decrépitas - orgulhosos de não terem vendido seus terrenos para os prédios que a tudo engoliam, orgulhosos de não terem ido morar, como outros colegas de época que se achavam espertos, nas periferias da cidade. no, entanto, só isso, e era pouco, para aquelas calçadas bem cuidadas, retas, era pouco. e por isso, não havia qualquer sinalização para pedestres, me deparei com uma larga avenida ao sol (nem árvores haviam ali), imensos empreendimentos comerciais, espelhando o espelho da modernidade, tive que andar 100 metros ou 100 km para achar uma mínima faixa de pedestre que desembocava em um comércio (ou uma rua que te levava para fora daquele bairro). e os velhos, não sei, corriam pelas ruas, para poder atravessá-las. e o que mais se contavam eram carros, carros de alto estilo, por assim dizer, arrisco palpitar que os palios e kas eram de jovens, jovens empreededores com futuro garantido. imagino que dali pouco anos, uma última vez que tivesse percorrido o bairro a pé, não haveria quem pisasse naquelas calçadas tão impecáveis: os idosos morriam, seus filhos os terrenos vendiam, e tudo que passasse pelas ruas impecavelmente asfaltadas, as máquinas-supremas (carros, isolando o contato da rua por suas rodas de borracha). e não haveria, naquele bairro, mínima coisa viva que se mexesse, tudo seria reta e forma gemétrica, calculada por uma métrica progressista, os caminhos levando à razão (jamais voltas idiotas, dois caminhos para chegar a um mesmo lugar, praças redondas que roubavam espaços importantes), as flores milimetricamente calculadas, regadas automaticamente, as garagens subterrâneas, tudo para que se evitasse pisar no chão. e os ônibus - imaginem! - não haveria por quê ter ônibus, já que não teriam aqueles que deles necessitassem, seria um bairro cristalizado, digamos, perfeito em sua abóboda celestial. quem sabe, a tecnologia nos trará realmente uma abóboda que pareça céu azul e sol tranquilo todos os dias, evitando a chuva que escorre pelas ruas impecáveis e as estraga, trazendo custos imensos à administração municipal, além do bem-estar de quem ali mora ou, melhor, trabalha. e o bairro arredondado será então perfeição, o melhor centro comercial do mundo, com seus cafés e lojas de veraneio, tudo para ser olhado e consumado, com o melhor do bom gosto clássico. trará as maravilhas modernas, e os espelhos dos prédios não cansarão de refleti-las mostrando ao mundo todo (o mundo que merece aquilo ver, especificamos) multiplicado o valor da comodidade bem gasta e enumerada. e as ruas permancerão desertas, e o outro lado, quem sabe, será caos e tormenta, mas não importa, isso realmente não importa.

julho 22, 2011

então vai

porque ela parava, séria, e olhava para o longe, porque isso e porque nada dizia, e deixava os braços pendendo ao lado do corpo, e mais nada, nenhuma carícia e mais nada, como se eu não existisse, como se noutro segundo não estávamos aos beijos? porque isso que não se podia, que eu preferia que ela bebesse e não parasse, e não pensasse, mas que tudo que eu falo responde com murmúrios ou começa desembestadamente a falar de coisas que não importam - eu só queria aquele corpo bem junto do meu só isso - porque nem ela estava ouvindo o que dizia, dizia aquilo para afastar, me afastar, afastar aquele silêncio de que é feito dois corpos quando se juntam e porque quando ela disse que tinha que ir embora eu não fiz questão de dizer fica, fica um pouco mais, comigo, fica eu te faço sorrir, fica, eu não quis dizer porque não sei se posso, se poderia fazê-la sorrir, se teria que conviver com aquela distância do olhar, como um quê de insatisfação daquilo que nem sequer começou, da descrença e da apatia, ou do não-sei, de tudo que me mina, me faz baixar a auto-estima, e eu, pobre de mim, que já a tenho pouca, que toquei nas suas mãos com as minhas tremendo que não tenho coragem de abrir os olhos quando a beijo, eu, pobre de mim, não poderia, então vai, vai e leva tudo isso, leva com você, já que é seu, já que insiste em dizer que é assim, que nasceu assim, vai e me deixa, me deixa a perguntar, sozinho, o que eu fiz de nós, se é que existe nós,

são os nós, querido, são os nós, aqui dentro, nós, nós no estômago, na veia cardíaca, na artéria, nós, que me impedem de respirar, nós, nós nos dedos, nós, são os nós, querido

julho 18, 2011

costurando

eu estou aqui - costurando. estou aqui, sozinha, te esperando. estou aqui, a linha e a agulha, na mão, aqui, sozinha. lembra-se de quando você me deixou aqui? lembra-se de me deixar aqui, a costurar? deu-me linhas, agulhas, uns novelos de lã. os novelos de lã espalharam-se pelo chão, embolaram-se. as linhas, mal sei, costuro sem nem ver. entrelaço uma a uma, sem saber, e o que tenho em mãos, são nós - só nós muito bem embolados e costurados uns noutros. nós que não podem ser desfeitos, jamais, nem pela fúria dos seus dedos. nem pelo aço das suas unhas, dos seus dentes. os nós sobreviverão, as linhas entrelaçadas aos meus dedos. fico a olhá-los - você se lembra dos meus dedos? - são finos, magros, brancos, feito uma vela de cera de sete dias. eles estão a queimar, lentamente, por todos esses sete anos, vão se finando, sem deixar rastros, se acabando entre as linhas que neles costuro. não são mais dedos, tampouco velas, por pouco são linhas, também são nós - e tampouco ganharam cor, a miscelânea de cores sóbrias que você me deu transformou-se em não-cor. tampouco sei o nome das cores, o nome das coisas. esqueci pouco a pouco, pois estive sozinha e sem quem falar. conversaria com as linhas, estas traiçoeiras linhas que me costuram, conversaria com as agulhas, estas amargas agulhas perversas que arrancam dos meus dedos sangue? deixou-me a costurar, e não deixou-me mais ninguém além da sua lembrança, e a sua lembrança, também desfeita, nem uma fotografia eu pude ter, o que eu tenho é uma certeza, ainda que vaga e consumida certeza, da sua volta, de que um dia você aparecerá para me doar o amor que me prometera. lembro-me que me falava de guerra e horrores que eu não podia ver, de coisas que eu não podia saber, tudo que eu deveria saber é o que fazer com aquelas linhas, aquelas agulhas, aqueles novelos, você disse, costure que eu volto logo. eu volto para te buscar. eu estou aqui - te esperando, costurando, eu continuo, costurando, pois não tenho mais nada. tenho medo de ter que costurar os braços e as pernas para esperar ver você de novo - e como você se parecerá? terá barba, brilho nos olhos, serão castanhos? virá sujo, virá nu? devo cobrir-lhe com esse nós que agora costuro? olho desesperada para eles, pois não te servem como roupa. choro compulsivamente pois não posso te ajudar. tenho medo de ter sido resignada somente a costurar e falhar também a isso. mas é que - me entenda - passo por grandes períodos de desmemória, de grandes brancos, vazios, e tudo que faço é costurar, por aí, costurar, sobre minha pele, indolor, sem enxergar, costurar. também não durmo, não durmo desde que você partiu. tenho medo de adormecer e você por aqui aparecer, e me encontrando assim, tão fina e pálida, adormecida, ache-me como morta, ou então, só por eu ter dormido - e não ter costurado e costurado - você vá se embora, decepcionado. já não me importo, já não sinto falta do sono, sinto um cansaço, dormente, nas pernas que formigam, nos dedos exaustos, nos olhos cheios de dor, mas tudo bem - tudo bem enquanto que eu costure e te espere, tudo bem. que eu tenha a esperança da sua volta, tudo bem, que quando voltar olhará para as linhas, e para o meu estado senil - ou só doentio - e ficará satisfeito de saber que te obedeci, que passei os dias todos costurando, sem trégua, costurando, eu aqui, costurando. é tudo que me resta, agora, é tudo que me restou desde que você partiu e é tudo que me é caro e por isso vivo e continuo, costurando, costurando, costurando.

julho 17, 2011

heartbroken

hei de expulsar, daqui
o meu medo de amar.

por isso te busco: te busco em cada olhar.

hey, i'm ready to be heartbroken.


julho 11, 2011

seis gatos e três cachoros

tinha seis gatos e três cachoros. cachoros assim com um r só, porque ela falava assim "meus cachorinhos", fazendo o r vibrar na língua. gostava de números exatos, como três e seis. por isso, quando a cachora ficou prenha, deu todos os filhotes. se ficasse com um, por mais chucochuco que eram os cachorinhos - rosinha, de olhinho fechado, se contorcendo igual uma minhoquinha - teria que adotar outro gato. e era bem certo que os gatos já reinavam ali. se a visitasse sem avisar, ia encontrar a velha mascando a própria língua, sentada no sofá carcomido, e em volta dela, os seis gatos - um em cima do encosto, outro no pé dela, outro na barriga, outro no braço, outro em cima da tevê, e outro no buraco do velho sofá - era tanto gato que mal se discernia a velha. quando chegasse, todos eles que fingem que dormem e ronronam só para não deixar a tv fazer ruído sozinha, iam abrir os olhos brilhantes, estáticos, viscosos. olhariam desconfiados, atinados, arrepiados. o preto logo ia mostrando os dentes, arranhando um r horrrível, mostrando as unhas afiadas. e ela batia três palmas, gritava em alemão e os gatos fugiam que nem mosca. num instante, e só havia a velha com aquele sorriso amarelo. até o preto fugia. e os cachoros, coitados, eram escárnio. tinha vez que eu achava que estavam ali para que os gatos pudessem maltrata-los. eles eram todos arranhados, meio sem pêlo. é que a velha deixava crescer as unhas dos gatos. e as pulgas comendo o couro dos cachoros. eles vinham andando, os três com aquele olhar de cachorro, que já é meio triste, vinham andando obedientes, como quem tem medo de pisar muito forte no chão. a velha chamava o cocker para subir no sofá e ficava fuxicando o pêlo do cachorro. dizia "são meus companheiros, todos eles." sorria. o cocker ronronava, assim como os gatos, de gratidão. fechava as pálpebras. "os cachoros gostam de mim, ah sim! gostam mesmo." e depois disso, ela o espantava e limpava, sem jeito, os pelos do sofá, que já era imundo. tinha um monte de bichos porque só assim podia-se viver. se tivesse paciência teria mais aquários, mais gaiolas, mais viveiros. a parede era entupida de um monte de coisa inútil, tapeçaria carcomida, quadro de uma árvore com flores roxas. "de quem é esse quadro?" ela balançava os beiços, ignorante. parecia que não gostava de memórias. era velha, mas sua casa tinha uma porção de coisas - como são as casas das velhas - mas umas coisas que pareciam simbolizar nada. tinha a foto de uns netos, da família, em porta-retratos empoeirados. mesmo as fotos pareciam não simbolizar nada. mesmo as violetas, quase sempre verdes, quase sempre floridas, não traziam qualquer sentimento. ela olhava, cansada, ao longe. a casa era pequena, mas ela sempre olhava longe. deve ter sido uma alemã loira, branca, mas os olhos não eram claros. eram qualquer coisa, qualquer cor, mas não eram claros, traziam dentro de si um escuro, um indefinido. eram pequenos. grandes eram as olheiras, marcadas, em volto do olho. quando se olhava para seus olhos, era mais para olhar aquelas olheiras, aquelas marcas profundas, os rasgos da velhice. os olhos se tornavam também um rasgo a mais, um rasgo de velhice. porque, de uma maneira ou outra, eles só podiam ser rachaduras, nostalgias, poços de memória. ela falava nada, deixava que as marcas falassem por si. tinha traços fortes, de alemã, uma boca grande e marcada. abria a boca para dar risada. sua risada era alta, esgarçada, cheia de rrrs estridentes; era latida, uivada. ela vinha, ás vezes, sem motivo, não porque era louca, mas porque não havia mais motivo para rir daquela maneira. porquê ria, eu não sei. talvez para espantar. espantar os outros, as moscas, o pó. o bolor que tomava conta de tudo. tudo era verde, cheirava à naftalina. e reclamava. reclamava tudo que não podia - era o que sabia, reclamava. ansiava, reclamava e dava ordens. mesmo sem ter para quem dar ordens, dava. comandava o pelotão deserdado dos seus filhos e dos seus netos. todos assentiam, cansados. alguns ainda se revoltavam. e ela gritava. gritava tanto que todos os objetos vibravam, objetos sem valor algum, quase explodiam. e por isso, tinha seis gatos e três cachoros, falava. o grito que desse, a risada que fosse, a louca que se tornasse o cocker ainda a olharia com olhos de piedade. e o gato preto ainda a vigiaria de noite, com os olhos brancos. e o siamês ainda passaria sua orelha na orelha dela. e à menor ordem que desse, eles obedeciam, sobressaltados. e somente à ela, obedeciam. aos outros, era o inferno. os netos pequenos sofreram mordidas, arranhadas, sustos. um filho que a importunava fora expulso quando ela mandou seu pelotão de animais dar um jeito dele. mandou assim, em alemão. e todos foram, treinados, cães e gatos contra o inimigo comum. o filho nunca mais voltara e ela e os bichos achavam isso bom. os outros filhos, agora, tinham medo dos bichos. e ela sorria, feliz. sorria porque os tinha, e porque eles a entendiam. ela falava em sua língua natal e eles ouviam, resignados, porque só isso podiam. e isso era amor, porque só isso podiam.

junho 28, 2011

redondos

você tem uns olhos fundos, pretos, redondos. tão perfeitamente redondos.
uns olhos que tem um não sei o quê que chamam para dentro, cada vez para mais fundo
fundo, fundo, fundo e infinito: anda-se por todo lado e só se vê esse seu escuro lacrimoso
fundo, fundo, fundo, não acaba mais, arredonda-se, acircula-se, e de baixo, também estou em cima
assim arredondado sem hierarquia: cava-se, cava-se, cava-se e não se chega; não há fim
espaço-tempo arredondado, quieto, me chama, me crava, e daqui mal posso sair
se me achego aos seus olhos pretos, confortáveis, serenos, não há como escapar
ali queria permanecer, eterno como por dentro ele é, arredondado em posição fetal
e meu círculo corporal então, se fecha com o círculo vicioso do seu olho letal
e assim, de tanto e pouco, que o tempo passa sem importar, que eterno seja seu arredondar

junho 10, 2011

subjuntivo

quisera que só de me olhar você me quisesse. que fixasse seus olhos ágeis em mim, que se demorasse em minha imagem, que escolhesse em mim o que mais te provoca. que me disesse, entre um riso entrecortado. e que tampouco eu precisasse responder, nem mesmo reagir, que fosse possível só te olhar, e desse olhar você pudesse extrair meu desejo. meu desejo interno é convulso e hiperbólico. fica aqui, reprimido no meu próprio corpo. quisera que só de me olhar você puxasse de mim essa vontade. te juro que é insaciável, uma sede imensa - uma sede de anos. e que no meu corpo você ficasse, o quanto quisesse, perdurasse, e que tudo o mais seria o seu: sem mais mistério então. e que mesmo assim você encontrasse mistério no abismal dos meus olhos. e que neles demorasse a se adentrar, um pouco receado. receio também me afeta, me alimenta. e nesse intervalo, então, eu já me contorceria toda: seria só sua sem mais. e que desse nosso olhar o mundo se extinguisse, nada mais existe, então. exitngue de mim esse desejo e junto do desejo, o mundo. se não desejo, não há porque haver resto de mundo, meu bem. e não é que chegamos ao fim: seria só o início.
mas que mais não posso te falar, não assim. queria mesmo é que você me olhasse, e só assim, eu já me sentiria um pouco mais aquecida. e só assim, eu poderia te olhar de volta, aceitando sem pestanejar o abismo do seu ser. em mim há espaço para tudo: espaço para seu choro escondido, sua solidão, espaço para seu amor piegas, espaço para seu tesão afoito. te dou todo o espaço que em mim habita para que você possa me preencher. me preencher sem escolher, de todas as maneiras, de todo o seu ser. e tendo todo o seu ser em mim, agora preenchida, quase sufocada, eu arderia. arderia para você, a qualquer momento do dia. e enfim, sorriria.
bastava mesmo que você me olhasse - com toda a vontade - e se achegasse, sem me deixar aflita de alguma desistência. queria mesmo que você fechasse os olhos e desse penhasco se jogasse - lá no fundo a água é gélida mas te espera. e a correnteza te levaria, leve, por onde você quisesse. prometo todo o meu amor, por fim, se é capaz de me olhar. e tão narcisa sou eu, a querer que você se aproxime primeiro, a querer que você se apaixone pela minha imagem (e tão só minha imagem, nada mais) que depois viraria pó: me humilharia, pequena, te daria mundos e fundos.
por isso perdoe minha vontade enorme que você se cole em mim. perdoe minha resistência se você não vem, com toda a certeza. perdoe minha tristeza se você não fixa seus olhos - de uma vez por todas - em mim. se você não quer, tudo bem. tenho vivido razoavelmente bem, sem grandes entregas. mas se você me olha assim - meio de lado, meio querendo - minha alma ambiciosa sacoleja desesperada, então perdoe se eu te escolho sem saber - juro, sem saber - e se dessa escolha eu espero, e enquanto espero só sei começar minha escrita no subjuntivo. subjunto o seu desejo, petrifico em mim o seu começo, me delicio se te imagino, triste fico porque não é isso. por isso, quisera. quisera que só de olhar você me quisesse - no meu desejo, mal vejo solução: veio junto dele o pessimismo gasto, a possibilidade inerte do não. sempre, do não. e fico aqui a contar, para me dispersar, porque assim, não sei me expressar. e as palavras já vão se acabando (elas já estavam se acabando no segundo parágrafo), já vão se rareando, se encolhendo e a vontade de dizer fica mínima, a inventar firulas, palavrear apenas para embelezar. embelezar o terrível de estar sozinha e fingir, assim, que meia dúzia de palavras decorativas serviriam para enobrecer a dor já velha. a dor inata. já vai se acabando, e eu sinto mais vontade de contar. contar não sei o quê, mas ao terminar resta-me eu mesma e minha mesquinharia, meu egoísmo, meu narciso, espelho, resta meu desespero calmo, minha falta. resta eu mesma que pouco me aguento - e se você me quisesse, talvez pudesse comigo dividir o fardo de tudo isso sentir. mas e se você me quisesse...
não mais agora.

maio 30, 2011

sono

espreguiçou-se sem cerimônia, alongando todo seu corpo peludo e laranja. queria era mesmo deitar-se confortavelmente em qualquer lugar fofo e quente, como um pouco de terra revirada sob um sol de inverno constante. olhou sem esperanças pelas possibilidades que o entorno lhe oferecia: concreto duro debaixo de um sol atravessado ou, um pouco mais longe, terra pisada sob sombra. ronronou baixo de infelicidade, achado que era muito estúpido o chão todo ser duro e firme. andou preguiçosamente, pate ante pata, até a faixa de sol em diagonal e tombou seu corpo miúdo docemente, com preguiça até de se ajeitar comodamente. dali, via o mundo como uma faixa horizontal e diagonal, em que terminasse na altura média das casinhas mal pintadas. triste seria o mundo se não tivesse por cima colorindo-o um céu azul. e triste era quando o céu se agoniava em cinza. e eram tantos os tons médios e cinzas daquele concreto, dos tijolos laranjas das casinhas, do lixo amontoado no chão, do mato que crescia sem ordenação e que de verde pouco tinha; que certo estava ele em amar a noite onde tudo eram sobretons. a penumbra lhe permitia colorir o mundo ao seu querer. e bonito era o mundo visto de cima dos muros e telhados, onde podia divisar as antenas de tv se equilibrando tortamente, os imensos varóis de roupas balançando loucamente com o vento noturno, e os pontos de luz lá em cima que cintilavam e faziam da sombra escura, prateada. ronronou feliz com a lembrança querida da noite que chegaria, e quis fechar os olhos para esquecer de uma vez que aquele dia de sol se prolongava infinitamente e tudo o que tinha a fazer era esperar. mas o sono se achegava insistente e todo o seu corpo já estava aquecido e pronto para entrar no submundo de sonhos de meia-luz. miou baixo, como querendo fazer agir a boca para que não caísse na armadilha daquele sono invencível, mas logo terminou seu miado que a boca permaneceu um pouco aberta, sem coragem de fechar. o sono era um ser carinhoso, que chegava devagar, cheio de carícias maternais, sussurrava no ouvido um tantos de ssss que era quase uma canção de ninar. sentia imensa paz dentro de si, e até o barulho dos meninos jogando futebol na rua, dos mosquitos irritantes que faziam sinfonia ao redor daquela bola de pêlos suja da rua, e até um ruído áspero que o lembrava de uma ratazana nojenta não o incomodavam mais. o sono ia baixando o volume do mundo, tudo fazia para se penetrar na vítima pretendida. e o sono, um ser disforme e escuro, tampou-lhe o céu quente e tudo ficou em penumbra, o dia tornava-se noite, a noite preenchia sua natureza felina. mal a paz se instalara completamente e seu corpo imóvel quase não se via movimento, sentiu ser sacudido violentamente. pressentindo o perigo do seu corpo, quis acordar, mas não pôde, achou então que o sono lhe pregara uma peça com pesadelos, quis chorar baixo de vergonha da sua burrice, agora seu corpo estava todo doído, todo o escuro chacoalhava-se, e não havia pontos de luz para iluminar. sentiu sua costela partindo-se, as patas de tão doídas, amortecidas, e do lado esquerdo da cabeça sentiu um líquido quente escorrer. chorou o tempo todo em silêncio pedindo por favor ao seu sono, que parasse com tal pesadelo, que estaria mais esperto, que não mais se entregaria facilmente, que até aprenderia a amar o dia. e o choro foi tanto que ouviu seu próprio mio longo e desesperado, ou seria, então, de outro gato? de repente, o escuro ficou mais denso, mas o mundo tinha se estabilizado, não mais chutado para todas as direções sem o mínimo cuidado. ficou uns instantes a acostumar-se com aquilo, um escuro denso e calmo, muito calmo, sem som nem cheiro algum, tão mas tão quieto, que lhe dava desespero semelhante à loucura do outro. quis dali sair, quis então acordar e poder ver o céu azul, o lixo colorido, até o concreto das ruas, a transparência da água que beberia, quis abrir os olhos e ver tudo de novo, maldizendo o pesadelo, mas não mais conseguia, por mais que tentasse, os olhos por vez de todas não abriam, e a boca não abria-se, e nem miado conseguia mais emitir, e demorou um tempo para descobrir que tampouco respirava, e foi quando se deu conta de que o sono tinha o levado de vez para seu próprio mundo, o de sonhos sempre em penumbra sem sol nem dia nem noite: apenas tempo infinito e igual. nunca mais a rua, nunca mais a roupa tremendo, nunca mais a brisa noturna, as estrelas sorrindo, e também nunca mais a fome, a sede, nunca mais ter que fugir das ratazanas e dos meninos malvados.
no meio da rua, jazia dentro de um saco um gato laranja e peludo, e ao longe corriam meninos com paus de madeira, rindo desgraçadamente para, mais tarde, só conseguir chorar.

maio 17, 2011

mar e sal

se esvai-se em areia por não saber que ama, meu amor, não sei, esvai, de quando em quando, sem saber como, em grande quantidade, água, talvez, água salgada, com certeza, se o seu é areia, o meu é mar, sem dúvida, e mar morto sai, sai de mim e invade tudo: tudo e tudo e tudo desmorona, tudo e tudo e tudo cai, tudo está destruído então, NÃO não eu não vou deixar ele sair daqui, eu não vou deixar você ver, eu tenho vergonha disso: sim, eu tenho vergonha, eu tenho dó de você, eu não quero assim, não quero te ver aos pedaços, destruído, eu não posso: eu tenho vergonha da intensidade que isso sai de mim e eu preciso parar, eu preciso barrar, não! e quando mar, amor, sai, e se sair, e se invandir, e se nossa cidade, e se nosso lugar (nossa cama) for esse meu mar, então, o que você fará? e se você for embora, sair de mansinho, espantado, e se você tiver medo de tsunami, e se você não aguentar, e se não quiser, eu não posso te obrigar a, e eu vou chorar, eu vou chorar, eu vou chorar, ah, eu não quero mais chorar, eu não quero mais sentir dor, eu estou cansada. se você não quiser nem que seja um pouco de mim, do líquido oblíquo dos meus olhos pretos, meu amor, eu vou me transbordar, e não é amor: é só tristeza em si imensa e azul-turquesa; e eu não posso deixar essa tristeza me transbordar, porque eu posso morrer, morrer afogada, amor, mas então, se eu nunca vou deixar sair de mim esse mar, esse mar que aqui persiste embora não transborde, eu vou morrer de qualquer jeito: vou morrer afogada por dentro, sufocada por si, e eu não sei, amor, mas talvez assim seja melhor, para nós dois, para nós três, para nós seis, porque assim só eu morro, e lentamente, e enquanto isso vivo, e na vida, finjo que amo e que gosto disso.

maio 08, 2011

como sobreviver às faltas

como sobreviver às faltas, como repirar concomitante com a ausência, como? como é que meus pés andam e meu coração ainda bate e meu sangue corre lépido se eu aqui me sinto tão morta por dentro, se você não está aqui para me fazer sentir viver. como é que eu tenho cor na face, como é que meus olhos percustam rápidos o mundo e param reflexivos sobre sei lá eu o quê se o motivo do que vejo não é você? como é que eu sinto frio, puxo o cobertor e fecho os olhos para dormir, se dormir, tanto faz, se frio ou calor, tanto faz, como é que eu ainda posso sentir, como é que eu ainda posso arrepiar, se não for você? e por que é que eu acordo, por que não um sono eterno, por que não sonhos fantásticos, porque minhas pálpebras abrem, obrigadas, e a mente sã começa a funcionar - racionalmente - se minha alma entristece, pequena, sem motivo para se livrar. como é e por que é que os dias passam tão rápidos, e o tempo se distancia do tempo que você esteve comigo, e já são quilômetros de minutos, e eu não sei o que fazer para parar no meio da estrada e impedir que você fique tão distante que eu não consiga não mais observar a sua sombra, um pouco de você, o seu resto desfocado, o seu riso entrecortado. como é que faz para parar essa gigantesca máquina do tempo como é que faz para congelar minha memória, meu eu, meu corpo, como é que faz para voltar ao tempo, correr livre por essa estrada, sem amarra, como é que eu me livro disso que é terra que é chão que é fio que é fixo, estável, real, como é? como é que eu flutuo tão leve quanto você, me deixo ser brisa, como é que eu seja só sopro e possa te encontrar e te ter no hálito do seu riso, como é que eu volto ao seu entorno e fico, como é que eu páro essa esteira mecânica que me leva sempre para frente e para frente e para frente. eu tenho medo do que há pela frente, tenho medo de correr assim, pra esse horizonte sem você, tenho medo de te deixar muito longe, tenho medo de me esquecer, me perder, perder a cor dos seus olhos que já é tão minha, que de azul eu me torne, talvez, violeta, e então, violeta, eu não saiba quem mais sou eu que lugar é este, afinal? por que eu não paro, por que eu não estagno, por que eu não estou no vazio, por que há de continuar por entre tantos prédios casas lixo, rua asfalto cinza, verde árvore, flor, e meus pés não param nunca e meu pulmão enche e volta e meu estômago rumina e eu continuo a beber água a comer comida a sobreviver. como é, como foi, por que assim, como sobreviver à morte, como sobreviver em vida, como é?

maio 07, 2011

amor

desafinado
define-se
se definha
em mim
destina

abril 19, 2011

deixa eu te amar

oi, deixa eu te amar? me dá seu nome, seu endereço, sua infância; eu vou engolir tudo. eu vou engolir tudo aquilo que você pretende significar. deixa eu me acolher nos seus ombros, deixa eu saber a cor dos seus olhos. deixa eu te ver bem. espremer os meus olhos até que sua imagem tremida fixe colorida. deixa eu ter de você a impressão real que me custou te olhar. deixa eu te pintar. pintar todos os seus sonhos, céu cor roxa, flor de azevinho, veneno barato, barata no ralo. conversa aqui, conversa ali, deixa eu te conversar? te converter em mim, deixar de ser eu, ser apenas você. deixa eu ter a imagem que fiz de ti, o sonho que me fez acordar. deixa eu te dizer, clichê, romantismos que golpeiam o ar. deixa eu soletrar seu nome, que já me parece tão confortável à minha dicção. como se ele estivesse sempre na ponta da minha língua, só esperando para ser dito. deixa eu te roubar dos braços daquele que te fez, e tanto me fez, para por nós mesmas, nos fazermos. deixa eu conhecer cada pedaço do seu corpo, que me parece já íntimo, seu toque, deixa eu me surpreender com sua ferocidade. ou com sua opacidade. qualquer uma que seja você eu já me apaixonei. a paixão pouco escolhe cor e sabor, há de ser você nazista ou humanista; a paixão se deleita em pequenos espaços vazios. vazios onde você possa preencher, com cor ou de cinza, ou de branco ou de preto, ou de nada, se prefere, vazios onde você ocupe, deite-se, enrole-se, englobe-se. eu tenho um tanto de vazio aqui dentro, esperando por você. deixa eu te amar, e para tanto, deixa eu te conhecer. ame-me para me deixar. mas primeiro, amor. antes sem nem saber o timbre da sua voz: amor. amor em todas as escaladas, flutua e encaracola, rodeia em insensatez, desvaira e silencia-se. amor todo meu. para ti, se me deixar entrar. deixa eu te inventar, em mínimos detalhes, deixa eu te fazer: criatura. cria de amor sereno, cria de tempestade. atura-me em melodias, atura-me se te acaricio por demais: escultura. te modelo para tornar-se apalpável, e enquanto amasso e desfaço, já te amo e te admiro; te enterneço, estremeço, arrepio. e te faço, por amor. e me enlaço, por desejo. e te peço, obediente: deixa-me te amar, mesmo que em ti contenha apenas minha subjetividade tardia. te amo por aquilo que não crio racionalmente, e sim por aquilo que me cega. deixa eu te amar, como você bem quiser. deixa eu te fazer feliz, por um instante só: deixa eu te provar.

abril 16, 2011

meia-calça

a primeira vez foi no cinema. dora escorregou seus dedos práticos, unhas pintadas de marrom café, unhas bem feitas e arredondadas, de certa maneira podadas para o devido ofício. escorregou-os até a pele morna da menina descobriu que morna era porque usava meia calça, dessas cor de vinho, por cima uma mini-saia, dessas bem mini. dora olhou para a cena que se desenrolava à sua frente, olhos verdes de menina perversa, close único, que cor seriam os olhos daquela menina, quando se excitava? achava estúpida aquela meia-calça, no caminho entre os dedos dela e a pele da menina, que cor, que gosto, que textura teria? beliscou a perna dela afim de vir pele junto, quis morrer, quis morder. a menina assustou-se irriquieta e expulsou os dedos caninos de dora. voltou seus olhos - eram claros ou esse efeito vem da tela? - bravos, mas estúpidos, quase songo-mongos, para ela. dora já se indeterminava: que besteira vir até ali, ver aquele filme que mal lhe interessava, discurso pronto na tela, dora se comia, ali estava para ali estar. e quando a menina do filme, uma morena de olhos verdes, vistosa, fica nua na praia, morena, os bicos dos peitos excitados, dora olhou para a menina: morena era também; quis saber se os bicos também eram assim, pretinhos, e que já que já estava ali, valia a pena se esforçar pelo olhar de songa-monga. que fosse songa-monga de tesão. dora se aproximou devagar, encontrou a mão da menina muito perto da sua, apalpou seus dedos. tinha dedos curtos, parecia muito bonitos. ficou a apertar os cilindros, massagear, enroscar; queria logo mordê-los, arrancá-los, comê-los, mas conteve-se quieta, viu a menina se remexer, agora, então, se remexia um pouco com a virilha, dora sorriu no escuro; dentes amarelados mas que brancos são no cinema, só porque roubam a luz que sai da tela, como uma alegria explosiva. dora acariciou os braços, sentiu a temperatura da pele: lhe parecia boa, pois sim, quente, quase-lá, passou as unhas pelos braços e sentiu a menina tremer na cadeira: então a songa-monga não era songa-monga. dora queria sorrir mas tinha medo da reflexão, já encostava uma perna sua na outra fazendo roçar a calça jeans - sempre a calça jeans - e pouco já se importava com a menina; agora o contrato fora feito. dora desceu agressiva com os dedos, as unhas marrom café na meia calça vinho, quiçá era arte, mas pouco se importava para essa cor superflua: lhe interessava a cor dos olhos dela quando ela os revirasse. e dora foi entrando com a mão por debaixo da mini-saia, encontrou a calcinha, quiçá era preta, de renda, e lá esticou seus muito bem seus longos dedos, e com meia-calça e com calcinha enfiou os dedos sem misericórdia, e achando tantos obstáculos, e achando que a menina sentia-se especial em inventar obstáculos no meio do caminho, levou consigo todos eles, levou pra dentro e fundo, levou sem piedade. e a menina, coitada, se contorcia na cadeira do cinema, sabendo que não podia se contorcer, não se sabia se era choro ou orgasmo, ela abria a boca e nada dizia, abafando a dor ou o tesão, afinal, que eram o quase o mesmo: o mesmo grito, ao menos. e dora ficou encantada pelo jeito que ela lutava consigo própria, com o não poder evadir, que enfiava mais e mais, quase chorosa, dora também se lamentava de não estar onde deveriam estar, olhava desconfiava para a morena dos olhos verdes do filme, sabia que ela as olhava e reprovava, ela fazia sexo com um loiro aguado, dora aproximou a boca da orelha da menina, isso era, em tese, proibido, mas o que era tese numa hora dessas? mordiscava a orelha dela enquanto ainda trabalhava e a menina quase choramingava, abria a boca cada vez mais e mais, ofegava, do seu olho saía água e dora viu com seus próprios olhos, como os olhos dela eram verdes, e dora sentia até pena, pena de si e dela, e olhando de soslaio para a morena fazendo sexo na tela, anteviu o intervalo: grita agora, menina. e o grito dela saiu junto com o da morena, um grito de desabafo, não tão longo nem cinematográfico, ainda contido, meio desacreditada no que a outra lhe dizia, mas sem poder escolher outra trilha. depois do grito, os olhos verdes tornaram-se outra vez castanhos e songo-mongos e pairaram quietos e baixos para onde estivera a mão da dora, olhos úmidos, boca seca. dora sentiu dó dela, tanto esforço, tanta energia e agora a menina, em plena juventude, seria invadida por uma terrível sensação de vazio e de melancolia, de irrelevância, de placebo. na maioria das vezes dora preferia que as meninas sentissem tal energia, tal fim abrupto e seco, mas por aquela menina ela sentiu uma tanta de piedade, sabe-se lá porquê, e dora mordiscou seus lábios, que eram gordinhos, eram gostosos. e dora ficou a mordiscar aqueles lábios, sem conseguir parar, certo descontrole que ela desconhecia, mas que se deixava levar, deliciada, pelos seios daquela menina, pelo jeito que ela passava a língua devagarzinho pelo lábio de dora, de um jeito que nenhuma outra tinha coragem. dora estremeceu: o que faria com essa menina? e, racionalizada, perguntou-lhe, fazendo-se de irreverente, baixinho: por que vieste de meia calça? e a menina, no mesmo tom, lhe disse baixinho: porque avisaram-me o que você fazia. e mesmo assim você veio? e a menina pairou com os olhos songo-mongos castanhos pelo rosto de dora, pairou melancolicamente, porque a melancolia sempre vem, se não vem do sexo, vem do sentimento, do início e do fim e do meio de qualquer coisa que exista. a menina não disse nada e dora entendeu, ou fingiu que entendeu, mais tarde elaborou pensamentos cínicos, até pensou em românticos, mas na hora só olhou aqueles olhos, que tinham um quê de indecifrável, uma vontade de chupá-los para que eles nunca mais voltassem a olhá-la daquele jeito. a menina sorriu constrangida e tirando a mão do escuro (porque tudo o mais era escuro, quando não se tateava): você furou minha meia-calça.

março 27, 2011

pode vir quente

Pode vir quente que eu estou sofrendo. A frase saiu assim, sem querer. Era para ser superior: mas na hora, a sua língua toda se embolou. Fervendo, não, não sei. Era claro que as outras meninas pareciam fervidas, elas fervilhavam, pipocavam, rebolavam - verbos tão usados, então. Fervendo, não, não assim. Só se for fervendo de dor, fervendo de febre, assim, desse jeito: 40 graus, suor, frio e delírio. O delírio de estar fervido. Fervido como estático, de não estar em movimento. Por isso parecia-lhe mais simples dizer sofrendo. Dizia-se logo de cara o seu estado, e não há de se enganar ninguém: ela não estava ali como as outras, para ferver de quentura, de delícia barata, de prazer instantâneo, miojo lamen. Três minutos não lhe era suficiente, nunca seria, pensava. Cozinhar, a fogo lento, paciência. Gostava de ser cozinhada, de ser absorvida. Não era possível ser só isso e pronto, era preciso entrar a fundo. Que tentassem penetrar no seu fundo. Ela fazia cara de quem garantia a pena. Pena, no caso, como pagar pena, sacrifício. Gostava disso, dessa palavra, sacrifício. Parecia vir acompanhada de uma cruzada profética, de promessas pagadas, de auto-mutilação. Não sorria, nem fazia caso, não veio dotada de ironia, nem mesmo de senso de humor. Fora feita para a literatura rebuscada, para o barroco de contrastes. Das metáforas, mas não das antíteses. Não é possível diminuir, como não é possível ferver. É possível sofrer, e sofrer de âmago, de grandes hipérboles. Eis sua linguagem favorita: hipérboles. E antes que chegue à fantasia, não: queria hipérboles reais. Concretas, gigantescas, de olhar e fazer chorar. Chorar. A única sedução que lhe interessava era a dor. Achava que bonita era quando sofria. Posicionava-se na cama, nua, os mamilos escuros arrebitados, a fotografia em preto e branco, a boca delineada pela dor. Nos olhos, uma vastidão de inferno e de masoquismo. Assim, só assim era passível de ser admirada. Estática, como numa pintura, porque melhor assim que em movimento, como no cinema. Cinema é tão ferver. Queria o tempo necessário para sentir, para elucidar, para hiperbolizar, fazer crescer no outro a dor que era dela. Não era possível sofrer só, era preciso trazer dor ao mundo. Era todo construído na contradição e na dor, o mundo, mas as pessoas continuavam a viver como se não. Rebolando, fervilhando, pipocando, trepando, dormindo. Tão simples. Não aceitava-o, não podia: na sua essência, desde menina, havia escolhido sofrer. Não escolhido, aceitado. E tão natural era cantar "pode vir quente, que eu estou sofrendo", apostava, em dó ré mi fá e sol, que todas as vozes que cantavam o contrário, por dentro choravam. Tinha se determinado como retrato do que não se quer ver; o contrário de Dorian Gray. Fazer de si mártir, Jesus Cristo, negra escrava. E, sofrendo, apaixonava-se e, sofrendo, morria de entrega, morria, morria toda vez que gozava, morria toda vez que via a morte se aproximar, morria toda vez que sofria, e junto com o sofro, o gozo. E, assim, vivia.