abril 20, 2017

ainda moro na mesma rua

eu estou apenas triste. apenas triste. eu gostaria de dizer à alguém: na verdade, estou triste. tenho vivido cenas de uma série norte-americana qualquer, sem nenhum espectador a compadecer.
hoje arrumei o quarto. recolhi suas coisas. separei-as das minhas e coloquei-as num canto. achei o cartão de aniversário que eu te dei do último ano. ele dizia pra você viver, pra você se lembrar de quem é você. diz que eu não sei porquê te amo. eu nunca saberei, acho, pelo menos pelo próximos meses. talvez, com alguma distância. não. a distância não me faz bem àqueles que eu achei que amei. mas algo me diz, que com você será diferente. você será a primeira a não ser uma ilusão, uma história cômica. porque eis aqui os objetos espalhados pela casa, os retratos, todos os clichês, tudo que foi tocado, algumas músicas. eu poderia chorar ouvindo marília mendonça, mas foi com um girassol da cor do seu cabelo.
uma amiga nossa um dia longíquo teve pânico ao ouvir essa música. eu a compreendo e lembro de tudo isso, a piscina azul, nosso estado de cocaína. estou sóbria e por fim escolhemos todos os móveis do quarto cor da madeira. é uma cor sóbria, como se fosse neutra. mas mesmo a escrivaninha maciça sofreu e guardou seu toque. o meu corpo todo, tocado. e agora, eu me privo do contato do outro, talvez com medo de imacular essa memória grudada à pele. e agora, eu não deveria me privar de nada. nem ler cartões de aniversário, nem ouvir esta música. no mais, é certo, se eu morrer, não chore não, é só, só, poesia. eu estou apenas triste e com medo de sentir saudade.

abril 12, 2017

2: digal-lhes que sonhei

a chuva fria e fina acordou-a. sobre seu corpo repousava uma manta de algodão cru, puxou-a à altura do pescoço. ao movimentar seu corpo sentiu que o mundo estremeceu. estava deitada na rede, lembrou-se. tentou não fazer movimentos bruscos e estendeu as mãos debaixo da manta, os olhos fechados. não havia sol e não poderia dizer que horas eram, mas a claridade opaca indicava as primeiras horas da manhã. o rio murmurava aquele eterno lamento, ainda plácido, tímido, acalmando-se às margens depois de uma noite um tanto turbulenta. a maré devia ter baixado e os pássaros da manhã piavam solícitos uns aos outros sua harmonia repetitiva. tudo que havia passado no dia anterior tinha a mais azeda tônica de sonho. ela tentou se lembrar do homem, dos pelos grisalhos, do chinelo de dedo largado no chão, do gosto. a um custo, as peças se juntaram, ainda fragmentadas; ainda assim o rosto dele não vinha, brusco, inteiro, e belo, como deveria ser. tentou lembrar-se do júbilo, daquele alegria, do calor nas bochechas; com muito cuidado, quis sentir as bochechas, num ato infantil, desesperado, tateou-as, estavam frias como a manhã, estavam cobertas de orvalho. ela se integrava de forma orgânica à paisagem e de súbito tudo aquilo destoava de como tudo sempre fora. nita teria ali passado passagens de sua infância, com sua avó, e adoecendo, a adolescência, e tinha ido embora dali, para a cidade, e tinha retornado, pois seus olhos ressecavam-se de tantas noites que vagava insone, e desde então, nita, como era chamada, não entendia o que fazia ali. e por quê, agora, a sensação de pertencimento a envolvia tal como se ela tivesse voltado a ser pitica? andando chorosa aos pés da mãe e sendo embalada na rede - que parecia tão grande - por uma vó muito velha que cantava cantigas da qual ninguém jamais recordaria. ela puxou a manta para cima da sua cabeça. ser encaixada de maneira tão harmoniosa naquele morro, naquele rio, entre aquelas árvores, a ouvir besouros e maritacas, siris e peixes que pulam do rio ao ar, garças, os arbustos e, inclusive, e de maneira perfeita, com o açude de esgoto que, do alto das casas, entregavam, dia após dia, suas oferendas fétidas ao rio, fez-a em pânico. o que havia acontecido ao homem, o que havia acontecido com o seu desejo? levantou-se já barulhenta, a rede se deformou e ela sentou, tonta, com os pés descalços no chão. o mundo ainda girava um pouco, as costas doíam. nem na rede gostava de dormir, pensou, mas se aqui dormi, satisfeita, fui embalada por esta insanidade. na boca estalava a palavra que não ousava se formar, sequer dentro dos teus pensamentos - paixão. e agora sentia o amargo. a sensação de irrealidade do dia anterior era tão concreta quanto os dois pilares de madeira que a rede pendia. e a rede, por sim, aguentava trançada e firme, embora seu corpo fosse volumoso. nita, grande urso, disse a avó quando ela nasceu, gorda, marrom e cabeluda. por anos, nos seus momentos de angústia, sem saber reconhecer sua imagem nem no espelho d'água nem no espelho do banheiro, teve de se agarrar à estas palavras que sua avó cuspia rindo qual uma maritaca: nita, grande ursa, e o pai, nita, grande ursa, e as irmãs, ursa peluda. era esta sua concha, sua morada, seu último reduto. levantou-se pé ante pé e foi até a beira da casa, debruçando-se a olhar o rio largo lá embaixo correndo. vislumbrou o barco que ontem tinha ali aportado, entre a neblina, mas não fazia sol ontem? e nita, de uma vez, convenceu-se do sonho estúpido, tão estúpido, que parecia real e não, que tinha lhe dado um desejo cego de ir embora dali e seguir serpenteando o rio, seguindo um homem que não sabia o nome, se guiando pela lua, tentando encontrá-lo em martim sá. sim, em são joaquim e martim sá. lembrava-se disso tão translúcido quanto era a água, mas o eco desses nomes não faziam provocar nada em seu interior, nem uma borbulha, quem diria a corredeira, a corredeira que seria preciso para seguir alguém desconhecido. o gato preto enroscou-se em sua perna, o suficiente para tirá-la do absorto do seu olhar. chispou-o irritada e entrou para fazer o café.
o dia transcorreria sem grandes surpresas, ela começava a se acostumar com aquele sentimento de pertencer àquele lugar. lavaria as roupas dos outros, seu ofício passado através de gerações, com afinco e atenção, ciente de talvez, aquelas camisas e mantas de algodão faziam parte adequadamente àquele ambiente, às pessoas que ali moravam, comiam, tinham filhos e morriam. não tão ursa, pensava, esfregando no tanque uma blusa de lã, mais um siri vermelho, com duas e boas patas ruidosas. seu pai chamou-a, ela levantou-se do tanque, e num movimento distraído, chupou o dedo mindinho da mão, que doía. ali, ela viu, um corte quase cicatrizado, embora vermelho pela fricção e talvez irritado com o sabão. o corte existia. ela sentiu-se mole, tonta, os olhos soltos da cabeça, algo como um desmaio assombrava uma palidez na tez escura.

abril 10, 2017

penumbra

ela caminhava há mais de quarenta minutos, os ombros se encaixavam encarando o chão, as mãos soltas. embora fosse outono, o sol ardia sobre sua cabeça, a carapuça de cabelos se erguiam mais como uma estufa, apenas um filete de suor escorria ao lado do rosto. descia. não há nada mais a contar sobre ela, a não ser seu movimento último e lento: descia, pé ante pé, em um morro. poderia o morro ladeado de árvore e arbusto, teia de aranha, tronco, pedra, folha verde viva, e seu caminho desembocaria na areia, na areia da praia, na água salgada. os seus pés se banhariam leves na água gelada, a areia fina estaria quente antes. poderia o morro rua asfaltada, ladeada de túmulos de pedra, bronze, talvez prata e ouro, anjos ornamentados, jesus e nomes inscritos, acima da sua cabeça pinheiros se curvavam e faziam meia sombra. no final do trajeto, estaria no seu trabalho. não há mais o que escrever a partir daqui.
há redemoinhos escusos, como pilhas de roupa suja, um monte, sobre a sua cabeça, há escuridão sobre as ideias. um dia, ela ardia de tesão e no outro, aspirava repulsa. ela não consegue pedir ajuda, não consegue nomear o que sente.
não é tão iluminada quanto os outros.
apenas está descendo o morro e não há trejeitos que decodifiquem sua personalidade e a faça, para nós, interessente. apetitosa.
havia uma vida convulsionando há poucos dias em seu interior e foi em poucas horas que desceu um frio fio gélido de água na espinha (curvada) e toda a convulsão se viu, ante morte, devastada. estagnada não tal qual calmaria antes da tormenta, tal qual um rato que ingere veneno. e sua imagem no velório é os pés cinzentos retorcidos, a barriga gorda virada pra cima, os olhos revirados e por isso brancos, estáticos.
é preciso falar dos ratos e das baratas quando sente a podridão, para afastá-la. deixá-la próxima, e alimentá-la, para não deixá-lo pútrido, o seu íntimo.
em última instância, mandaram-me ir embora, e também ficar e esperar, mandaram-me orar, e também cuidar de mim, não mandaram-me alimentar meus desejos. sinto-os destrutivos.
enquanto amordaço-os, na esperança de que continue tudo intacto, a fina superfície sobre o planeta, a terra embaixo dos pés para que nos sustente de joelhos erguidos e calcanhares enterrados, sei que estou destruindo a mim mesma.
vou dizer claramente: calar meus desejos pútridos e possivelmente destrutivos, destroem-me. todos os dias, ela desce, encurvada, preocupada apenas com o próximo instante: se poderão se encantar com o meu sorriso, se eu conseguirei dizer alguma palavra, qualquer coisa, que faça-os sentir que eu sou importante. que eu sou alguém, que eu estou iluminada. que eu desejo. mas eu não exibo meus desejos, não exibo minhas unhas, eu retraio as minhas pernas, meus olhos evitam olhar. permaneço na penumbra.
por uma centena de vezes, nesta vida de alguns anos, meus olhos sempre evitam olhar. eu achei que havia alcançado alguma sinceridade comigo mesma e com os outros; eu contornei tudo o que é e poderia ser verdadeiro para mim mesma. eu não sei aonde me encontrar.
meus desejos não destruiriam, por fim, a vida deste planeta, nem tem fins sistemáticos, mas encontrariam o fim do que eu conheço como vida.
não me mandem embora, ao menos que eu queira. não tenha piedade.
em última instância, eu gostei de me enrolar nessa teia de aranha; mas no fim, tudo está tão interligado (eu fiz o esforço de nada separar, de tudo ser interdependente, um sistema sustentável) que se desfazer de um fio ou me enlaçar mais completamente em algum, é desfazer quase toda a teia.
eu ainda não estou preparada, então não me mandem embora ainda. eu sinto saudades.
vocês não sabem como eu sou um bicho sentimental e apegado. e como é difícil, no fim das contas, ser um pouco livre.
não há caminhos livres, quando se tem que chegar a algum lugar; no fim, ela gostaria de nunca precisar chegar a lugar algum.
e é isso que me impede de viver honestamente.