novembro 21, 2015

a praça

a praça está um em polvorosa, mas quando ela não está? jana se espreguiçou igual um cachorro vira-lata. os homens andam agitados e há muitos tipos deles por aqui. os débeis moradores de rua buscam o sol e se espalham pela grama. eles também cheiram e fuçam e ás vezes latem. mas latem quando a lua vai alta no céu, porque de dia há os homens fardados que andam chacoalhando penduricalhos negros nos cintos.
eles olham e cantam a rua e rodopiam e jana se esconde entre os negrumes escuros que a sombra da noite dá, porque não quer incomodar, tampouco ser incomodada. ela está alerta e sadia de noite, mas todo passo é um risco, então vai na cautela. as luzes dos postes ora atrapalham, ora ajudam; as luzes amarelas recortadas mostram o pedaço do chão e escondem o pedaço do céu. jana se interessa pelo céu, mas os homens preferem fincar os dois pés no chão, e também o corpo, e também os pensamentos.
há os homens que passam andando apressados, aperreados com vontade de mijar também, e estes não deitam na grama, sequer pisam na grama, eles andam pelos caminhos ladeados das círculos de ferro fino; jana tenta compreendê-los, porque o caminho pela grama é um caminho curto ou um caminho que se faz e refaz de diferentes maneiras. e os caminhos ladeados, que são os caminhos cinzas, os caminhos de pedra, eles dão sempre no mesmo lugar, na mesma maneira. jana repara que estes homens tem sapatos e talvez não queiram sujar seus sapatos na grama. jana olha para os seus descalços, suas unhas são longas e pretas, jana pensa que deveria tomar um banho e talvez calçar uns sapatos; assim talvez ficasse atarefada como os homens dos sapatos.
jana só pode tomar os banhos tarde da noite, na fonte ou naquele lago; mas jana também tem medo do lago porque ali nadam uns peixes grandes de olhos esbugalhados. jana tem medo de chegar perto dos peixes e eles lhes contar maldições de outros tempos; de outras águas, jana se espanta com todo tipo de maldições; quando ouve estampidos ou o corvo piar lá em cima, ela sai correndo com os olhos espertos. jana não sabe muito bem porque sente que os peixes tem sabedorias passadas, mas ela sabe que não são todos; são aqueles grandes e coloridos, com as manchas alaranjadas ou avermelhadas espalhadas pelo corpo e aquela boca redonda delineada por um fio da mesma cor das manchas que está sempre a falar, a falar as maldições e contar as histórias, e a diluir na água o peso da História que está escrito em seus corpos escamosos igual pergaminho com aquelas manchas misteriosas. jana se aproxima sempre devagar da água do lago, sempre de noite também por causa dos homens fardados, e sempre leva um pouco só de água; fica o tempo todo a repetir um mantra que diz, peixes, peixes, não apareçam, me dêem licença, os peixes. eles eram pequenos e pareciam inofensivos, mas jana sabia que toda a gente tinha medo deles; e jana se sentia um pouco orgulhosa de si porque para olhá-los ela pedia licença e ia paciente, ela pedia licença aos deuses que ali dentro daquele olho habitavam.
jana dava muita sorte quando a lua estava cheia e refletia na água do lago; aí os peixes não vinham mesmo para a superfície, se escondiam da luz e se aconchegavam no escuro limbo do fundo do lago esverdeado. jana gostava de olhar o reflexo tremulante da lua, mas o que lhe dava alegrias infinitas é que podia se ver, como um espelho; jana, fêmea empertigada, gostava de ver como é que se parecia, como é que ia a sua aparência. ela ás vezes se espantava com a sua forma, e também se achava um pouco diferente demais dos demais.
as mulheres que passavam pela praça também se dividiam um pouco entre as da grama e as do caminho; as do caminho eram as senhoras e as meninas, calçadas e com sacolas, as da grama eram jovens provocativas que ficavam por ai esperando a noite chegar. como jana, essas jovens também habitavam a noite, porque é na noite que despertavam e colocavam seu corpo a trabalhar; elas andavam e chamavam os homens e estavam arrumadas. elas ás vezes pareciam arruinadas; mas sempre voltavam para a noite, sempre voltavam para a noite.
jana acreditava as mulheres todas se pareciam consigas mesmo, e com ela mesmo, e por isso que quando se olhava no reflexo, podia vê-las todas, iluminada pela lua cheia, que espalhava um canto suave, mas de voz rouca, como o de uma avó que não entende mais o sentido das palavras, mas as canta para continuar existindo; sua vida, sua história e sua divindade.




novembro 05, 2015

dentro dos teus sonhos.


Janaína

este é um protótipo de novela, conto ou romance.
como eu parei de escrever, decidi publicar o romance.

mil rascunhos nada concluí / 
no máximo 
vou ser ghost writer.

O homem sorriu à Janaína e Janaína retribuiu o sorriso como lhe ensinaram. Fazia uns vinte dias, ou mais talvez, que ela tinha chego às bandas de São Paulo, vinda do interior, duma cidade divisa com Mato Grosso, trazendo uma trouxa de mais ou menos umas quinze peças - incluso nesse rápido cálculo as roupas íntimas. Sutiã, possuía apenas um que valia a pena ver o mundo, um com rendinhas nas alças e na costura superior, róseo. Suas roupas não cheiravam tão bem, mas depois de lavar peça a peça no tanque da pensão que se estabelecia - provisoriamente, com a graça divina - e chegar em casa fedendo à cigarro e outros cheiros que ela não discernia muito bem (era a umidade do ar ou o suor do seu corpo, afinal?) tinha desistido de fazê-las cheirar bem. De qualquer maneira, Janaína se protegia dos maus odores e maus agouros advindos deles se besuntando de óleo e colônia. A colônia provinha ainda da sua terra, como se costumava chamar qualquer cidade de origem para os migrantes que na cidade grande se fincavam - dita sempre com um tom um pouco melancólico de modo que depois de minha terra se aconchegavam reticências evasivas... mesmo quando a terra podia lhes infingir dores ou repulsas. A colônia tinha vindo em um frasquinho de vidro guardado cuidadosamente em duas sacolas de plástico enroladas. O óleo ela comprara mesmo ali do lado da onde trabalhava. Uma loja grande, que vendia ferramentas e afins. Janaína se surpreendeu que tivessem a contratado tão logo pedisse, sem indicação nem experiência de trabalho, já que em seus vinte e alguns anos, ela tinha apenas ganhado um ou outro trocado limpando certas casas e cuidando de algumas crianças ricas lá na sua cidade. Era uma cidade que os pequenos todos se confudiam, os ricos e os pobres, ou era o que declaravam os velhos da cidade, com seu ar mítico e irrepreensível. Janaína, no entanto, apenas ouvira esta frase peculiar sair da boca dos velhos pobres, enquanto esticavam as pernas ao sol, sentados em cadeiras de plástico de praia, lá onde a praia era distante o bastante para ser comparada ao fim do mundo ou ao além. Variações de humores a classificavam como sendo paraíso ou inferno, ouvira mesmo até como o lugar onde as almas esperam o julgamento final. Foi da boca do seu chefe que Janaína tinha descoberto, neste dia mesmo, que estava perto o suficiente da praia para ouvir dizer dela da maneira mais banal possível. "Vou descer para Santos, esse final de semana. Levar a dona que não me sossega" foram as palavras ditas por ele. "Santos não presta" retrucou o outro, um moribundo de bigode que vez ou outra dava sua opinião de modo sintático e sem nenhuma brecha para alguma intervenção. Acanhada de falar besteiras ao recém chefe, Janaína perguntou ao bigodudo se a praia ficava perto dali, assim, tão pertinho que num dia dava pé de ir e no outro voltar, que era também um subordinado - é assim que são as coisas por aqui, comentou uma prima distante sua que a recebeu na rodoviária e desde então não aparecera nem ligara nunca mais. O bigodudo respondeu-lhe com uma inflexão esquisita do seu rosto, algo que fazia seu bigode felpudo se mexer. Janaína tinha descoberto que aquela expressão era o seu riso, junto dela escutava-se um som abafado e grave, como um ronco esquisito - e que à primeira escuta, não se podia nem discernir de que fonte provinha o ruído. Mas os outros homens da loja, sabiam que se o riso do homem vinha à tona, a coisa era digna de se atentar. "Que você disse, gracinha?" disse o mais novo deles, um menino atarracado de voz esganiçada e que chamava Janaína apenas de pronomes diminutivos - assim como a sua avó chamava todos os netos, e com certa insistência quando se dirigia à Janaína, mesmo que ela estivesse a dizer ordens e dar sermões. Quando Janaína ouvia o "gracinha" sentia que fizera algo de errado, como um eco da sua avó que se propagava dentro do seu próprio corpo. Sobressaltada e sem conseguir elaborar uma resposta inteligente, os homens deram aquelas risadas, que eles apelidaram de carinhosas, risadas corriqueiras desde o dia que Janaína boatara os dois pés na loja e perguntara se podia preencher a dita vaga de balconista. Eles riram, olharam ela nos olhos sem pudor algum enquanto Janaína se concentrava em olhar para os seus ombros, com os olhos postos em ângulo de noventa graus - e miúda que era, atingia os ombros ou o nariz do mais atarracado, ainda que os desviando de quando em quando para o chão, sempre os levantando para fazer uma boa impressão. "Bem, pensávamos em chamar um homem, que entendesse um pouco das coisas que vendemos aqui." "Mas, ora, se até o Bernardo consegue saber o que é o que." Mais risadas, dessa vez altas como chicotadas nervosas. "Mas sim" - e o chefe perfurou Janaína com os olhos, "pode ser; está preparada para um rápido teste?" e ele apontou para algumas ferramentas dispostas na entrada da loja e pedia para ela dizer os nomes; suando frio, Janaína apenas confundiu a chave de fenda com a chave philips. O chefe ponderou a questão em menos de dez segundos e disse, não sem antes olhar para os subordinados e pedir à eles como que permissão para contratá-la através de um sorriso de boca fechada: olhe, está tudo escrito nas caixas, se você souber ler não vai haver problemas. Simpatia é tudo nesse ramo. Os homens riram um pouco mais, Janaína resolveu rir um pouco também, pois não sabia como deveria se portar. Saiu da boca dela um sorriso torto, quase um não-sorriso, mas um esgar de lábios. "Veja, sorria um pouco, me dá um sorrisão." Janaína deu-lhe. Eles deram risadinhas baixas ao ver o sorrisão que saía da boca dela e num impulso violento que Janaína não pôde nem antever, fechou-o de supetão, angulando todo o seu rosto - "ficas aí o dia todo como se tivesse comido fruta podre" costumava resmungar seu falecido pai. "Veja, querida, não se altere,  são risadas carinhosas. Ri com a gente, e sorria sempre, a clientela gosta." As risadas carinhosas sempre irrompiam e Janaína, ao ouvi-las, escancarava seus dentes num sorriso que ela acreditava ser absolutamente sincero. Sustentava-o neste momento com tamanha persistência que o menino atarracado teve que repetir a pergunta. "A praia... a praia... é pertinho daqui...?". No segundo seguinte, irrompeu a voz lamentosa do Betão do boteco "ai... minha caipirinha!"; o chapeiro do boteco apertado e de paredes oleosas que ficava ao lado da loja de ferramentas e que costumava fumar seus cigarros na porta da loja a fim de bater um papo, principalmente no meio da tarde, onde só um ou outro conhecido bebiam. Betão era gordinho e calvo e uma voz tão maleável que qualquer grosseria saída de sua boca parecia um lamento terno. Ele costumava chamar Janaína de caipirinha com brilhos nos dois olhinhos bem redondos, soltando logo após seus costumeiros suspiros. As risadas graves explodiram e ecoaram dentro da loja depois do seu surpiro; elas pareciam cem vezes mais cheias porque rebatiam nas coisas todas de metal que existiam dentro da loja. Janaína esperou pacientemente o momento acabar. Por fim, sobrou apenas a risada esganiçada do menino atarracado, atravessando longos minutos quando todos já iam se recuperando. O chefe mandou ele calar a boca secamente e ir lá dentro procurar o que fazer, lembrando-se repentinamente dos seus queridos clientes que por eles tudo fazia - e além disso, o menino era um porre.  O grito repentino do chefe, que costumava dar uma dessas, fez voltar a loja ao seu ritmo corriqueiro, mergulhada num silêncio estridente de metais batendo em metais, da campainha que tocava quando algum cliente entrava e de passos lentos que não podiam andar muito além do que sete passos naquele espaço apinhado. Já Janaína mergulhara num tormento próprio, uma ansiedade banal mas pungente, sabia que não podia mais perguntar sem que as gargalhadas irrompessem e interrompessem o trabalho. "Bem, sim, um mapa. É preciso ver um mapa. O último mapa que eu vi, eu tava na escola. Há quanto tempo...! Eu não lembro de nada. A praia... com certeza é próxima...! Ela não poderia ser distante para sempre. Não, isso é coisa dos velhos idiotas. Mas tão perto assim...? Quanto será que custa para chegar até...?" foi quando ouviu o sinal estridente da campainha e um homem entrou a passos firmes. Janaína se desfez de seus devaneios como quem arranca uma folha do caderno sem nenhuma piedade e lhe sorriu. Além de sorrir, Janaína sabia que se apoiasse os braços em cima do balcão e posicionasse o seu corpo um pouco mais à frente os homens seriam adoráveis para com ela, voltariam sempre e o seu chefe a elogiaria, talvez a mantivesse ali por um tempo bom o suficiente para que ela pudesse... mudar para um apartamento ... ou... ir à praia, quem sabe. 

A ideia de ir à praia não abandonou os devaneios de Janaína. Era se aconchegar na cama que havia no quarto da pensão, depois de banho tomado, e descer sua mão de dedos alongados até a pélvis, a fim de se masturbar para achar o sono perdido, que a imagem vinha. Estava a demorar um pouco mais de tempo para começar a se masturbar, prática que havia adquirido desde menina, já tendo perdido as contas dos anos. Costumava ter uma perícia bem certeira na coisa, tinha desenvolvido um método tal que não dependia de enrolações, fantasias ou disparates pornográficos, apenas encaixava o dedo de maneira precisa e silenciosa no seu clitóris, não podendo acordar as irmãs com remelexos e gemidinhos quando dividia quarto. Nunca tivera sono na hora de se deitar, enquanto sua irmã mais nova parecia dormir logo que deitava a cabeça no travesseiro. A siririca diária trazia-lhe um sono pacífico, raramente atravessado por sonhos inoportunos. Não se lembrava mais porquê havia começado a se masturbar ou se haveria no seu ato tesão por algo ou alguém; no entanto, ela não gastava grandes tempos a pensar sobre isso, tinha se acostumado à ideia de que essa era sua forma de conseguir dormir e desassociado o ato ao tesão ou mesmo a algum tipo de imoralidade ou sujeira. 
Foi uma noite chuvosa que a deixou alarmada, enquanto a garoa caía fina e constante, não conseguia se concentrar; sua cabeça ia visitar a praia que morava nos seus pensamentos. Ficou indagando-se sobre ela, sua proximidade, sua cor, a textura das coisas, de que modo as pessoas se portavam, o que ela esperavam quando lá estavam como nunca havia feito antes - até então, não tinha sequer percebido que a suposição de que a praia, para os velhos de sua terra, seria o fim de um mundo e o começo de outro a impressionara tanto. Não é que impressionava, pensou rapidamente Janaína, mas estava tomando forma de obsessão, coisas que a sua avó chamava curiosamente de possessão da alma, coisa que Janaína tinha, que sua avó disse ter na juventude até ter se livrado disso com a ajuda de Deus e todos os santos e que fez seu pai falecer de bêbado. Possessão da alma, ponderou ela quando o celular apitou duas da manhã, a mesma que tinha feito ela parar ali naquela cidade, sem ninguém a esperá-la. Dormiu chorosa, agarrando-se ao travesseiro entre as pernas, sabendo já que a tormenta não a abandonaria tão cedo; não foi um sono tranquilo: depois de anos, Janaína voltou a ter um sono sobressaltado por visões desconexas, ondas de mar, almas transparentes e um vazio escuro que sobrevoava seus sonhos quando ainda era muito pequena para saber como é que se achava o clitóris. O tal do vazio escuro fazia-a enfurecer sem motivo e ela terminava por acordar gritando, molhada da cabeça aos pés, tremendo o corpo todo. Foi às sete que dessa mesma maneira acordou, com a exceção de que agora, crescida, tudo parecia mais patético. Demorou algum tempo para que se lembrasse como é que fazia parar a tremedeira; tendo de respirar devagar e lentamente, e ao soltar o ar, saía um chiado agudo, um naco da sua voz, algo que a fazia lembrar-lhe um animal qualquer. 

Andando para o trabalho, segurando um guarda-chuva comprado a cinco reais na rua e que ia de mal à pior, topou com um gato. Janaína tinha rivalidade com os gatos; quando era menor, andava de quatro a persegui-los e miar, mas os gatos da sua rua não a creditavam, não a faziam como uma de sua espécie - de jeito que foi vendo ela perseguir obstinadamente os gatos, de quatro, e lambendo os pés das cadeiras que a sua avó identificou que a menina nascera com possessão da alma e a maculou desde então. O gato estava na calçada embaixo de um toldo de uma loja fechada e olhava a chuva com olhos sonolentos. Parecia imóvel. E que nada que ali pudesse ocorrer, se um tornado viesse e abrisse crateras ao seu lado, se um raio atingisse outro gato que corria muro acima, nada faria que o gato se levantasse. Janaína agachou-se e chamou o bichano. Ele demorou a voltar seus olhos rajados de amarelo, mas quando o fez, Janaína arrependeu-se. Havia algo nos olhos dos gatos, de todos os gatos. Havia algo de errado, havia algo de ruim. Janaína foi para debaixo do toldo e começou a espicaça-lo.