agosto 28, 2016

salve a alma de Dalila

- Sargento Diniz.
O homem se apresentou um pouco enrugado. Coturnos faziam barulho e papeis caiam ao chão.
- Arranca do cabra.
- Cassetete em mãos.
- Uso do quê?
- Usa da sua criatividade, Sargento. Eu que tenho que dar todas as coordenadas, aqui.
Bufou e escorregou na cadeira. Rangeu: vou tomar café lá fora. Arranca a informação.
Apressado, o soldado lhe deu meia dúzia de papeis dobrados.
- Achamos que podemos ter ligação.
O Sargento entornou os olhos em cima dos papeis, as letras datilografas desfocadas. Sabia ler mal e não sabia ler sem lentes e não usava as malditas lentes que davam um ar comunista a sua figura. Já era meio franzino.
Entrou meio torto, acompanhado de dois soldados. Os papeis na mão, já molhados, problema intenso de sudorese.
O comunista nu olhava-o vivamente. Estava até corado. Toda aquela vivacidade desconcertante. Um olhar mais vivo que morto. Que diabos. Que pragas.
Gritou palavrões e tentou e perguntou e não sabendo o que perguntar, perguntava onde morava. Onde morava tinha a mulher, e mulher só apertar que falava. Onde morava, tinha papeis e algum soldado podia datilografar. Aquele baitola de óculos, passava o dia todo. Quando precisava ter raiva, lembrava do rosto dele. E imaginava o rosto dele no rosto do comunista.
- Pois sim, porra.
Primeira segunda e terceira porrada. O cabra jogando. Impávido. Treinamento de ponta.

Aldo segurava o olhar e confiava. O Sargento se escorregava todo, não sabia o que dizer. Tava é se cagando. Aldo apreciava a sua sorte, outros não teriam pego um cagão da porra que só sabia cuspir palavrões. Foi enrolando na lábia. Grande lábia dos comunistas, retórica treinadíssima. Tantos discursos improvisados. Não dizia nem iria dizer onde morava.
Se não tinham o pego em casa, que se foderam.

Saiu o Sargento pálido. Nada. Rubro. Uma menina de doze anos lhe sorria. A filhota do General. Vinha ao quartel pois gostava. O pai a levava a tomar um sorvete barato que tinha na região.
- Dalila.
Dalila estava pronta.
- Esfria essa sala até o 0 grau ein.

Dalila era mestra dos botões das temperaturas. Elas regulavam pro gelado bem frio e pro quente deserto. Tática de tortura afinadíssima, importada da Alemanha. Tinha olhos redondos escuros a pele parda um quê de índia. Usava sandálias rosinhas, a roupa toda perfurmada.
Dalila sorriu, sorriu. Mexeu nas temperaturas até chegar ao 0. Olhava deliciada. As pernas curtas balançavam em cima da cadeira. Sou a rainha disso aqui, ó. Eu faço nevar, eu faço ensolarar. La-la-la.
Passava o dia todo assim, no esquenta-esfria. E quando cansava, ralhava fina com os soldados:
- Arranca logo isso que eu quero tomar sorvete!
Quando a temperatura ia amena, os sargentos ou generais entravam. Mas os papeis estavam sempre desorganizados. Alguém descobriu que era enteado de um comunistão chefão, um monstrão liquidado há duas semanas. Um alívio.

- Homem, nós sabemos do teu padrasto. Ele disse teus nomes. Nomes reais.

Aldo levantou os olhos, um pouco cansado. Quando o frio cobria a pele saraivada de porrada ou do quente, ele pensava. Vou sair daqui sem contar nada. Enrolou, enrolou e nada.

- A gente vai prender o homem, porque o homem é comunista.

Eles se cansavam. O General voltava do café falido e desabava. Chorava no banheiro e a filha corria a limpar as lágrimas. Que é, papai? Dalila, filha, eu queria é tá tomando pinga na Riviera. Queria era matar esse filhodaputa. Mas eles querem mais, saber dum caralho de coisas. Pra quê, pra quê.

Dalila rezava anjo da guarda, mãe católica que ensinou. Ajuda papaizinho. Libera esse homem daqui, mete ele nas cadeias. Quando ele for pras cadeias, eu quero um sorvetão. Um sor-ve-tão. Dalila ia crescendo com uns meses. O Sargento Pávido ficava bobo de canto de olho. Dalila também olhava, para cada um. O homem uniformizado é o homem bonito. Esquenta esfria esquenta fria.
Pávido uma vez a levou no banheiro, já viu pica? Ela olhou o morcegão.
E pegou com as mãos próprias porque lembrava um cassetete. Ele tirou da mão ruborizado. Menina do capeta, chispa.
Ela chorou chororô pro pai e o Sargento mudou de jurisdição.

Aldo foi preso. Elza soltou informação. Mas a ditadura ia nos seus finados. Todo o uniforme verde ia se borrando de preto. Dalila ainda no esquenta-esfria, já tediosa.
Ficou dois anos presos, porque guerrilha não podia admitir que se houve. E tribunal é coisa séria. Lei é pra se seguir. Continência, perdão.

Dalila tem 45 anos e é uma mulher nula. A anistia preservou o pai por muitos anos, velho e falando nada com nada. Aqueles papeis que ninguém entendia, queimaram. Dalila lembra muito pouco. Faz jantar, esquenta e esfria. Acabou se casando com um comunista. Depois divorciando. Depois dos quinze e o fim da ditadura, tesão nenhum sobrevivia nos soldados. E o sangue dos militares era feio, era fétido.

Dalila era cheirosa.

Acordou suada pensando no soldadinho franzino. Um dezoito anos tão novinho. E os dedinhos dela que faziam mágica. Queria um desses de novo. Sozinha, o quartel-general costumava assombrá-la.

O ex-marido comunista tinha a feito desmanchar todas as sensações boas que advinham do esquenta-esfria, do tesão dos soldados, daquela coisa de se sentir rainha. Mas depois ele era um merdão. Pegava meninas mais novas, e nela batia.

Dalila foi morar com o filho no apartamento. O maldito usava vestido. Dalila encharcava os olhos de ver aquele netão dizendo afetado: sou toda mulher. O ex comunista e mesmo ela sabiam: isso é castigo. Castigo pelo vô, por ela. Foi tanto esquenta esfria, que a sua cria é assim também. O ex não queria saber do filho. Cargo público porque era do Partido dos Trabalhadores. Ganhava dinherama e mandava pra casa. Mas lá não pisava - em casa de baitola, não.
Tudo em paz, Dalila.

Sem Deus, nem anjo da guarda. Repetia Dalila. Sem pai, nem marido e um filho todo esquisito.

Aos 61, já livre do filho-filha, namorava um soldadinho interesseiro. Seu nome perigava nos processos, o Partido do ex destroçado, a honra do pai toda manchada. Lubrificava a vagina e mandava-o meter.
Amava-o tanto que o apertava, apertava.
Na rua e no bar, bebia muito. O soldadinho virava PM.

Dalila dava show e dava festa e mostrava a teta. Não era nula coisa alguma e tinha coisa pra falar. Tudo é merdão, mas meu pai, que homem. Que Homem. e meu filho, se quer saber, Que Mulher, que mulher.
O PM cansado da velha. Mete ela na cadeia, mete sim. Ela frequenta o Bar do Jão, na 13 com a João Rabelo. Mostra a teta e lambe o asfalto, porque se acha protegida. Chega e prende e prende pra véia enlouquecer. Enlouquecendo, mando ela pro asilo. No asilo, eu fico livre.
O PM-soldadinho vinha do Norte, família passava fome. A mãe raras vezes falava, faltava-lhe tônus. Veio pra São Paulo na casa dos irmãos, o primo disse: vai ser polícia. Polícia tu faz o que quer.
Ganhava porca mal. Nada. Nenhuma mulher, só puta. A véia era bonita e tinha teta grande. E uns olhão. Contou toda a história dela no bar, só os dois. Foi paixão, foi sim. Ele jura. Do motel foi pra casa dela, mamão picado e paraíso. Ela tinha um casão, acumulou um certo dinheiro. Vivia bem pra beber todo dia. PM-soldadinho José achava que esse dinheiro tinha de ser redistribuído. Lá no Norte, eu com tão pouco, mainha morria de fome, a mula magra.
Sonhava o Robin Hood nordestino. Mãe, te vingo. E com essa, eu faço outra historia, vou ajudar as crianças que precisa. Não é vingança, comentou pro Cristo pendurado na parede, é justiça.

Foi Jesus que lhe deu o toque. Vai. Mãezona na cadeia - é assim que ele a chamava. Dito e feito, enlouqueceu.

Jussara Luz batalhava na rua. Silicone e aguardando cirurgia, Mulher Completa, eu saio dessa vida. Não amava ninguém e cobiçava só o ser. Pretendia ser budista, depois de puta. Negaria-lhe os desejos. Toda a herança da sua família, tinha de apagar. Para se redimir, só o Nirvana. Vez ou outra passava na casa da mãe para jogar uns ovos, quebrar janelas, dar prejuízos. Que a desgraçada não era pouca. Viu a placa vende-se.

Jussara Luz não pode crer na sua sorte quando descobriu que o PM-soldadinho José pensou que ia ficar com o dinheiro. Deu jeito de pagar advogado chorava e trabalhava em dobro. As unhas longas. E pensava: primeiro me vingo, depois me purifico. Preciso sair disso.

Foi 70%, 30 pro José. O tribunal parecia um pouco confuso. Falou das caixas de madeira: esse mulato e essa travesti. E uma mãe morta na loucura, sem testamento. O testemunho vergonhoso. Dalila repetia: pica, pica, pica, pica.
Jussara riu, José se emocionou. No seu sangue, vivia o espírito da mãe. José abalado. Jesus Cristo, que foi que você arranjou?
Jussara abandonou os sentidos. José viveu como pode, teve mulher, dois filhos. Não contava a história, mas todo dia, ajoelhava e rezava: salva a alma de Dalila, salve a alma de Dalila.







agosto 02, 2016

duas meninas no metrô. são idênticas.
uma é negra bem escura, os cabelos longos, lisos.
a outra é parda jeito de índia, o nariz batata.
as unhas feitas de uma. um dos dedos adesivo, nos outros rosa.
a outra quebrou uma das unha. são longas.
tem uma tatuagem de índio, cocar com penas.
o corpo é idêntico.
a bunda grande, os peitos pequenos.
o pescoço de uma, um pouco mais alongado.
a negra olha constantemente a outra.
a outra parece aflita, mexe no celular.
ou será distraída?
usam tênis baixos, confortáveis, bonitos.
na saída, a negra toca levemente a outra, no ombro.
caminham juntas, não se falam.
uma negativo da outra.


cãibra

cãibra
o sol a pino meio-dia
anuviado
tudo é seco

claro
rajada de vento no cerrado
balaçoa a árvore
retorcida

um cão
de olhos fastigados
resbola na cadela
o asfalto

sirene
o constante dos autos
carimba e carima
as tragédias