setembro 08, 2011

o mundo

"eu vou te dar o mundo, meu bem."
você se lembra que eu te disse isso naquela tardezinha, na sombra de uma mangueira, se lembra? você me olha com esses olhos grandes, essa barrigona despontando, outro filho, outro filho pra alimentar, eu pensei. você me olha com essa carinha triste, essa sua cara torta, um olho meio vesgo, há tempos você não tira os pêlos que nascem debaixo do nariz, fica brava quando eu chamo isso de bigode. você passou pó de arroz na cara, ficou com as bochechas brancas e o resto todo moreno, você pensa que eu gosto das brancas porque fico olhando com cara de tarado pras moças da tevê, você diz assim mesmo,"cara de tarado". e nesse dia, você tinha perfume doce de pó de arroz e a gente fez amor, de novo, e desse amor outro filho, e agora você anda ainda mais torta, com as mãos nas costas, desempregada, põe um pano de prato no ombro e diz "só desgraça, só desgraça neste mundo." diz pra eu cuidar do menino mais velho, diz que está cada vez mais velho, também nascem muitos pêlos debaixo do nariz dele, e já sabe lavar as remelas dos olhos, passa gel e deixa o cabelo espetado, eu digo "o que é isso?" ele não me responde, nunca me responde. ele trouxe um celular pra casa, um desses coloridos, toca aquelas músicas que ele gosta, "isso não é música, moleque, onde cê arranjo isso?" ele não responde, nunca responde, me olha com um olho enviesado, também é meio vesgo, igual você. você diz que já não pode mais conversar com ele, que tem que cuidar dos menores, diz que é pra eu ser útil. como se eu não fosse útil, como se eu não tentasse, e debaixo daquela mangueira, embora o sol brilhasse forte batia uma brisa fresca cheirando a manga, ou era você que cheirava à manga, à flor de manga, ê minha flor. eu pensei vou fazer de tudo pra fazer essa moça feliz, você era nova e menos preta, dava pra ver a bochecha avermelhada de vergonha. "eu vou te dar o mundo, meu bem", você riu porque nasceu pessimista, nasceu amargurada, e tinha aprendido desde pequena que não se pode sonhar (você nasceu num cubículo na cidade, eu me lembro bem) disse "uma manga já tá de bom tamanho". o menino sentou-se do meu lado, tinha comprado fone de ouvido, balançava a cabeça pra frente e pra trás, "você compra coisa demais"; ele não ouviu, eu tirei o fone do ouvido dele, o ouvido encardido. "o dinheiro é meu". fiquei quieto, calado, carrancudo, diabo de menino, não sabe viver, dezesseis anos ou coisa assim, esse mundo que a gente vive é um perigo, não se dá para viver, é tudo sujo, escuro e encardido, é tudo cheio de fio, tanto fio "você devia ir pro campo, menino, lá se vive" comecei a descascar uma manga, manga ruim de mercado. aquela nossa manga da magueira, eu alcancei uma bem no alto do pé, você riu à beça, eu me sentia um gigante, comecei a descascar com a faca que ficava no meu bolso, sempre uma faca junto pra matar cobra, escorpião, aranha, bicho ruim, me roubaram a faca de bolso, cobra, escorpião, aranha, ladrão. e eu ia descascando enquanto você ria abobada, ia tirando a casca laranja-ocre-avermelhada devagarzinho, com tanto carinho, e você se dizia arrepiada, ria esganiçada. te dei a manga pra chupar. "quer manga, moleque?" nem me respondeu, ele nunca respondia, voltou com o fone de ouvido, "quer manga, merda?" tirou o fone assustado, fez que não com a cabeça, vontade de esfregar a manga na cara dele. você chupava a manga devagar, de um jeito só seu, te dei o caroço todo "isso é meu amor, todo esse caroço" e você sorriu, os fiapos de manga amarela preso no dente amarelo, que delícia de manga, aquela manga era amarela de sol, era inteira feita de amor "viu? te dou o mundo?" e você gemeu precipitada, escorria o sulco amarelo perto da boca reconchuda, escorria o sulco por toda a terra, "todo o mundo". "come essa merda de manga, você não come nada, só come porcaria" fez que não com a cabeça, fez menção de levantar, puxei ele pra baixo "come" ficou me olhando com o olho parado, seu mesmo olho parado, sem reação alguma, "você não sabe de nada do mundo, você é uma idiota qualquer" ele me olhou parado, dava para ver a veia da têmpora do moleque vibrando, ele morria de ódio mas nada falava, "come seu imbecil", ele olhou duro, falou baixo alguma coisa, o quê? ele repetiu baixo, imbecil, filho imbecil, filho do sulco amarelo, do mundo mais bonito que eu quis, eu disse "nêga, te dou todo o mundo" mas todo o mundo é muito grande e muito ruim, é só desgraça e porcaria, é só sujeira e injustiça, eu te dei todo o mundo, sim, e ele veio com tudo de ruim que tem dentro dele: e pra aprender eu esfreguei a manga na cara suja do menino, esfreguei no olho até ardê e ele gritá e enfiei goela abaixo o caroço inteiro, de uma vez, e quis que morresse engasgado, se ela não chegasse correndo estabanada, as mãos na costa, a bolsa estourada, o sulco amarelo da terra divina, o sulco divino da terra amarela e infernal, que mande tudo pro inferno, o mundo todo, essa manga de merda que um dia eu te dei e te enfiei goela abaixo, essa manga amarela que me fez crer num mundo amarelo, mas esse mundo é amarelo - amarelo podre, e eu te dei tudo isso, pena que te dei.