abril 30, 2010

tenho a sola do meu pé doendo. queimada, de tanto andar descalça. daquela crosta que a terra é feita, daquele jeito que menina disfarça. os dois peitos do pé até doem: são os dois corações do pé. e o coração pisa leve, de seu jeito, forte, palpitando sobre os chãos, as texturas, macio, duro, áspero, ai, um caco de vidro. sangra nosso coração, forte, sangra para deixar ver. e o pé, que coisa engraçada que é. por muito tempo achei feio, de mal gosto, sem jeito. mas há de se ver que o feio também tem utilidade. e não há maior utilidade, se não as mãos talvez, do que os pés: sem pés não se chega em lugar nenhum. e que farão os olhos, os ouvidos, as mãos sem lugar para seus sentidos descobrirem o resto do mundo? é então, primário, pé, base, sustento, arroz com feijão. de tantos fetios tem a sua face, é quase á parte do corpo: tem sua própria característica. é também gente, porque tem alma em si. que é um pé sem alma? é um pé que não anda, não vai, não busca. e sem buscar, que há de se fazer? se a vida é esse constante ir e vir. e também parar. mas não doem seus pés quando param por muito tempo? também dói a alma. quer buscar o próximo. o próximo espaço, tempo. nem que seja para voltar atrás. nem que seja para, na ponta do pé, bailar. acompanhar o pé de outro, num vai-e-vem de coração. e com os passos que dar, bater no chão de indignação, fazer valer a palavra, que é a argumentação sem o aprumo dos pés e das mãos? que é do beijo sem o pé apontado ao corpo, que é do sexo sem o pé escorregando, escorrendo, emparelhando por todo o outro corpo? também é sentido, também é lambido. também é bonito, o pé, na beleza do seu ser: por que nem toda gente bonita também é gente que vale a pena conhecer. e na sua sola, copia a mão, em uma maior extensão. tem também suas linhas de expressão, delinea-se e conta a vida, a vida por quem debaixo vê. quisera as ciganas também pudessem ler os pés: então veriam ali o ser, a luta calada, os tantos caminhos percorridos. a história de quem sempre foi pisado, e não do sucesso do passado: a mão conta o futuro, mas o pé guarda o passado - e não há como saber do futuro sem consultar o passado. o pé é ainda, indicativo de classe social: operário ou bancário, o pé diz. mas no fundo, pé, como mão, e como olho, e como pélvis, é tudo igual: dentro de si só procura ser feliz, só procura o lugar certo para se aconchegar, se exaltar, se enlamear com a vida, com a morte, com a ferida. e tem lá sua beleza, e a contraponto, sua feiúra, e entreato, mil definições que são só sentido: seria pecado traduzir em palavra.

abril 25, 2010

hoje tenho apenas uma pedra no meu peito

dentro da caixa toráxica nada bate. não grita, não esperneia, não luta. parado aqui, dentro e fundo, lá no fundo, que não sei onde mais. parado, intacto, intocável. uma pedra, talvez, dura, cravada, ilhada. pedra só, latente, aqui aonde? não mais vive, não mais pula, não mais engasga. a garganta corre limpa, sem nó, sem dó. a casca, uma lasca, um nada. o cabelo nem mais se despenteia, o olho não mais chora, e a pélvis não mais molha. é casca, é lasca, é corpo. falta-me alma. falta-me arma. falta-me sua voz. seu silêncio em mim petrifica. sem palavra, você vai, volta, lota, não olha, vem, passa, me passa, me amassa, sem palavra, você vem, você vai, se esvai. e aqui dentro não encontro palavra: o seu propósito torna-se minha cor preferida. cor que fere, cinza, cinzento, branco, de nada, calada. obrigada.

hoje tenho apenas uma pedra no meu peito,
e exijo respeito,
não sou mais um sonhador,
chego a mudar de calçada
quando aparece uma flor,
e dou risada do grande amor.


mentira.

abril 16, 2010

roteiro

apresentação da personagem: faz curso de cinema. tem dezenove anos, cabelos curtos. quer seguir o que o coração lhe manda, mas teme o que vem pela frente, mesmo assim anda, e não hesita em virar a direção, sem nunca desviar do caminho.

seq. 01 cidade universitária - externa - dia
está caminhando. travelling acompanha seus passos. passos incertos, anda vagarosamente, de um jeito próprio.
plano próximo do rosto. os olhos castanhos exprimem tristeza. exprimem medo. a boca fechada em riste, exprime contenção. repressão.
(e se houvesse um jeito de enfiar a câmera pela garganta, ali um nó, um nó da faringe com a laringe, ou das cordas vocais entre si, um nó de algum jeito, um nó que é o nó de não poder chorar, um nó que engasga e rasga. e se descesse a câmera pelos tubos, por estes tubos que não são mecânicos, e desse no coração, vermelho brilha, bate forte, comprimido pelos dois pulmões brancos e arrebatados. pulmões que apertam o coração, que o sufocam)

seq. 02 cidade universitária - externa - noite
plano geral. vemos uma outra menina, distante.

- que saudade de casa.

repete, repete. plano médio. plano próximo. vemos a menina de perto.

- que saudade de casa.

ela diz alto, louca, desvairada, anda em círculos.

plano médio da personagem central. ela olha a menina.
plano geral, as duas no mesmo espaço, a central olha a outra. abaixa a cabeça, sai andando.
no mesmo plano, câmera em travelling a acompanha. anda rápido, foge dela. pára e senta.
plano médio, dos ombros. os olhos encharcados de lágrima, a boca treme. treme, esparsa, convulsiva, querendo escapar, querendo imitar. plano detalhe da boca. corta.
plano médio, olha para os lados.

- parece que eu tô num filme.

ela olha para trás. vê algo entre as folhas. é uma câmera, câmera, lente, lente, câmera, quer tudo transformar em filme, tudo isso é só ilusão, ela diz, a lente diz, está claro que diz, é tudo mentira.
- que porra é essa?
corte. tela escura.
- que porra é essa?
tela escura.
- isso é um filme.
tela escura.
- é só um roteiro.
tela escura.
- é literatura.


seq. 03
plano próximo da menina, descabelada, peito sobe e desce, a íris aberta, transtornada, suor na testa brilha, seu pulmão ofega, seu coração se esconde, e o nó enrola tudo que tem dentro dela lá: toda ela é um nó. toda ela é nada.

- não... não é possível. isso é minha vida.
sou eu. óbvio que sou.

ela ri. um riso triste, irônico. os dentes arreganhados, a boca distorcida.



corta.