novembro 22, 2010

o verão

era verão, então. e os seus cabelos ficavam mais loiros, mais descascados, tinha assim a impressão deles: como se tirassem suas cascas invernais e se libertassem para o sol que vem. e sua pele semi nua costumava se apagar junto a areia, e eu não podia mais te distinguir: eu nada mais via, seu corpo se esfarelava nas minhas mãos. foi num desses dias ensolarados, então, que talvez eu tenha te perdido, debaixo dos grãos, e eu então me dei conta, tinha você se tornado areia, e a areia bem era minha, como bem era de todos os outros. passei o resto dos dias caminhando pela beira do mar, sentindo a água gelada enroscar-se nos meus tornozelos, a areia molhada debaixo dos meus pés calejados de rocha marinha. eu já não tinha o que fazer: na minha cabeça juntavam-se cem fios brancos, e a minha conta bancária era larga feito aquele mar, passava a me meter de ser escritor e de ter você.
era muito menina, os outros podiam dizer, mas eu já era velho, viúvo e sadio, e tinha por querer ter alguém assim, ao meu lado. e desde os quinze eu te vi, chegando na minha casa com olhares assustados: olhos redondos feito duas luas brancas que me assustavam. não pude resistir, feito velho tolo que quer rememorar a coragem covarde dos dias de imaturidade. não podem dizer que fui mau, esperei a velha morrer, fiz a ela enterro digno, dei o controle da empresa para os meus filhos, cheguei-me próximo do tal e disse: arranja aquela menina, aquela que você trouxe uma vez para casa. ele mal reclamou, se quer saber, e você toda chorosa veio me dizer, que ele te amava, você o amava, coisa e tal. ele deu-me logo você, embalada com duas tranças nos cabelos, pois assim achava que infatil fazia o gosto deste pinto ardil. seu namorado, meu sobrinho, então, também sócio da empresa, me dá certa porcentagem, um pouco baixa, porque sabe da recompensa. pouco reclamo. depois de velho tudo que me resta é ter onde me deitar, e eu gostava de me deitar na sua barriga lisa e nua. você dizia rindo que meus cabelos grisalhos lhe faziam cócegas e eu gostava de me virar e perseguir sua flor-menina, e com a minha língua que nunca descansava arrancar da sua boca pequenos suspiros de amor.
assim, gostava de saber: amor, não paixão, não erotismo. assim te falava dentro dos seus ouvidos pequenos e você olhava para cima, as órbitas das duas grandes luas em uma expressão de certa ironia. e eu gostava de segurar seus braços e olhar dentro dos seus olhos e lhe insistir que era amor, era amor, era amor, até que essa ironia se desfazia, vinha um quê de choro nos olhos, e a lua até se prateava, bonita, e eu beijava, beijava, beijava.
você tinha dezesseis anos e meio quando nos mudamos para a praia. a cidade é coisa para os fracos, não há diversão, tudo é grande frivolidade, estas luzes de nada servem, estes sons vão entorpecer a sua cabecinha: e eu vou te fazer moça-menina bem cuidada, você vai ser bem educada, vai ler joyce e homero, vai saber do sol e da lua, se banhar no mar de manhã, vai ser a filha que não pude controlar, o ser humano que quis ter para mim. eu te moldarei, você é feita de areia, então: te embalo, te puxo, te molho, te seco, te arredondo, espicho, capricho. você vai sair coisa divina. já é bonita, tem a pele clarinha, a pele boa, o corpo bom, bem magra, uma cintura bem delinada, uns seios de tamanho certo e o melhor: uns mamilos claros, curiosos, pontudos, deliciosos. nunca iria dar de mamá a uma criança, não, que não vale botar mais filhos neste mundo e você choramingava e dizia: sempre quis ter filho, acho que tenho instinto maternal, faz um filho comigo. lembro que lhe perguntei: e antes de mim, onde você morava? você errubesceu, fez-se roxa. num bairro aí. diga. um de periferia, o senhor não deve conhecer. você não voltará para lá. e as duas luas se voltaram longas, nuas, amendrontadas. você quer voltar lá? aqui você tem amor, tem de tudo. e você se calou, e eu levei esse silêncio a sério: era um contrato e você não podia ter sumido.
embora eu não ache que você tenha voltado: não, já estava muito bem acostumada a boa vida para voltar ao buraco que era sua família. você não suportaria os maus tratos, as vergonhas, gente que come com as mãos, sei bem, água suja, comida ruim, e você citaria baudelaire, e quem te responderia? olhariam assustados, te bateriam, mandariam dizer menos bobagens, e você, estupeça diria: tenho duas grandes luas nos olhos e bem mereço melhor coisa. queria ter sido bom o suficiente para que você voltasse até a mim. até a esta praia, que era tão nossa, tão minha, essa praia curvada, que era você. três pintas bem claras no seu nariz formavam quase uma constalação e eu gostava de me fixar nelas imaginando-me ser também um poro da sua pele. ou uma pétala da sua flor: pétalas claras, macias, onde eu pudesse morar.
não sei que diabos me fez ficar tão encantado por ti e por suas manias e por seus pequenos detalhes: só sei que sua voz fina, quase sempre com medo, era meu pão e meu vinho, minha velhice se tornava, quase-lá, o melhor da minha vida.
você não podia ter escapado, fundido à areia que agora piso, só não podia. mas eu te avisei: disse que eu não era fácil. nunca fui. minha falecida esposa que o diria, talvez vocês duas tenham se encontrado e tenham uma divertida conversa. sei que vão gritar e falar mal, irônicas, mas no fundo se lembrarão dos suspiros que eu lhes arrancava. minha faleicda esposa teria que puxar no fundo da sua memória, já que nos ultimos anos pouco a fazia prazer, já que dela só me saia o nojo. e vocês duas, então, rindo ironicamente, escondendo os dedos por debaixo dos vestidos celestiais, se masturbariam pensando em mim, novo e robusto, enrugado e linguarudo, por dentro destas alminhas sadômicas. quem sabe um arcanjo viria e as mandaria direto para debaixo da terra: e lá me aguardariam, quem sabe, poderia eu te encontrar quando eu me for, no inferno, para nos deliciarmos?
lá não há fuga, segundo contam na bíblia, é tudo ardor, dor e quentura. tudo que a gente queria, tudo que eu te queria. lá não tem como: eu serei o teu senhor, possuidor das suas entranhas, estralhaçador da sua alminha pequena. e não terá como você me trair com moços ricos e atrevidos, mostrar a eles sua florzinha macia, deixar que eles toquem seu mamilo, deixar que cheirem seu cabelo que é feito o sol. no inferno só tem alguém que te comerá além de mim: o diabo, mas ele fede a enxofre, e você, mal acostumada a perfumes franceses, estará acorrentada de bom grado ao meu corpo.
ah, pequena, que maldades falo eu, aqui sozinho nesta praia, que loucuras estou dizendo enquanto sinto dolorosamente a sua falta, enquanto te repudio e te quero além de tudo. o seu corpo já não se reconstitui: ele é parte da praia agora, e o mar vai te engulir, e você, pequena, que sempre gostou do verão, se tornará o próprio, imperando sobre nossas cabeças, e eu, servo humilde, chorarei para sempre a falta que você me fez cometer.

novembro 14, 2010

poço

eu fui fazer pedido, pedido de quando se corta o bolo, e eu pedi pra ter você, e a faca no meio do caminho, inguiçou, escapou, não cortou. eu quis tentar explicar - então - mas é que não existe nenhum outro desejo do mundo que não seja ter você, que não seja a sua a volta. eu quis tentar explicar, deixa eu sonhar com ela, deixa eu ter ela dentro de mim, assim, na minh'alma, embora a gente pouco saiba o que é alma, embora alma seja confundida com memória, com saudade, com tudo que dói. e eu sou um poço de saudade, sou sim, sou funda, sou escura e até úmida: em volta das minhas paredes, cresce o limbo, verde, musgo e safado limbo, colado com saliva, com frivolidade, dentro de mim sou só esse limbo, tipo de coisa que faz a gente escorregar e cair de um jeito patético: caí porque não tive firmeza. então, não, minhas pernas são fracas, sim, meus braços devagar, então, não soube onde é que eu ia me apoiar, cadê, me dá uma mão preu não cair. é quase como andar no céu: veja só, que coisa boa é a literatura, ficar fazendo metáfora de dor com céu, ai! dá até pra rimar mel e fel, ai! assim como dor e amor, ai! é mesmo de se enojar, tudo isso que me faz poetizar. mas andar no céu é flutuar, voar não sei, feito anjo, não sei, e dentro de mim tem mais a ver com tentar não cair, tentar não derrapar, tentar sobreviver. nem que seja feito pra nadar, então, nem que seja feito flutuar, então, ter onde segurar já é necessidade sem maldade, então, se eu for te usar pra segurar meu coração, pra encostar minha dor, liga não, eu sou um poço fundo: cabe muita coisa dentro daqui. pode jogar de tudo, todo entulho do mundo, olha! eu já não faço restrição: tô quase como escritor de cordel nordestino, de tanto da vida apanhar, e do sol me amargar, já tem que ter muito pra me fazer chorar, olha, por trás dessa cara branca e esse corte de cabelo classe média e esses dois dreads que não tem propósito, tem uma pele rachada de sol, uns olhos pretos feito piche, a boca toda rasgada por ter sido muito salgada. é, rapá, sinto a vida sertaneja no cocoruto, o tamanho do vazio do coração dói feito barriga vazia, é, rapá, joga tudo no meu lombo que eu sou acostumada com muita carga e longa distância, sou burrinho bom, chego bem e chego longe. passo por toda terra do mundo: e tem tanta desgraça nessas terras que nem ligo se você vier com uma ou mais lágrima assim. é que junto com essa bagagem, sei que vem uns riso também, sei que vem de mar, que vem de céu, que vem de verde e de azul e de anil, de cor bonita, de gente bronzeada, de sorriso aberto, de coração e alma leve. leve. aí está, que é alma leve, dona? jamais vou saber, mas sinto sua alma leve, pequena, como o sorriso também o era, com um espaço entre os dois dentes do meio, um sorriso tão bonito (o som mais bonito do mundo, meus senhores), tão leve, tão bonito, levo aqui comigo, viu? mesmo que a faca escape, quer dizer, nós sabemos, levo você aqui comigo, viu, e espero sempre, e vou esperar, porque sou uma eterna espera, porque todos nós somos uma eterna espera, porque se não tivesse o que esperar não haveria porque viver, vou esperar a sua volta, vou mesmo, estou sim. fiz vinte anos, vinte anos, duas décadas, dois zero, coisa louca e tudo que eu tenho é te esperar, e tudo o que eu quero é te esperar, e tudo o que eu vou... é te esperar, e neste poço de espera, meu amor, vou aos trancos e barrancos pelo limbo até não sei quando, tentando não me esfolar, afinal quando você chegar... eu ainda quero ter n'alma aquilo que faz a gente rir, aquilo que a faz a gente amar de um jeito que não tem amanhã nem depois nem ontem nem jamais, eu ainda quero ter a alma leve que é pra poder brincar de pega-pega com você. porque se não, vishe, como vai ser, ein, eu carregando esse chumbo aqui dentro, só tristeza, e você, feito nuvem, algodão, céu e mar, eu quero estar preparada para quando você chegar, eu vou estar.

novembro 03, 2010

fixo

era quando os olhos dele se fixavam em mim. quando eu sentia aquele olhar, e aquele olhar via minha alma, meu fundo, minha ânsia, minhas entranhas se contorciam todas. era uma coisa estranha - um nó no estômago, um frio na barriga, arrepio na espinha. e ia descendo todo o mal estar, o incômodo, feito veneno goela abaixo, ia dar no ventre, ia melar-me toda, ia raspando tudo, ia me contorcendo, me desobedecendo, me enlouquecendo - assim, por dentro. mal sabia agir. perdia tudo, perdia o ar, perdia a fala, a concentração. já não sabia do que dissertava. mal sabia do que estava rindo, instantes atrás, esquecia a piada no meio do caminho, uma história não terminada. tinha que da um gole da minha cerveja, ou do meu café, não sei se era para um tempo meu corpo voltar a ser meu ou se alguma substância (quem sabe o álcool ou a cafeína, então) remexia no fundo o grosso e me ajudava a fingir que estava tudo bem. está tudo bem. agora passou o olhar dele, foi se embora, concentrou em outro alguém, em outro algo, não importa. mas eu queria estar em seus braços agora, não sei, de um jeito que você fizesse minhas entranhas pararem de se contorcer. ou se contorcerem até nunca mais voltarem, irreversível, e então - ah! nem sei se aguentaria. e então ah...! no fundo eu torcia que você me desse outro desse olhar, eu brincava com seus olhos daqui para lá de lá para cá, pra você atingir a medida certa do olhar. a medida certa que me faria perdida, me faria rainha. rainha de mim mesma, caos intermitente, fluxo, sangue e corrente. meio dor, meio amor. ou nada disso - é que não tem nomes, não tem palavras - era só aquele olhar, só aquilo me bastava, e aquilo era sem nome, sem definição, sem jeito. vinha sem escrúpulo e me fazia regurgitar. e eu ali, parada, sentada na cadeira, sorrindo, como se nada tivesse acontecendo. como se eu não estivesse louca por seu toque. como se eu não quisesse engulir o seu olhar. parada, sorrindo, tentando disfarçar.

e depois passava - sempre passava, e eu voltava a ser eu mesma, rindo, falando não-sei-que-lá. e você também. como se não importasse, como se não fosse nada... mas aí, talvez seja nada, talvez seja nada, mesmo, talvez... deixa quieto e passa um café pra mim, por favor.