dezembro 10, 2015

carta a alejandro zambra

eu gostaria de me corresponder com quase todos os escritores que eu leio.
algumas vezes eu escrevo aos mortos, é um suplício que me faz bem. agora que leio um bem vivo, decido escrever esta carta e talvez enviá-la.

(quando eu escrevia críticas de cinema, minha melhor experiência foi quando o diretor de eles voltam, filme pernambucano que gostei bastante, encontrou minha crítica. eu tinha visto o filme no Janela Internacional de Recife, quando era janela crítica, mas não tive coragem de publicar no blog do festival; porque achava minha crítica muito apressada, ou muito ruim; e lá era o lugar onde os diretores poderiam ver minhas críticas [embora a crítica que fiz sem ser obrigada, por ter amado o filme nunca ressurgiu nenhuma repercurssão de seu diretor, Leonardo Moramateus. bem isso, foi em 2012]. publiquei no Além de Economia, blog que escrevia sobre cinema. o diretor achou minha crítica, percebeu que eu tinha visto o filme no festival e mandou e-mail comentando-a para o monitor do Janela Crítica. caminhos indiretos e furtivos a parte, foi uma experiência surreal; acho que a experiência mais completa do que é "escrever uma crítica de cinema contemporâneo").

caro Alejandro,

estou lendo seu livro Formas de voltar para casa (talvez eu envie essa carta só quando termine o livro, é o mais justo para com o seu autor, mas precisava antes de tudo, escrever, antes de esquecer). 
gosto do seu livro e do jeito que escreve, e tudo mais, mais ou menos como está escrito na orelha da edição da Cosac Naif. esse é o primeiro livro seu que leio; mas não viria aqui se não fosse para gritar uma coceira, um incômodo que me bateu.
na página 124, tem a seguinte passagem: minha mãe não está de acordo com o que disse meu pai. na verdade está mais ou menos de acordo, mas quer fazer algo para evitar que a noitada se arruíne.
tem mais duas frases e o próximo parágrafo volta a falar do pai. o pai é que está em discussão, nesse momento caloroso, a sua intolerância, a saudade dos tempos de Pinochet.
é com o pai que o protagonista se debate, é principalmente nele que encontra a sua culpa e inocência por ter sido filho dos pais que não faziam nada durante a ditadura. Alejandro, eu sou bem tolerante, apesar de feminista, com as minhas leituras. eu perdôo os escritores que gosto e alego justificativas: o tempo que viviam; o contexto. eu não sou nem chata, eu leio escritores notadamente machistas com até ávido prazer, eu me esbaldei em Cortazar, em Breton, em Miller e etc etc (notadamente todos, e todas as mulheres também, as concepções de feminilidade de Virgina Wolf, a recusa de Duras em ser feminista, as putarias de Hilda Hilst, quase tudo que me lembro) (mas um dia eu escrevo sobre isso, talvez).
por quê a sua frase sobre a personagem mãe veio zunindo igual mosquito na orelha?, eu me pergunto. porque um) você é contemporâneo, mas acho uma justificativa falha, acho que leria contemporâneos machistas, a depender de suas qualidades literárias e seus interesses temáticos.
é pelo jeito que se escreveu. estou aqui a falar com um escritor; e como vê pelo jeito que tento escrever, eu gostaria de escrever também, de escrever quem sabe um livro ou um conto. e porque a forma como você escreveu esse livro, parece que me dá abertura para falar justamente sobre isso, sobre o escrever, sobre os personagens, sobra a escolha das palavras. e agradeço por isso, agradeço por poder sentir que posso intervir. que posso lhe dizer; agradeço pela sua proximidade comigo, com sua leitora. (não sei se o elogio ao livro deveria vir aqui ou se isso soa concessão? mas é sincero e acabo de perceber isso, que o seu bliss tá nisso)
a personagem da mãe não tem uma opinião forte, como a do pai; a mãe é a a anfitriã, guarda a harmonia das coisas (enquanto o pai protege a ordem). a mãe, você não sabe se ela está de acordo ou não com a opinião do pai ou se ela cede aqui e ali para manter a harmonia entre os dois homens que estão ao seu lado (e abaixo, acima e a fundo, dentro e fora) para que as coisas entrem em harmonia novamente. a mãe, a nossa mãe sempre aspira (a com crase?) harmonia.
esta é uma mãe comum, isto é o que eu penso sobre a minha mãe quando vejo ela apoiar o mesmo candidato que o meu padrasto. esta é uma mãe tipo, o problema é que sempre estamos a escrever sobre as mães tipos, sobre as mães que não são nem lá nem cá, as mães que não querem arruinar as noites, os dias, e etc. você pode me responder dizendo que essa opinião é emitida na voz do personagem; mas de alguma maneira, tem um quê nessa frase que parece estar distanciado personagem e autor. aqui eu vejo autor, ou eu quero ver um autor; assim posso justificar a faísca que senti.
bem, esta é a pegadinha e a delícia do seu livro, não é? eu sempre quis escrever um texto ou um roteiro onde as frases se repetem, mas em contextos diferentes, e ganham outras significados, e você me surpreendeu fazendo isso muito bem, criando um labirinto. vai ter a conversa com a mãe do escritor; que é uma conversa linda e sincera; e a conversa do professor com a mãe, que é uma conversa cruel e infantil. a personagem, existe, sim, mas enquanto está no livro dentro do livro, ela é um tipo de mãe. eu não saberia explicitar isso em detalhes, mas é só uma frase que me dá a certeza disso, que é essa que eu copio aqui.
ora, toda essa coisa da mãe me levou a pensar nas suas personagens femininas, verdadeiramente - bem, aqui está o perigo de deslizar com uma feminista (ou uma pessoa que defenda alguma minoria; que faça parte dela; que participe de debates sobre isso, que milite). caso eu não tivesse avistado a mãe fazendo com que as coisas voltem ao normal, sem ter opinião forte, eu poderia ter passado seu livro livre de pensar nas personagens femininas (ou absolutamente não, não tenho como prever isso e poderia retirar essa parte, que é muito duvidosa, não consigo passar meu ponto; judeus lendo sobre judeus, e essas coisas assim). o que importa, absolutamente, é que a brecha, seja do personagem, seja do autor, me permita pensar nas personagens femininas, e isso me parece bom. eu prefiro isso (a com crase?) pessoas que antes de proferir o discurso já se blindam das possíveis críticas e querem contemplar todas as minorias, lutas, ideologias, caralhos (e bucetas! fiz uma piada. como é que se escreve uma piada?! um ponto de exclamação dá conta?! pensei em colocar haha, mas ficou ridículo)
não quero disseca-las, porque não estou aqui para provar meu ponto e vencer a batalha. mas rapidamente: por que as mães ficam em casa enquanto o marido correm riscos? os maridos são comunistas; os maridos tem opiniões fortes. não é que as mães sejam reacionárias, no entanto, não são revolucionárias. havia poucas mulheres no partido comunista em 70, 80? acredito que sim; mas por que Ximena que é descrita pela Claudia como a irmã revolucionária (e daí sua mágoa) aparece com consistência somente depois para os leitores; como uma pessoa amarga e detestável? por que Claudia não se importa com os ditos atos revolucionários de Ximena, mas se importa com o de seu pai? bem. vou encontrando suas respostas para as minhas perguntas eu mesma. Claudia e Ximena competem uma com a outra, é uma competição feminina e fraterna, e você fala disso muito bem; bem, eu não estou dizendo que isso não acontece na vida real, eu acho bem possível que seja assim, eu vejo exemplos a todo o momento. o ponto é: por que as personagens femininas estão no meio termo? estão preocupadas com a casa? com a harmonia das coisas? por que elas não sabem de casa? por que as mães são sempre menos reacionárias ou revolucionárias que os pais? que parâmetros as definem como mulheres que não arruinam noite; a não ser as mulheres com quem trepamos?
sim, a Claudia é uma ótima personagem; é misteriosa e apaixonante, você a descreve como descrevem os bons escritores as mulheres de que gostaram.
não há ironia nesta última frase. eu gosto de mulher, e tenho vontade de escrever sobre a minha namorada do mesmo jeito que vocês escreveram, tenho vontade de emprestar a ela esses encantos, as meia frases ou frases longuíssimas, de deixá-la um pouco louca para que seja incompreensível para mim, de deixá-la linda para que talvez qualquer um quisesse trepar com ela, qualquer um que a lesse. e por fim, a Claudia é melhor do que o personagem principal, por fim ela é melhor - como elas sempre são - mas ela se sai melhor e eu gosto disso, eu odeio quando o Cortazar suicidou a Maga, eu odeio quando o Breton mandou a Nadja pro hospício, eu odeio como Miller sumiu com todas as mulheres e as bucetas mais incríveis só porque quem escrevia era ele, o homem, eu odeio quando Faulkner mata a moça grávida ou quando esquece a outra. esse ódio eu continuo buscando, apesar de terminar ou continuar os livros e continuar a gostar deles. eu gosto que Claudia é melhor do que ele, mas desse jeito, ela se torna melhor do que nós, leitores, e brilha como mais uma estrela feminina distante & incompreensível na constelação dos tipos. mas não o culpo disso, de jeito maneira. a única forma para que as personagens femininas sobrevivam e tenham uma vida normal ou uma morte catártica é sendo elas a primeira pessoa; e com maior probabilidade se mulheres escritoras que empreendem o movimento. você mesmo se antecipa: um livro sempre é sobre o autor.
de qualquer forma, lhe escrevi não para falar sobre as amantes, mas sim, sobre as mães. sobre as mães. as mães que não querem arruinar a noite. é só isso que eu gostaria de lhe dizer: as mães, elas tinham de ser no mínimo piores do que a encarnação do desejo de harmonia. no mínimo pior, no máximo.
quem sabe.
temos aí um tempo para descobrir, para redescobrir nossa mãe, a minha mãe.

(mais tarde reedito essa carta e escrevo se precisar um pouco do final do livro, mas era somente isso que eu queria dizer, sem frase de efeito, as mães, salvem as mães da literatura! e do cinema, e da representação, salvem-nas. deixem que se tornem menos mães, mais mulheres - mais personagens).