setembro 25, 2011

açúcar meu bem

açúcar, meu bem, passa a salada. muito boa a comida, açúcar, meu bem. seus olhinhos de boneca, açúcar. e a boca pequena, açúcar. tão pequena e indefesa. eu posso protegê-la. cuidar antes que se desfaça, açúcar, meu bem.
passei meus lábios em ti e qual espanto não foi: açúcar. toda por ti, açúcar, meu bem. e eu lambia, açúcar. e você dizia: comia. cubos de. sua pequena menina e eu engolindo-a, devagarzinho. devagarzinho até acabar. do doce de dentro de ti. eu senti. você gemeu baixinho, pequenina. eu te mordi.
me dá.
foi se diluindo, de água n'água. ai, açúcar, meu bem. volta. se recompõe. se recompõe, eu preciso te abraçar. dentro de mim, eu preciso te sentir, apertada em torno de. aqui. preciso te sentir, açúcar, meu bem, pois sinto que vou sumir. sumir, escorrer, não-sei-bem. você ri. ri cristalizada. pequenos dentinhos de açúcar, dentes-de-leite, açúcar, meu bem. eu os chupei, todos, como balas, cubos de. não ria, meu bem. não ria da minha sangria, desatada, meu bem. conhece isso? san-gria-de-sa-ta-da.
desatada.
tenho pressa de você, açúcar. pressa antes que. se derreta, aqui, melaço de. melaço. pescoço de boneca, umbigo de mundo. te melar com seu melaço, açúcar, meu bem, fazer cócegas no seu riso fácil, açúcar, meu bem, me passa a espátula, açúcar em você. querer te. cristalizar, eternamente, aqui, dentro de mim, te deixar, aqui. amar, açúcar, meu bem.
você ri, de novo.
me passa a xícara de chá, açúcar, meu bem, pestanas fechadas, os pés curvados. é estátua, açúcar, meu bem? é de açúcar? se dilui, se desfaz em mim. aqui, em mim. dentro de onde que não há dentro aqui - sou todo fora todo-fora. mas aqui, nas minhas mãos, aqui, eu te juntarei, guardarei - onde? onde, aqui. açúcar, meu bem, me escuta:

me olha já guardada. me olha já diluída em si. por que tão egoísta, açúcar, meu bem? por que não pra mim, em mim, eu que experimentei bem antes de ti - bem antes de ti saber que é comer. por que. eu que nunca sequer te entendi - açúcar meu bem - mas também não pedi, só pedi que. em mim, antes que você. açúcar, meu bem, se desin

meu bem açú meu bem.


setembro 08, 2011

o mundo

"eu vou te dar o mundo, meu bem."
você se lembra que eu te disse isso naquela tardezinha, na sombra de uma mangueira, se lembra? você me olha com esses olhos grandes, essa barrigona despontando, outro filho, outro filho pra alimentar, eu pensei. você me olha com essa carinha triste, essa sua cara torta, um olho meio vesgo, há tempos você não tira os pêlos que nascem debaixo do nariz, fica brava quando eu chamo isso de bigode. você passou pó de arroz na cara, ficou com as bochechas brancas e o resto todo moreno, você pensa que eu gosto das brancas porque fico olhando com cara de tarado pras moças da tevê, você diz assim mesmo,"cara de tarado". e nesse dia, você tinha perfume doce de pó de arroz e a gente fez amor, de novo, e desse amor outro filho, e agora você anda ainda mais torta, com as mãos nas costas, desempregada, põe um pano de prato no ombro e diz "só desgraça, só desgraça neste mundo." diz pra eu cuidar do menino mais velho, diz que está cada vez mais velho, também nascem muitos pêlos debaixo do nariz dele, e já sabe lavar as remelas dos olhos, passa gel e deixa o cabelo espetado, eu digo "o que é isso?" ele não me responde, nunca me responde. ele trouxe um celular pra casa, um desses coloridos, toca aquelas músicas que ele gosta, "isso não é música, moleque, onde cê arranjo isso?" ele não responde, nunca responde, me olha com um olho enviesado, também é meio vesgo, igual você. você diz que já não pode mais conversar com ele, que tem que cuidar dos menores, diz que é pra eu ser útil. como se eu não fosse útil, como se eu não tentasse, e debaixo daquela mangueira, embora o sol brilhasse forte batia uma brisa fresca cheirando a manga, ou era você que cheirava à manga, à flor de manga, ê minha flor. eu pensei vou fazer de tudo pra fazer essa moça feliz, você era nova e menos preta, dava pra ver a bochecha avermelhada de vergonha. "eu vou te dar o mundo, meu bem", você riu porque nasceu pessimista, nasceu amargurada, e tinha aprendido desde pequena que não se pode sonhar (você nasceu num cubículo na cidade, eu me lembro bem) disse "uma manga já tá de bom tamanho". o menino sentou-se do meu lado, tinha comprado fone de ouvido, balançava a cabeça pra frente e pra trás, "você compra coisa demais"; ele não ouviu, eu tirei o fone do ouvido dele, o ouvido encardido. "o dinheiro é meu". fiquei quieto, calado, carrancudo, diabo de menino, não sabe viver, dezesseis anos ou coisa assim, esse mundo que a gente vive é um perigo, não se dá para viver, é tudo sujo, escuro e encardido, é tudo cheio de fio, tanto fio "você devia ir pro campo, menino, lá se vive" comecei a descascar uma manga, manga ruim de mercado. aquela nossa manga da magueira, eu alcancei uma bem no alto do pé, você riu à beça, eu me sentia um gigante, comecei a descascar com a faca que ficava no meu bolso, sempre uma faca junto pra matar cobra, escorpião, aranha, bicho ruim, me roubaram a faca de bolso, cobra, escorpião, aranha, ladrão. e eu ia descascando enquanto você ria abobada, ia tirando a casca laranja-ocre-avermelhada devagarzinho, com tanto carinho, e você se dizia arrepiada, ria esganiçada. te dei a manga pra chupar. "quer manga, moleque?" nem me respondeu, ele nunca respondia, voltou com o fone de ouvido, "quer manga, merda?" tirou o fone assustado, fez que não com a cabeça, vontade de esfregar a manga na cara dele. você chupava a manga devagar, de um jeito só seu, te dei o caroço todo "isso é meu amor, todo esse caroço" e você sorriu, os fiapos de manga amarela preso no dente amarelo, que delícia de manga, aquela manga era amarela de sol, era inteira feita de amor "viu? te dou o mundo?" e você gemeu precipitada, escorria o sulco amarelo perto da boca reconchuda, escorria o sulco por toda a terra, "todo o mundo". "come essa merda de manga, você não come nada, só come porcaria" fez que não com a cabeça, fez menção de levantar, puxei ele pra baixo "come" ficou me olhando com o olho parado, seu mesmo olho parado, sem reação alguma, "você não sabe de nada do mundo, você é uma idiota qualquer" ele me olhou parado, dava para ver a veia da têmpora do moleque vibrando, ele morria de ódio mas nada falava, "come seu imbecil", ele olhou duro, falou baixo alguma coisa, o quê? ele repetiu baixo, imbecil, filho imbecil, filho do sulco amarelo, do mundo mais bonito que eu quis, eu disse "nêga, te dou todo o mundo" mas todo o mundo é muito grande e muito ruim, é só desgraça e porcaria, é só sujeira e injustiça, eu te dei todo o mundo, sim, e ele veio com tudo de ruim que tem dentro dele: e pra aprender eu esfreguei a manga na cara suja do menino, esfreguei no olho até ardê e ele gritá e enfiei goela abaixo o caroço inteiro, de uma vez, e quis que morresse engasgado, se ela não chegasse correndo estabanada, as mãos na costa, a bolsa estourada, o sulco amarelo da terra divina, o sulco divino da terra amarela e infernal, que mande tudo pro inferno, o mundo todo, essa manga de merda que um dia eu te dei e te enfiei goela abaixo, essa manga amarela que me fez crer num mundo amarelo, mas esse mundo é amarelo - amarelo podre, e eu te dei tudo isso, pena que te dei.

setembro 02, 2011

banho de espuma

muito agravada à mãe lavar a criança. primeiro os olhos úmidos, de um azul pouco, chorosos do iminente contato com a água. e depois a lisergia da água quente, o nenê a sorriso solto, mole feito uma massa branca e disforme, um pedaço de algodão boiando em água fervente. o nenê sem reação, nem mérito, todo entregue à delícia da água e a à autoridade das mãos da mãe. e a mãe, apesar de nova e elétrica, com os cabelos meio presos em coque, canta com a boca fechada sem saber o que cantar. acha que a música doce faz o nenê (ainda mais) serenar. mas é somente a água quente, conclui infeliz, quando tenta lhe cantar quando tenta fazer o nenê dormir.
então, se prepara feliz para o ritual minimalista. o nenê é tão pequeno e tem tanta pouca pele que é possível passar-lhe o sabonete diversas vezes. só nele, de um para outro, é possível esfregar com excessivo carinho e quase ódio. vontade de arrancar escama por escama, não só da sujeira invisível, mas também a derme cor-de-rosa, a espuma de que são feitas as crianças brancas. como as ondas que quebram na praia plana, deixando restos de espuma esbranquiçada na beira, a mãe também brincava de ser mar no corpo areal da sua criança. era possível lavar com cuidado os braços, dos ombros, os cotovelinhos, os pulsos, os pequenos dedos, dedos por dedos, passar um a um, unha a unha arrancar-lhes qualquer sujeira. e as pernas, que por ironia são maiores, se deliciar no lavar das pernas, no devagar caminho dos dedos finos de mãe por todo o comprimento de perninhas. lavar com extremo amor o umbigo e os mamilos e os lábios e a mucosa, lavar como terapia de mãe afoita. se antes lavasse o corpo de outro, com costas largas, agora sua mão era do tamanho daquele todo o corpo e podia, se quiser, com os cinco dedos levantar e subir lavando tudo, de uma vez. se quiser, mas como se pensava cuidadosa, lavava tudo que lhe permitia aquele tamanho de corpo e suspirava inquieta quando percebia que o corpo se acabava, escapava aos seus dedos ávidos. e recomeçava, achando, por via das justificativas, que sempre é bom lavar e lavar e lavar as crianças. o perfume do sabonete infantil a hipnotizava, como a própria música que saía da sua boca, como que automática, e dava pequenos beijos naquele corpinho quieto, naquele corpinho todo - que se deixava ficar quieto apenas ali. você está dando um presente para mamãe, não está? perguntava ela enquanto passava seu indicador pelo esfíncter da criança. que presente bom. beijava a bochecha, mas a criança não reagia. lavava, lavava e lavaria, passaria toda uma vida a lavar aquele corpo, sem pensar em nada mais, nem sentir mais que o presente lhe dava: o perfume, o seu próprio som, o toque macio da pele inocente da criança, o amor primário que sentia, que não precisa de recíproca. o amor tão primário que é querer passar a eternidade lavando aquele corpo, sem pausa, lavando, lavando, esfregando, e tirando dali tudo que dali é, e de repente, seu nenê era também água, água e espuma, perfumada. poderia aspirar seu nenê para dentro de si e levar tal amor primário assim, sem o peso de carregar um corpo, de aguentar um choro, uma tonelada de, eu já entendi, Senhor, entendi, aprendi, posso só levar comigo o sentimento e deixar para lá a casca, deixar para lá a matéria? e a mãe parava de cantar porque lhe vinha vontade de chorar, e o nenê sempre nessa hora também chorava, como a avisar, a punir, a chamar-lhe por seus dóceis carinhos, mas o bebê continuava mudo, boiava na água, perfumada, feito espuma, se desintegrava, e a mãe assustada, ria, desesperada.