abril 10, 2017

penumbra

ela caminhava há mais de quarenta minutos, os ombros se encaixavam encarando o chão, as mãos soltas. embora fosse outono, o sol ardia sobre sua cabeça, a carapuça de cabelos se erguiam mais como uma estufa, apenas um filete de suor escorria ao lado do rosto. descia. não há nada mais a contar sobre ela, a não ser seu movimento último e lento: descia, pé ante pé, em um morro. poderia o morro ladeado de árvore e arbusto, teia de aranha, tronco, pedra, folha verde viva, e seu caminho desembocaria na areia, na areia da praia, na água salgada. os seus pés se banhariam leves na água gelada, a areia fina estaria quente antes. poderia o morro rua asfaltada, ladeada de túmulos de pedra, bronze, talvez prata e ouro, anjos ornamentados, jesus e nomes inscritos, acima da sua cabeça pinheiros se curvavam e faziam meia sombra. no final do trajeto, estaria no seu trabalho. não há mais o que escrever a partir daqui.
há redemoinhos escusos, como pilhas de roupa suja, um monte, sobre a sua cabeça, há escuridão sobre as ideias. um dia, ela ardia de tesão e no outro, aspirava repulsa. ela não consegue pedir ajuda, não consegue nomear o que sente.
não é tão iluminada quanto os outros.
apenas está descendo o morro e não há trejeitos que decodifiquem sua personalidade e a faça, para nós, interessente. apetitosa.
havia uma vida convulsionando há poucos dias em seu interior e foi em poucas horas que desceu um frio fio gélido de água na espinha (curvada) e toda a convulsão se viu, ante morte, devastada. estagnada não tal qual calmaria antes da tormenta, tal qual um rato que ingere veneno. e sua imagem no velório é os pés cinzentos retorcidos, a barriga gorda virada pra cima, os olhos revirados e por isso brancos, estáticos.
é preciso falar dos ratos e das baratas quando sente a podridão, para afastá-la. deixá-la próxima, e alimentá-la, para não deixá-lo pútrido, o seu íntimo.
em última instância, mandaram-me ir embora, e também ficar e esperar, mandaram-me orar, e também cuidar de mim, não mandaram-me alimentar meus desejos. sinto-os destrutivos.
enquanto amordaço-os, na esperança de que continue tudo intacto, a fina superfície sobre o planeta, a terra embaixo dos pés para que nos sustente de joelhos erguidos e calcanhares enterrados, sei que estou destruindo a mim mesma.
vou dizer claramente: calar meus desejos pútridos e possivelmente destrutivos, destroem-me. todos os dias, ela desce, encurvada, preocupada apenas com o próximo instante: se poderão se encantar com o meu sorriso, se eu conseguirei dizer alguma palavra, qualquer coisa, que faça-os sentir que eu sou importante. que eu sou alguém, que eu estou iluminada. que eu desejo. mas eu não exibo meus desejos, não exibo minhas unhas, eu retraio as minhas pernas, meus olhos evitam olhar. permaneço na penumbra.
por uma centena de vezes, nesta vida de alguns anos, meus olhos sempre evitam olhar. eu achei que havia alcançado alguma sinceridade comigo mesma e com os outros; eu contornei tudo o que é e poderia ser verdadeiro para mim mesma. eu não sei aonde me encontrar.
meus desejos não destruiriam, por fim, a vida deste planeta, nem tem fins sistemáticos, mas encontrariam o fim do que eu conheço como vida.
não me mandem embora, ao menos que eu queira. não tenha piedade.
em última instância, eu gostei de me enrolar nessa teia de aranha; mas no fim, tudo está tão interligado (eu fiz o esforço de nada separar, de tudo ser interdependente, um sistema sustentável) que se desfazer de um fio ou me enlaçar mais completamente em algum, é desfazer quase toda a teia.
eu ainda não estou preparada, então não me mandem embora ainda. eu sinto saudades.
vocês não sabem como eu sou um bicho sentimental e apegado. e como é difícil, no fim das contas, ser um pouco livre.
não há caminhos livres, quando se tem que chegar a algum lugar; no fim, ela gostaria de nunca precisar chegar a lugar algum.
e é isso que me impede de viver honestamente.