dezembro 17, 2016

1: diga-lhes que parti

dourou o atum, óleo e leite de coco, ela escorreu a frigideira e o dedinho mindinho fritou ao encostar sem querer na panela ardida: ai ai ai, pulou de um pé só agitando os dedinhos no ar uma lufada de ar refrescou e meteu a mão toda na água gelada, sentindo o alívio momentâneo, olhou pela janela, o sol entrava claro e forte, o rio seguia serpenteando calmo e enorme, na beira, se retorciam vivas as raízes do manguezal, alucinavam os siris vermelhuscos na lama preta. ainda chorando um pouco, ouviu uma melodia antiga e arrastada, de certo uma música, não era o som contínuo do correr da água, nem os passarinhos naquela repetição contínua a seduzir suas fêmeas distraídas, nem o vento que passava assoviando pelas dobradiças das madeiras, de certo havia harmonia, de certo era música, de certo era rádio. pegou um garfo ainda sentindo dor no mindinho, espetou o atum e enfiou na boca mole e desengonçada, chupando o peixe entre os buracos do dente, ainda espiando pela janela, interessada em ver o que é que trazia a música, os dedos dos pés se torceram a fim de ficar na ponta, a mão no parapeito, outra garfada, e vinha vindo lentamente um barco de madeira, o motor zunindo desgraçado, mas bem vagaroso, e o rádio lamentando uma moda sertaneja. a moda lhe tocou o coração, foi o que pensou, e botou os dedinhos no colo, suava, era verão, sentiu a carne do corpo quente, bufou repentino aquele torpor do calor, aquele que lhes deixavam malemolentes, a preguiça estendida do domingo de sol, um meio-dia de tesão, foi caminhando sem perceber, a frigideira ainda firme na mão, o peixe ainda na boca, o peixe gostoso de morder, sentou-se em frente à casa e esperou absorta, sem qualquer disfarce ou que seja, o barco avistá-la. de certo vinha um homem lá dentro, um que não cantava a música, mas como um pássaro, caçava uma fêmea, de certo o homem lá estava, sem camisa, o peito suado e bronzeado, arrastava a rede de pesca vazia, as mãos eram grandes e fortes. olhou-a, e o peito queimou, repentino ela se envergonhou, algo como um vento lhe soprou nos ouvidos o ridículo, o torpor se desfez, e ela limpando as mãos sem parar na própria blusa, sem saber se entrava ou não. o barco foi se aproximando lento da costa, aportando, ele desceu, as coxas fortes, e as dela já arrepiadas, amarrou bem firme e novamente ela parou, e depois entrou em casa e se escondeu com a cortina amarelada com cheiro de sabão de coco, o mindinho quase curado, a chita fazendo cócegas no nariz, ela apertou-se a si própria, viu o homem descer, viu o homem olhar para a casa vizinha, viu o homem se aproximar. tem peixe, ele perguntou lá de fora, olhando súbito para a janela, de certo via a sombra dela, ou um pedaço do nariz fuxiqueiro, ela por um minuto de terror não soube o que fazer, outra moda começou, o coração não aguentava aquela poesia, decidiu-se quase sem pavor, levando a frigideira, deu-lhe com a veia da munheca a pulsar. ele pegou, a mão toda cabia no cabo, acenou agradecendo e sentou-se no degrau. ela continuou atrás, sem saber o que fazer, esperando ele comer, e ele tudo comeu, lambeu os beiços e tudo, num minuto só, muito gostoso. obrigada, ela respondeu, denunciando a posição exata, por não ter movido uma só parte do corpo, ereta e temerosa como um siri a ser caçado, esperançosa de ter se camuflado. mas era morena, de corpo grande, cabelo cheio, blusa amarela caindo aos ombros, cheirava a coco. ele se virou, a encarou inteira, de certo desejoso, que é que fez aí? ah queimei na panela, ele disse, venha cá, ela foi indo devagar, o torpor tomava o corpo, ele olhou o mindinho, olhou bem de perto e o enfiou na boca dele, como enfiou todo o atum, em um minuto guloso, chupou o mindinho aturdido, ela alarmada olhou pra casa vizinha e o empurrou para dentro de casa, chega, para, para, aqui não, jogou-o na cama e tirou a blusa, os dois mamilos pretos e grandes o olharam como dois olhos assustados, ele se debruçou sobre eles e por muito tempo se deliciou, ela olhava com olhos famintos, arrancou a calça dele e abençoou três vezes o pau duro, colocou-o na boca entre os dentes de atum, e certa se sentou no colo dele, no movimento trépido e mais ou menos ritmado, talvez lento como uma moda de viola, ela botando firme os dois olhos nele, seu rosto um pouco enrugado, cinquenta anos, o peito de pelo grisalho, inabalável com a sorte, o coração quase saindo do peito, um amor de vinte anos consumado, tudo imaginou. ele pediu-lhe o mindinho machucado, ainda antes de gozar, enfiando a pica contínua como a melodia repetitiva do pássaro, disse no ouvido, enfia no meu cu que sara, ela o virou e assim fez, certa e ereta e depois dois, ele gemeu um pouco e ela pediu por favor, termine isso, e de uma vez ele enfiou e o corpo todo dela sentiu frio, um repentino frio, algo polar naquele trópico, frio e seco, como um trovão desavisado no céu chuvoso, um aviso estático e elétrico, um desespero de um milisegundo. deitou-se na cama abandonada, cobrindo-se com o lençol, todo o corpo embalsamado em branco, o cheiro do sabão de coco, suor e porra a enojava um pouco, ele sentado puxava um fumo de palha, fumou-o tão rápido quanto comeu e levantou-se já arrastando os chinelos largados ao pé da cama, bem senhora, até. e ela com os olhos quase a dormir, ainda um pouco retesada e a vagina molhada, perguntou onde é que poderia encontrá-lo de novo. ele disse: passo o fim do mês em martim sá e o começo em são joaquim, no meio eu navego, não tenho lar. ela gravou essas palavras como um folhetim, repetiu-as febrilmente até o cair da noite e não pôde se levantar enquanto ainda ouvia o zumbido do barco se afastar e a moda de viola a tocar aquelas lindas palavras que lhe tocavam o coração. quando sua irmã pequena adentrou em casa, uma meninota de pés descalços, ela lhe perguntou: ainda tem um barco aí na frente? a irmã deu de ombros, disse que não, nada, os de sempre, era zé voltando, essas coisas. e um sertanejo, você tá ouvindo? não, tem música nenhuma, e você tá um pouco maluca, é melhor levantar antes do pai vir, não é porque você veio da cidade que você pode ficar o tempo inteiro aí, largada na cama. e saiu correndo já com medo da chinelada; ela ainda estatelada na cama, levantou-se docemente, tomou um banho demorado, armou a rede na varanda, disse que dormiria ali, que fazia calor demais, mesmo aos protestos de todos por conta da chuva que cobriria a noite, sustentou o pedido como em muito tempo não se via tão firme de uma decisão. esperou deitada a chuva cair e o céu abrir, mergulhada em insônia, descortinou-se um céu de estrelas sem nenhuma lua, relembrava entre dolorida e deliciada os segundos de amor, chegou a duvidar se foi real, e então chupava o dedo mindinho queimado, e se convencia de que sim, um homem chegou, aportou e a amou, ele era um homem solitário e o único bem que possuía era seu barco e o seu rádio, e o rádio tocava as mais belas canções compostas no planeta, e bem a lua sabia disso, embora se escondesse tímida em seu estado de nova, e bem a lua saberia disso: no começo do mês vou para martim sá, no final em são joaquim, no meio eu navego, ele se guiava de certo pela lua, matou a charada em dois instantes, pois era pescador e um homem do mar, um homem das marés, como seu pai era, mas era livre e gostava de fazer amor e tinha a amado, pois um homem com aqueles olhos de desejo, aqueles olhos de fogo, de certo era amor, embasbacado pelos peitos redondos dela, era certo que seu único destino possível era buscá-lo e amá-lo e a única missão que lhe importava nesta terra era amar, sentir e dar prazer. quando a lua se erguesse minguada, ela partiria, num sussurro de noite, ela partiria, só depois de ter feito esse derradeiro planejamento, chegando a contá-lo em detalhes e sorrir com uns siris também insones, adormeceu em plenitude.