julho 30, 2018

os homens inscrevem a política no meu corpo

1. os homens inscrevem a política no meu corpo. foi o que eu pensei quando ele perguntou, pela segunda vez, o que eu achava de tal candidato. houve um tempo em que eu tinha alguma certeza quanto às minhas escolhas políticas, em que eu sabia exatamente de qual espectro pertencia. mas tudo isso foi esfumaçado, e não só em mim. minha falta de certeza coincide com o buraco político no qual o brasil entrou (buraco mesmo, não abismo, talvez vala, mas buraco, coisa que cede na planície da terra, não gruta, coisa que se faz por alguém, talvez, mas não se sabe quem, pelo desgaste, das intempéries e das rodas do carro e o asfalto mal colocado, da terra historicamente porosa, buraco, enfim, é a palavra exata, ainda que pouco poética), e também, com a minha saída da universidade onde minha política se fazia numa assembleia caótica do movimento estudantil, num ato a qual nem mesmo concordava com tudo. sempre temi ser, e mesmo assim, sempre fui a massa, disputada pelos lados, pelos berros, das entidades. minhas formulações, no entanto, eram cheia de dúvidas. falei e fui enfática e tenho a mínima ideia do que defendia. em casa, vivi à sombra das opinões políticas de minha querida tia, de esquerda, e vi minha mãe, que também era, mudar abruptamente de lado, junto de meu padrasto. meu pai, por outro lado, sempre rosnou tudo aquilo que eu sou contra; não exatamente de direita, pois tal formulação pouco importa para ele, mas desumano, sobretudo porque indignado com as tragédias da sua vida - como os bandidos que ameaçam sua segurança, acreditando então em punição e higienização (ou seja, cadeia e morte). há imenso prazer em ser de oposição; tendo este pai, ao menos, eu sempre soube o que era contra - embora, se me perdesse nas contradições da sua fala, não saberia colocá-lo em nenhum estereótipo pronto. me cansei também, do lugar do berro e da indignação, da política juvenil. se me esforço para pensar, diante de perguntas de tais natureza "em quem você vai votar?" e vejo onde é que me enfiei (escuro, mofado, úmido, grotesco, o buraco), penso em construir alguma solução de novo - qualquer coisa que eu possa ter fé. nada. repentinamente, parece-me impossível solucionar qualquer coisa, ou mesmo, formular uma proposta pragmática que, errando, chega-se a algum lugar melhor que este. então penso, tímida, "era melhor você fazer algo, mariana, não precisa querer acreditar na política institucional, mas algo, qualquer coisa. ler uns livros, ir num ato que seja, procurar o conselho do seu bairro." não vou mais nem nos atos que defendem bandeiras que acredito piamente, como a legalização do aborto ou da maconha, não fui nem na marcha das mulheres lésbicas e bis, mesmo sendo uma. escolhi inconscientemente uma vida política estéril, com um estranho formigamento interno que sussurra: há coisas além. a arte, a crítica substancial da vida, o entendimento histórico que prefere fabular do que berrar, estar nos meios, permitir-se permanecer em dúvida. 
2. indo à flip comecei a ler um livro de ensaios da virginia wolf, o valor do riso e outros ensaios, em que na apresentação o autor discorre sobre as formas reflexivas, as pausas, o texto cheio de perguntas ao leitor, travessões e pontos e vírgulas, com que virginia escreve seus ensaios. e logo no primeiro parágrafo explana, a partir do ensaio da própria, mulheres e ficção, virginia assim escrevia a fim de reinventar a linguagem escrita dos homens, com suas frases pesadas e pomposas, ou seja construídas em cima da certeza, para uma escrita feminina, uma conversa derramada em papel. em que seus ensaios são produzidos em cima do "indício de que os mundos estão em mutação violenta; de que toda verdade é provisória, pois as possibilidades de ser são infinitas". legal. eu, leitora feminina, projetada nas ânsias de virginia apresentada desse modo, senti-me acolhida feito deitar-se numa cama já quente pelo calor do sol. na própria flip, a homenageada hilda hilst teve um tratamento um pouco semelhante quando se dedicaram a falar de sua política. numa mesa fora da programação principal, falando de seu teatro feio em 68 - o país pegando fogo, então - assinalaram-o completamente político e contra as autoridades, ainda que hermético, difícil, construído por meio das alegorias, rescendendo a becket. fiquei com a impressão de que, embora hilda nos fosse pintada feito louca, corajosa e excêntrica (assim, como virginia também é, autoritária e quase mimada), no campo da linguagem e da política as mulheres escolhem os meios. ficam com as dúvidas, com a amplidão, abrem-se aos horizontes, permitem-se ora dizer uma coisa e depois tropeçar noutra. nas mulheres, admite-se o perambular. mas também, uma vez lendo sobre a vida de walter benjamin me deparei com dois fatos inusitados quanto à sua praxis, o primeiro: a militância lhe fora introduzida por uma namorada, membro do partido comunista, e depois, ele tendo largado essa militância ativa, para poder escrever. há uma lista evidentemente enorme de escritores que saíram da militância partidária ou que não se adaptaram a coletivos políticos ou que foram perseguidos pelos próprios partidos que lutaram para eleger, como lukács, camus, marguerite duras. esta última, na edição da cahiers du cinema dedicada à ela, intitulada os olhos verdes, faz dois textos de aborrecimento com a política, um sobre um colóquio de escritores que tentam escrever uma carta, espécie de manifesto, e outro sobre a impossibilidade de um escritor de se manter fiel à um partido. para duras, quando um escritor milita no partido, ele perde sua liberdade e não pode mais escrever. só o que pode escrever é o que é estrito pelo partido, e como bem sabemos, partidos são pragmáticos o bastante para aparar todas as arestas, travessões, parenteses e reticências. um escritor, para duras, deve ser, primeiramente, livre.
3. sob esse pressuposto, vejo-me embasbacada diante das tentativas das pessoas de desmoralizar ou mesmo de desculpar autores por suas escolhas políticas. desde exemplos amargos como o apoio de borges à pinochet (e borges é um gigante da literatura, descansa no seu firmamento ás vezes acometido por fedores de peido quando alguém relembra essa característica de sua vida) e, evidentemente mais leve mas não tanto menos constrangedor, a recusa de escritoras como hilda ou adélia prado de serem chamadas de feministas. para hilda na flip, ovacionada, retratada através de anedotas feito pinceladas certeiras que compõe um mito sólido e venerável, e, evidentemente, mortíssima e por isso calada diante de novas perguntas ávidas, desculparam-lhe. disseram "há que se entender o contexto, o feminismo dos anos noventa." e depois "hilda é uma escritora sem rótulo, sem caixinha. vocês não conseguirão defini-la, colocá-la numa caixa." já adélia, vivíssima, não foram ainda capaz de perdoar o inimaginável crime de não se considerar feminista. a necessidade do perdão que as pessoas tem para com estes "velhos", nascidos em outras gerações, coloca a nós, leitores contemporâneos, sabedores da terra e do céu das opressões, superiores aos escritores. deixe o escritores e sua arte, parecem dizer. são bonitas e grandes, as coisas que escrevem. colocando-os feito deuses no olimpo, acabamos por perdoar suas fraquezas ou maldades, justificando-as, num processo engraçado de concomitante sensação de superioridade e inferioridade. é impossível olhar nos olhos de um poeta e ver um igual ou nos é impossível admitir que as fraquezas deles são aquelas a quais estamos também vulneráveis, sempre a um passo curto de encontrar dentro de nós, o mal? para que lemos, então?
4. bem, a cama quente pelo sol da forma reflexiva e cheia de dúvidas que virginia escreve a qual me deitei, já não me parece tão gostosa assim. por que é que sempre dizem coisas do tipo das mulheres; mesmo das mais porretas; se os homens, quase todos eles, tem uma conduta de vida semelhante à elas? será a linguagem usada por um e outro? por que é será que eu mal consigo exprimir um pensamento se não for em forma de pergunta, como esse parágrafo inteiro? e, no entanto, esta é a única posição que me cabe, porque sim, virginia, não há verdades, ou se há, elas mudam velozmente, e temos sempre de nos mover para captar seus anseios - seus olhos, de relance, que seja - e sim, duras, não é possível imaginar mundos, se enlamear da sujeira e da beleza deles, se estivermos ligadas a um mundo tão correto e quadrado quanto o político. 
5. mas os homens inscreveram a política no meu corpo. como sempre fui predisposta a ouvir e conversar, a ponderar, como nunca demonstrei que estivesse aferrada à alguma posição política (a não ser aquela enorme guarda-chuva a qual as pessoas designam esquerda), acabei sempre sendo alvo das conversas políticas dos meus amigos homens. não é como se eles falassem e falassem e eu estivesse calada o tempo todo - no fim, não tive amigos homens tão estúpidos assim - mas eles querem saber minha opinião. este fato sempre me intrigou, eu não sei se é porque visto minha própria pele, mas desde adolescente tenho a impressão que homens me procuravam para conversar, diferente de como faziam com minhas amigas. ainda hoje, estranhamente, sinto isso às vezes. eu não sei dizer se inspiro um interesse sexual insípido, bem pouco, mas o bastante para eles quererem iniciar uma conversa e não sei se é a forma com que respondo, sempre tentando ouvir e parecer honesta e humilde numa conversa, que eles continuam. nem todas as vezes é sobre política, simplesmente é sobre os assuntos que rondam a cabeça deles, aquilo que lhes apetece discutir e discorrer. eu estou longe de ser uma enciclopedia e ás vezes acabo tendo de pensar em coisas que nunca sequer fui atrás para tentar emitir opiniões válidas, inteligentes ou ao menos fazer as perguntas corretas. esse mecanismo durou tanto tempo que, nos últimos anos, não precisavam nem se dirigir diretamente a mim, mas eu comecei a ficar encantada com este modo de falar: há pesquisa em forma de dados, citações, fontes, opiniões fortes ditas de maneira doce e mesmices faladas de forma engajada, há um sibilar que não possui na minha fala e por isso me deixa estupefata. antigamente, essas ditas conversas, esse modo de falar, guiava meu prazer sexual - e só agora consigo visualizar isso. hoje, no entanto, me relaciono com uma mulher há um bom tempo e este interesse que os homens vêem em mim e que acabo respondendo, tornou-se uma curiosidade, algo meramente intelectual. as conversas que travo com minha namorada vão desde essas formulações indecisas, filosóficas, quase nunca um debate acalorado, até uma irritação exausta que nos resumimos a mandar tudo pro pau no cu. nessas e sem querer, eu enfiei o pau no cu da política do brasil, e da minha própria.
6. é curioso que o autor da apresentação da edição brasileira do livro de virginia trata esse modo de linguagem, reformulando, perguntando e refletindo cada vez que emite alguma máxima trata esse fator com carinho e admiração. primeiro, deve se tratar por ser virginia, outra gigante que tem sonhos perturbadores no céu, depois, imagino, a algum interesse editorial. com a recente ascenção da discussão feminista e de gênero nos meios culturais, no resgate das obras empreendidas por mulheres de todas as área e do interesse estratégico em lê-las, estando em projetos práticos como o leia mulheres e editoras voltadas a publicar somente autoras, parece bom tratar com carinho esta linguagem particular e denominá-la, enfim, como feminina ou feminista. há pouco tempo, e mesmo dentro da minha cabeça, essa minha característica de ouvir e não ter opiniões fortes me pareceu uma volutabilidade, remetendo à uma certa submissão das mulheres, sendo nosso pensamento muito mais volúvel ou moldável do que aquele proferido pelos homens. e esta característica sempre tivera tons obviamente negativos, gerando desconfiança nas mulheres que ocupam alguma posição de poder. em a síndrome da cinderela, livro dos anos 80 que considero controverso, a autora luta especificamente contra essa fala insegura, cheia de rodeios das mulheres, que denotam insegurança, e somatizam um certo pânico em ocupar uma posição de chefia; exemplificando com casos de mulheres com cargos poderosos que acabam recuando, mudando de área ou desejando casar-se para retornar a uma vida tranquila, sem ter de tomar decisões ou grandes sobressaltos. inúmeras vezes eu li em textos feministas que o modo político das mulheres difere dos homens justamente por sua capacidade de ouvir e entender; e por isso seriam mais aptas e melhores na política. ou no cinema. no livro feminismo y cinema, por exemplo, a autora cita textos dos anos setenta e oitenta de coletivos de cineastas feministas que comparam a linguagem masculina ao falo - reta, direcionada a um só objetivo, sem deixar-se permear pelas contradições - e por isso fariam um cinema pobre. e a linguagem feminina seria então como uma vulva - redonda, que acolhe as inúmeras possibilidades sem descartá-las, fazendo um cinema muito mais rico, pois contraditório e vivo. todas essas explicacões que buscam aliar o biológico (a forma do órgão reprodutor) a linguagem me parecem obscuras, obtusas e evidentemente perigosas - cair novamente nas diferenças entre homem e mulher é mais fácil que tropeçarmos numa rua esburacada. 
7. mas não é óbvio que todos os escritores que valem a pena e mais fortemente aqueles que se consideravam militantes mudaram inúmeras vezes a forma do seu pensamento, buscando sempre a liberdade da humanidade? não são esses que estão retratados no corredor da história como os grandes contribuintes para o pensamento? é realmente válido nos determos sobre as diferenças de linguagem entre homens e mulheres? 
8. os homens disputam a política no meu corpo. quando eu os ouço falar, de maneira correta, explicativa e cuidadosa, sinto como se eu fosse um território a ser disputado. mas o que tenho eu de tão importante assim para ser disputada? acham eles imprescindível que eu me aproxime mais do pensamento e da ideologia que defendem? no fim, sou eu mesma, perdida no escuro deste buraco aonde me enfiei por escolha própria, preservando minha liberdade individual (e nesse mote, acirradamente feminista e política), que me incomodo com o fato de não ter nada a ser defendido a não ser um conceito básico de liberdade pelo outro, de um bem-estar comum e da busca de um senso de comunidade que nos faça ainda mais sensíveis, que construa com mais maestria nossa própria subjetividade. nos últimos anos, fui lentamente me afastando de assuntos como qual a estratégia política para diminuir o desemprego, ou a revolução comunista, a interferência ruidosa do Estado nas nossas vidas para me dedicar a temas como o prazer e a finitude, o desejo e a morte, o sentimento pungente da autodestruição e da autosalvação. o Estado em absoluto não me interessa, e pensava me diferenciar das pessoas que gritam todos os políticos são corruptos! a política não presta para nada! mas no fim, tenho mesmo algum projeto que me diferencie deles? ou estou mergulhada nessa mesma indiferença, buscando explicações concisas como um niilismo em relação à vida pública, um derrotismo diante das inúmeras pessoas vulneráveis - os mendigos, os pobres, os viciados em crack, as travestis, as mulheres morrendo em salas de aborto clandestino, os negros encarcerados sem julgamento - e as execuções trágicas que tem cor, gênero e sexualidade. a sensação que diante de tanta informação e de tanta dor resta somente um estafamento, uma incapacidade de me surpreender e sentir. as lágrimas que deveriam verter dos meus olhos se transformam numa incômoda dor na nuca que nunca passa. tornei-me pouco a pouco o oposto do meu desejo de mundo, aquela sensibilidade provocada pelo senso de comunidade, com o pensamento dormente e a ação interrompida. levo uma vida confortável onde é possível ser apática às dores e aos problemas do mundo. não os esqueço, evidentemente, mas não os disputo. enquanto mulher, mais uma vez, sou disputada e não disputo.
9. é importante pensar, então, nas mulheres que estão na política e que por isso, exige-se delas aquela linguagem certeira, cheia de dados e fontes, inteligente, aguçada, coerente e firme. e pensa-se numa característica evidentemente masculina que emana delas; e se não percebemos isso, acabamos por massacrá-las. manuela e marina não são levadas a sério. os discursos confusos e obtusos de dilma, uma mulher que trazia em si o evidente masculino, enroscaram-se no seu pescoço levando-a a um enforcamento. lula disse que dilma é teimosa e inapta. no entanto, poucas pessoas refutaram-no. as críticas, que endosso, a esse discurso giraram em torno de lula se eximir e dissociar sua figura com a de dilma, alçando seus vôos eleitoreiros, mantendo intacta sua figura de gênio e mito. mas é ainda com resistência que vejo como saída escolher uma ideologia e um partido que me apeteça e panfletar firmemente. antes, prefiro analisar a situação à luz fria de que todos os seres humanos tropeçam, mudam de opinião, encontram-se com suas sombras e por mais que discursem, acabam por praticar pouco em sua comunidade. é preferível que os discursos sejam cheios de dúvidas, suposições e contradições, não importando a qual gênero pertence esta linguagem, para assim refletir com exatidão as ondas que embalam o pensamento e a história humana. minha política, pouco pragmática, vai de encontro a este estado onde será possível e não-condenável o ouvir paciente, a volubilidade, e a formulação de perguntas antes das respostas. infelizmente, eu não sei se isso serve à economia.