março 27, 2011

pode vir quente

Pode vir quente que eu estou sofrendo. A frase saiu assim, sem querer. Era para ser superior: mas na hora, a sua língua toda se embolou. Fervendo, não, não sei. Era claro que as outras meninas pareciam fervidas, elas fervilhavam, pipocavam, rebolavam - verbos tão usados, então. Fervendo, não, não assim. Só se for fervendo de dor, fervendo de febre, assim, desse jeito: 40 graus, suor, frio e delírio. O delírio de estar fervido. Fervido como estático, de não estar em movimento. Por isso parecia-lhe mais simples dizer sofrendo. Dizia-se logo de cara o seu estado, e não há de se enganar ninguém: ela não estava ali como as outras, para ferver de quentura, de delícia barata, de prazer instantâneo, miojo lamen. Três minutos não lhe era suficiente, nunca seria, pensava. Cozinhar, a fogo lento, paciência. Gostava de ser cozinhada, de ser absorvida. Não era possível ser só isso e pronto, era preciso entrar a fundo. Que tentassem penetrar no seu fundo. Ela fazia cara de quem garantia a pena. Pena, no caso, como pagar pena, sacrifício. Gostava disso, dessa palavra, sacrifício. Parecia vir acompanhada de uma cruzada profética, de promessas pagadas, de auto-mutilação. Não sorria, nem fazia caso, não veio dotada de ironia, nem mesmo de senso de humor. Fora feita para a literatura rebuscada, para o barroco de contrastes. Das metáforas, mas não das antíteses. Não é possível diminuir, como não é possível ferver. É possível sofrer, e sofrer de âmago, de grandes hipérboles. Eis sua linguagem favorita: hipérboles. E antes que chegue à fantasia, não: queria hipérboles reais. Concretas, gigantescas, de olhar e fazer chorar. Chorar. A única sedução que lhe interessava era a dor. Achava que bonita era quando sofria. Posicionava-se na cama, nua, os mamilos escuros arrebitados, a fotografia em preto e branco, a boca delineada pela dor. Nos olhos, uma vastidão de inferno e de masoquismo. Assim, só assim era passível de ser admirada. Estática, como numa pintura, porque melhor assim que em movimento, como no cinema. Cinema é tão ferver. Queria o tempo necessário para sentir, para elucidar, para hiperbolizar, fazer crescer no outro a dor que era dela. Não era possível sofrer só, era preciso trazer dor ao mundo. Era todo construído na contradição e na dor, o mundo, mas as pessoas continuavam a viver como se não. Rebolando, fervilhando, pipocando, trepando, dormindo. Tão simples. Não aceitava-o, não podia: na sua essência, desde menina, havia escolhido sofrer. Não escolhido, aceitado. E tão natural era cantar "pode vir quente, que eu estou sofrendo", apostava, em dó ré mi fá e sol, que todas as vozes que cantavam o contrário, por dentro choravam. Tinha se determinado como retrato do que não se quer ver; o contrário de Dorian Gray. Fazer de si mártir, Jesus Cristo, negra escrava. E, sofrendo, apaixonava-se e, sofrendo, morria de entrega, morria, morria toda vez que gozava, morria toda vez que via a morte se aproximar, morria toda vez que sofria, e junto com o sofro, o gozo. E, assim, vivia.

março 20, 2011

e desde quando escrever virou diarréia, ein?

março 13, 2011

marginal

tristeza minha encara escarra em ladainha. olhe bem fundo dos meus olhos, que são por assim dizer, castanhos. mergulhar nisto que é quente e úmido, que é tristeza morna e elétrica, escorrendo fluida sem correr. minha tristeza morna escorrega, não aconhega, enche-se, lentamente, toma, eu, seu, mundo. de pouco a pouco nascerei transtornada. bobeira. pequenos transtornos que fazem mudar a íris de cor e tamanho. expandem-se, encolhem-se, colorem. os olhos que te dei já não os vejo. os meus já mudaram: nunca mais o mundo será aquele. e que mundo era? minha memória vaga, lenta, sem entender. tudo aqui dentro é tão lento e quente que mal percebo. cera quente, mel de abelha, de doce a amargo e duro. tudo aqui dentro é tão grande, mas sobram tantos espaços. paredes, mil delas, delimitando e dividindo, obstruindo e obstaculando. paredes e depois dela, cômodos vazios, corredores extensos de grandes cômodos vazios. abstinando e abstraindo. não há o que fazer: o vazio preenche a tudo e não há mais espaço. no hay banda. e nem por isso não quer dizer que no hay musica. há chiados. sussurros. só sei te falar assim, em sussurro. queria te falar de um jeito que minhas palavras escorresem pelo vazio de seus poros, entrasse pelo canal comprido e desobstruido de seu ouvido, que atingissem o vazio e o enchessem em cheio, por cheio. de um jeito que não fosse preciso falar. que me olhasse nos olhos, que são castanhos e só, e pudesse saber. saber de me acariciar, e que fosse eterno o consolar. e que não se importasse com o úmido dos meus olhos, minha imensa vontade de chorar. e a boca torta que faz quando chora-se demais, quando é bem lá no fundo. bem sabe que o choro é ácido se vem de dentro, entorta a alma e por isso quando torna aos olhos, entorta a cara. e a máscara mostra, sem simetria, torto o ventre, mundo elíptico, epiléptico. todo meu corpo quer se rebelar, toda minha vida quer dar para trás, quis te falar: a partir daqui, desisto, não posso mais. acho melhor me entregar. e o meu corpo, louco, convulso, a pular para as multidões: sofro, aqui, sofro, me sinto triste, sim, triste, tão só isso: triste. porém ao contrário de tudo tenho apenas olhos marejados e a voz baixa. ao contrário de tudo meu corpo não dá menor sinal, meu olho abaixa se investigado a fundo, meu coração expurga o mergulhar profundo. estou à margem. marginal: mas não como quem quer voltar, ou como quem se orgulha de ser: marginal, por não ter coragem ou só marginal: por estar à margem, flutuando, deixando-se, amarginando-se, de tanto amargar.