novembro 14, 2010

poço

eu fui fazer pedido, pedido de quando se corta o bolo, e eu pedi pra ter você, e a faca no meio do caminho, inguiçou, escapou, não cortou. eu quis tentar explicar - então - mas é que não existe nenhum outro desejo do mundo que não seja ter você, que não seja a sua a volta. eu quis tentar explicar, deixa eu sonhar com ela, deixa eu ter ela dentro de mim, assim, na minh'alma, embora a gente pouco saiba o que é alma, embora alma seja confundida com memória, com saudade, com tudo que dói. e eu sou um poço de saudade, sou sim, sou funda, sou escura e até úmida: em volta das minhas paredes, cresce o limbo, verde, musgo e safado limbo, colado com saliva, com frivolidade, dentro de mim sou só esse limbo, tipo de coisa que faz a gente escorregar e cair de um jeito patético: caí porque não tive firmeza. então, não, minhas pernas são fracas, sim, meus braços devagar, então, não soube onde é que eu ia me apoiar, cadê, me dá uma mão preu não cair. é quase como andar no céu: veja só, que coisa boa é a literatura, ficar fazendo metáfora de dor com céu, ai! dá até pra rimar mel e fel, ai! assim como dor e amor, ai! é mesmo de se enojar, tudo isso que me faz poetizar. mas andar no céu é flutuar, voar não sei, feito anjo, não sei, e dentro de mim tem mais a ver com tentar não cair, tentar não derrapar, tentar sobreviver. nem que seja feito pra nadar, então, nem que seja feito flutuar, então, ter onde segurar já é necessidade sem maldade, então, se eu for te usar pra segurar meu coração, pra encostar minha dor, liga não, eu sou um poço fundo: cabe muita coisa dentro daqui. pode jogar de tudo, todo entulho do mundo, olha! eu já não faço restrição: tô quase como escritor de cordel nordestino, de tanto da vida apanhar, e do sol me amargar, já tem que ter muito pra me fazer chorar, olha, por trás dessa cara branca e esse corte de cabelo classe média e esses dois dreads que não tem propósito, tem uma pele rachada de sol, uns olhos pretos feito piche, a boca toda rasgada por ter sido muito salgada. é, rapá, sinto a vida sertaneja no cocoruto, o tamanho do vazio do coração dói feito barriga vazia, é, rapá, joga tudo no meu lombo que eu sou acostumada com muita carga e longa distância, sou burrinho bom, chego bem e chego longe. passo por toda terra do mundo: e tem tanta desgraça nessas terras que nem ligo se você vier com uma ou mais lágrima assim. é que junto com essa bagagem, sei que vem uns riso também, sei que vem de mar, que vem de céu, que vem de verde e de azul e de anil, de cor bonita, de gente bronzeada, de sorriso aberto, de coração e alma leve. leve. aí está, que é alma leve, dona? jamais vou saber, mas sinto sua alma leve, pequena, como o sorriso também o era, com um espaço entre os dois dentes do meio, um sorriso tão bonito (o som mais bonito do mundo, meus senhores), tão leve, tão bonito, levo aqui comigo, viu? mesmo que a faca escape, quer dizer, nós sabemos, levo você aqui comigo, viu, e espero sempre, e vou esperar, porque sou uma eterna espera, porque todos nós somos uma eterna espera, porque se não tivesse o que esperar não haveria porque viver, vou esperar a sua volta, vou mesmo, estou sim. fiz vinte anos, vinte anos, duas décadas, dois zero, coisa louca e tudo que eu tenho é te esperar, e tudo o que eu quero é te esperar, e tudo o que eu vou... é te esperar, e neste poço de espera, meu amor, vou aos trancos e barrancos pelo limbo até não sei quando, tentando não me esfolar, afinal quando você chegar... eu ainda quero ter n'alma aquilo que faz a gente rir, aquilo que a faz a gente amar de um jeito que não tem amanhã nem depois nem ontem nem jamais, eu ainda quero ter a alma leve que é pra poder brincar de pega-pega com você. porque se não, vishe, como vai ser, ein, eu carregando esse chumbo aqui dentro, só tristeza, e você, feito nuvem, algodão, céu e mar, eu quero estar preparada para quando você chegar, eu vou estar.