julho 11, 2011

seis gatos e três cachoros

tinha seis gatos e três cachoros. cachoros assim com um r só, porque ela falava assim "meus cachorinhos", fazendo o r vibrar na língua. gostava de números exatos, como três e seis. por isso, quando a cachora ficou prenha, deu todos os filhotes. se ficasse com um, por mais chucochuco que eram os cachorinhos - rosinha, de olhinho fechado, se contorcendo igual uma minhoquinha - teria que adotar outro gato. e era bem certo que os gatos já reinavam ali. se a visitasse sem avisar, ia encontrar a velha mascando a própria língua, sentada no sofá carcomido, e em volta dela, os seis gatos - um em cima do encosto, outro no pé dela, outro na barriga, outro no braço, outro em cima da tevê, e outro no buraco do velho sofá - era tanto gato que mal se discernia a velha. quando chegasse, todos eles que fingem que dormem e ronronam só para não deixar a tv fazer ruído sozinha, iam abrir os olhos brilhantes, estáticos, viscosos. olhariam desconfiados, atinados, arrepiados. o preto logo ia mostrando os dentes, arranhando um r horrrível, mostrando as unhas afiadas. e ela batia três palmas, gritava em alemão e os gatos fugiam que nem mosca. num instante, e só havia a velha com aquele sorriso amarelo. até o preto fugia. e os cachoros, coitados, eram escárnio. tinha vez que eu achava que estavam ali para que os gatos pudessem maltrata-los. eles eram todos arranhados, meio sem pêlo. é que a velha deixava crescer as unhas dos gatos. e as pulgas comendo o couro dos cachoros. eles vinham andando, os três com aquele olhar de cachorro, que já é meio triste, vinham andando obedientes, como quem tem medo de pisar muito forte no chão. a velha chamava o cocker para subir no sofá e ficava fuxicando o pêlo do cachorro. dizia "são meus companheiros, todos eles." sorria. o cocker ronronava, assim como os gatos, de gratidão. fechava as pálpebras. "os cachoros gostam de mim, ah sim! gostam mesmo." e depois disso, ela o espantava e limpava, sem jeito, os pelos do sofá, que já era imundo. tinha um monte de bichos porque só assim podia-se viver. se tivesse paciência teria mais aquários, mais gaiolas, mais viveiros. a parede era entupida de um monte de coisa inútil, tapeçaria carcomida, quadro de uma árvore com flores roxas. "de quem é esse quadro?" ela balançava os beiços, ignorante. parecia que não gostava de memórias. era velha, mas sua casa tinha uma porção de coisas - como são as casas das velhas - mas umas coisas que pareciam simbolizar nada. tinha a foto de uns netos, da família, em porta-retratos empoeirados. mesmo as fotos pareciam não simbolizar nada. mesmo as violetas, quase sempre verdes, quase sempre floridas, não traziam qualquer sentimento. ela olhava, cansada, ao longe. a casa era pequena, mas ela sempre olhava longe. deve ter sido uma alemã loira, branca, mas os olhos não eram claros. eram qualquer coisa, qualquer cor, mas não eram claros, traziam dentro de si um escuro, um indefinido. eram pequenos. grandes eram as olheiras, marcadas, em volto do olho. quando se olhava para seus olhos, era mais para olhar aquelas olheiras, aquelas marcas profundas, os rasgos da velhice. os olhos se tornavam também um rasgo a mais, um rasgo de velhice. porque, de uma maneira ou outra, eles só podiam ser rachaduras, nostalgias, poços de memória. ela falava nada, deixava que as marcas falassem por si. tinha traços fortes, de alemã, uma boca grande e marcada. abria a boca para dar risada. sua risada era alta, esgarçada, cheia de rrrs estridentes; era latida, uivada. ela vinha, ás vezes, sem motivo, não porque era louca, mas porque não havia mais motivo para rir daquela maneira. porquê ria, eu não sei. talvez para espantar. espantar os outros, as moscas, o pó. o bolor que tomava conta de tudo. tudo era verde, cheirava à naftalina. e reclamava. reclamava tudo que não podia - era o que sabia, reclamava. ansiava, reclamava e dava ordens. mesmo sem ter para quem dar ordens, dava. comandava o pelotão deserdado dos seus filhos e dos seus netos. todos assentiam, cansados. alguns ainda se revoltavam. e ela gritava. gritava tanto que todos os objetos vibravam, objetos sem valor algum, quase explodiam. e por isso, tinha seis gatos e três cachoros, falava. o grito que desse, a risada que fosse, a louca que se tornasse o cocker ainda a olharia com olhos de piedade. e o gato preto ainda a vigiaria de noite, com os olhos brancos. e o siamês ainda passaria sua orelha na orelha dela. e à menor ordem que desse, eles obedeciam, sobressaltados. e somente à ela, obedeciam. aos outros, era o inferno. os netos pequenos sofreram mordidas, arranhadas, sustos. um filho que a importunava fora expulso quando ela mandou seu pelotão de animais dar um jeito dele. mandou assim, em alemão. e todos foram, treinados, cães e gatos contra o inimigo comum. o filho nunca mais voltara e ela e os bichos achavam isso bom. os outros filhos, agora, tinham medo dos bichos. e ela sorria, feliz. sorria porque os tinha, e porque eles a entendiam. ela falava em sua língua natal e eles ouviam, resignados, porque só isso podiam. e isso era amor, porque só isso podiam.