dezembro 29, 2009

pequenininha, viu?

ó, cuidado, é que eu sou pequenininha, viu?
tô de perna cruzada, tô casulo, sô semente, viu?
de longe, você nem me vê.
e cuidado pra não pisar, se você for desavisado.
esses olhos indiferentes a tudo machucam, viu?
e esses pés insandecidos à busca do não-visto, eles vão me atropelar, vão, sim.

eu sou pequenininha ainda, nem sei gritar, nem sei mentir.
não grita demais comigo não, se eu fiz mal, eu não quis, viu?

eu sou pequenininha, cuidado, você vai me machucar.
sou conchinha, viu, frágil e quebradiça.

pra você me esmigalhar basta pouco,
minha alminha toda se contorece
e vira um sopro sem vida nem cor, que feiura que é!
fica aqui pousando, sem força de voar,
sem força de vencer, de pedir, de implorar

mas isso é porque eu sou pequenininha, e não quero aguentar, viu?
eu não sei ver impetuosidade, não sei ser agressiva, não,
não quero gigante me cuspindo, não quero mão me arranhando, tá?

é que eu sou pequeninha, e qualquer soprinho vai me levar longe,
vai me levar longe, viu
vai me machucar por dentro, viu
e não tem jeito não, em gente pequena, sabe
quando machuca uma vez, não tem mais jeito, cortou-se o corpo todo!

dezembro 11, 2009

a caveira

eu tinha uns 10 anos quando a vi pela primeira vez. foi na casa da vó, que também era minha, já que fui filho de mãe solteira. sempre fui curioso, e perscrutava todos os cantos daquela casa que me parecia enorme e mágica. mas nada mais me encantava que o quarto da vó. era só ela sair, cantarolando com sua língua enrolada, que eu entrava furtivamente. abria as portas de madeira do armário, e ficava olhando, olhando, olhando. havia tanta roupa, todas com cheiro de coisa velha, pérolas espalhadas, pó de arroz, eu tinha certeza que ali se escondia um tesouro. uma coisa valiosa, quem sabe, um baú cheio de ouro. e pirata que sou, sacava minha espada, nada mais que um galho seco, e ficava cutucando os monstros que dormiam ali dentro daquele escuro. numa dessas vezes, eu a encontrei.
primeiro cutuquei algo duro, e vi algo branco dentro do escuro. cintilava. cada dia mais eu me aprofundava, certo que ali tinham enterrado o tesouro que eu tanto procurava. não sei quanto tempo demorou para eu tomar coragem de, com luvas de inverno cobrindo as mãozinhas pequenas, pegar logo aquilo e ver o que era. o que me deixaria rico, para comprar uma ilha, pra mim e pra minha mãe. ainda me lembro do terror que me tomou quando aproximei aquilo dos meus olhos. talvez tenha ficado pálido, tão mais pálido que aquele osso, mas não me desse conta, nem das pupilas dilatadas, só das pernas que tremiam e de uma certa tontura dentro da cabeça.
era, sim, uma caveira. foi a palavra que eu pensei na época, uma caveira, como aquela desenhada nas bandeiras do pirata. se um pouco mais velho fosse, talvez tivesse dito crânio, mas isto tudo me parece muito científico. e não há nada de científico nos olhos opacos, no maxilar solto com alguns dentes amarelados, naqueles buracos onde deveria se enfiar um nariz, as rachaduras no branco amarelado. era uma caveira, sim, assustadoramente, como num filme de terror.
não sei quanto tempo guardei aquilo só comigo. me apertava o coração, mas quando podia, ia ver a caveira no fundo, olhar para ela com mais carinho, e tentar dela ser amigo. o sangue que corria, a adrenalina que despertava, fazia-me sentir mais vivo naquele mundo tedioso de adultos que eu vivia metido. um dia, minha vó me pegou remexendo no armário. puxou-me o braço com força e olhou com seus olhos muito negros, o que é que eu estava procurando.
inchei meu peito de menino, fiz de conta que era homem e perguntei o que é que ela pensava guardando uma caveira no armário. lembro-me da sua reação confusa, primeiro soltou meu braço, depois gritou para nunca mais mexer ali. e quando me viu triste, disse na minha orelha, com aquela língua enrolada:
- é a cabeça do seu avô.
e por muito tempo nunca mais falamos no assunto. a imagem que eu tinha da minha avó sempre fora assustadora, tinha um nariz adunco de bruxa, e cabelos compridos grisalhos, e aqueles olhos severos. pouco falava com as pessoas, mas muitas vezes a vi conversando com as plantas, com os pássaros e as formigas, e também com os móveis, com o chão, com a panela e até com o feijão. eram murmúrios secos que não se entendia nada. ainda hoje guardo dela um retrato que usaria para retratar uma bruxa dos tempos antigos, caso as histórias moralistas dos tempos modernos acabe com a força dessa imagem complexa e encantada.
depois desse dia, ela não mais tinha pudores com a tal caveira, quando só estava eu e ela em casa, ela sumia, com seus passos tímidos. a via agarrada com a cabeça do meu avô, fazendo carinho na cabeça calva do osso, e choramingando baixinho. eu saía correndo, porque tinha dó, tinha vontade de chorar também, pouco conhecia meu avô, mas muito me deprimia saber minha vó tão saudosa ainda. um dia lhe perguntei se guardava era pra lembrar do vovô. primeiro me olhou longamente, e decidiu me contar.
- tem uma magia também, que me contaram, que se raspa o osso da cabeça na primeira noite de lua nova, faz a pessoa querida voltar do mundo dos mortos.
sorriu, triunfante, pra mim. parecia feliz com a solução para todos os seus problemas, um zumbi carcomido pelos vermes seria-lhe suficiente para escapar àquele fim de vida. e diante do meu desapontamento, acrescentou:
- é que sou um pouco de bruxa também.
ela vinha dizendo isso com mais frequência, e era motivo de piada entre meus tios. minha mãe, única filha da casa, que chorava por ela, porque sua mãe tinha perdido a sanidade e ninguém tinha sensibilidade de entendê-la. minha mãe sempre foi moça muito sensível, que condenava com vêemencia qualquer tipo de ofensa. mas também, não acreditava que ela era bruxa. isso, só eu sabia, e ainda sei, no íntimo da alma que ainda é criança e mística, o quanto de magia ela fazia, sem poção nem varinha.
morreu uns dois anos depois, e quando estava na cama, muito doente não sei do quê, mandou chamar-me. fazia tempo que já não falava com as pessoas, e principalmente comigo, apenas trocava olhares cheios de significado que eu nunca pude compreender completamente.
- escuta, menino, não guarde o crânio da sua vó, não.
- mas por que? você não quer ser eterna?
- não, menino, eu quero é voltar pro mundo dos mortos, que essa magia só fez prender o espírito do seu avô nesta terra desgraçada, que ele dormiu comigo todas as noites, mas eu ouvia seu lamentar nos meus sonhos.
não parecia que tinha remorso por tratar mal assim, o espírito do homem que tanto amava. e como se lesse meus pensamentos, bruxa que é, explicou-me:
- mas teve serventia o espírito, pra eu não ficar sozinha neste mundo que eu não conheço mais. Agora ele já se foi, também não sei aonde foi. eu quero mais é ficar no céu, e voltar a ser criança, menor que você. quero reencontrar meu pai e minha mãe, que eu era feliz, eu era feliz aquela época, menino.
umas duas horas depois, se fez toda a choradeira, e o corpo da vó se transformou num caixão cor de vinho, que colocaram ao lado do vô. melhor seria se fosse junto da mãe e do pai, mas ninguém me levou a sério, dizendo que as pessoas mais velhas não se lembram mais da infância.
meus tios e minha mãe já se foram, e sou senhor, mas minha infância eu nunca esquecerei, nem daquela caveira cor de cera, que foi demolida junto com a casa, implodida. e nos restos da construção, que fui ver, já com mais de vinte anos, pude distinguir um pózinho branco que cobria uns destroços de madeira. saí correndo, pra não me lembrar dos olhos sem olhos que tanto me olharam na infância perdida.

dezembro 03, 2009

aquoso

se sentia como em solução aquosa. derretida, esparramada, sem nenhuma consistência. como se o corpo fosse, também, aos poucos, abandonando-a. será possível que tudo fosse embora, fossa vazar pelos poros mal tampados? deveria ter esquentado por mais tempo, talvez. ou ter congelado, pra ver se solidificava. talvez se soubesse evaporar, evaporasse assim, o sentimento que ainda restava por ele. assim isso bastaria, uma sublimação perfeita. não havia no seu dicionário de química, na verdade, conceito que explicasse a tristeza de chumbo que arrastava-se por dentro dela.

a cidade iluninava-se de esperança natalina. grande besteira, grande besteira. mas ao lado dela, tudo parecia um pouco mais colorido, e até entendia as luzes, e a felicidade alheia que o mundo se enfeitava. dentro do seu peito se acendia uma luz há muito esquecida, apagada, amortecida pelos tombos que levara. contava as horas para vê-la, para ouvir ela cantar, o samba dos seus pés, os discursos que ele esqueceu guardado nas gavetas de sua juventude. na sua casa, sentia-se pesado, preso, como refém, nas garras de sua mulher triste e arrependida. contava cada minuto para dali sair, para ganhar o mundo, e ver a menina que coloria seus sonhos. cansava-se já da sua antiga vida, e tudo que queria era recomeça-la doutro jeito, doutro lado.

o natal adentrava a cidade. as luzes, e ah! e as luzes. se refletisse o que dentro dela tinha, estava tudo apagado e silencioso. talvez um suspiro, talvez um soluço contido. não poderia aguentar. sentia a dor no seu peito a maior do mundo, era sua, e era injusta. queria tanto que ele ficasse do seu lado, queria tanto que ele a olhasse com os velhos olhos. tinha cortado os cabelos, comprado um batom vermelho, e tentado fazer regime para tirar os pneuzinhos. tinha feito o jantar, comprado um vinho. mas os olhos dele se distanciavam, a janela procuravam, para o mundo se dirigiam, e dela, se esqueciam.

conheceu-a na sala de aula. sentava-se nem na frente, nem no fundo, difícil foi estereotipar sua personalidade. não era comunista, tampouco direitista. também não era aficcionada por poesia, e nem sabia de cor a história do mundo. mas tinha um sorriso leve, um jeito de andar de pássaro, como se voasse, flutuasse sobre o chão, e entedesse levemente de todos os assuntos, sem jamais se embrenhar no profundo. gostava de dançar, e de transar até amanhecer. tudo isso, tão pouco e tão melífluo, o fisgou. e ela o olhava com respeito, primeiro, e respeitava certa hierarquia, mesmo agora. na cama, o chamava de professor e mordiscava a sua orelha. nunca nem perguntou se era casado. achava tudo o mais grande sujeira, e importava que buscasse seu delírio leve e saboroso. ele assim, era outro, estava louco.

era dia 24, e ela fez macarronada. o seu vestido era vermelho. sentou-se à frente dele, com os olhos aquosos - como não poderiam estar por esses dias? contou de como estava cansada de trabalhar no laboratório, da sua dificuldade de fazer a solução, mistura exata, que andava desastrada. ele disse que estava feliz. e os olhinhos dela, novamente, encheram-se de lágrimas. brincaram o vinho, com saúde. ela disse amor e procurou os olhos dele para corresponder. não deram bola. falaram de amenidades. até riram. ela colocou cartola na vitrola, ganhada da vó, o apartamento exalava odor de família unida. depois que acabou o jantar de natal, devoraram a torta holandesa comprada. trocaram presentes. ele deu uma pulseira. ela um abajour em forma de globo, com o mapa múndi.

lembra que a gente ia viajar o mundo, amor?

ele não se lembrava. o jantar se arrastava lentamente. sentia dó dela. via os olhos dela procurando os seus, as mãos tentando encostar sem querer nas suas, como adolescente quando se apaixona. mas não podia, assim, abandonar sua felicidade. ela era mulher forte, ela era sadia, e tinha amor pra dar. era inteligente e afiada. acharia logo outro num minuto, encontraria a felicidade que merecia. sim, ela ia. como ele, em círculos, e a vida se completaria.

acho que não vamos viajar muito, não. eu tenho outros planos.

a garganta dela emudeceu, secou. não achou palavras para perguntar dos planos. por muito tempo, ficaram em silêncio. a mesa com a tolha amarela, os talheres sujos, a torta, a árvore de natal solitária sem luzes de piscar. por muito tempo, mergulharam em seus pensamentos. na verdade, ela tentava mergulhar nos seus. não queria acreditar - não podia acreditar. hoje era natal, e eles podiam ser felizes juntos, como outros natais. ela tinha que. que...

vamos beber o vinho na cama?

sorriu, tentando ser sedutora. lembrou-se das suas varizes, dos pneus, a velhice dos quarenta que arrebenta qualquer ego diminuído e o faz ficar sumido.

eu estou com sono.

foram dormir. assim pensaram. ela ficou de calcinha e sutiã. beijou a boca seca dele. ele sorriu, constrangido. deitou-se na cama. ela fazia carinho nas costas que ele deu. esfregava os pés nos pés que não se mexiam. colocou a mão no pênis que há muito nem via. gastou sua saliva em beijos melosos nos ombros que ele oferecia. o telefone tocou.

ele se levantou num minuto. sentia a saliva dela nas costas, meio gelatinosa. não gostava. precisava sair dali num minuto. do outro lado da linha, sua menina tinha voz alegre. contava de um samba de natal que soube que ia ter, para poucas pessoas, e que depois podiam comemorar, ela estava ardendo hoje, professor, vamos comigo, porfavorzinho. entrou no quarto, e a encontrou com os olhos cerrados. vestiu-se.

aonde você vai, no natal?

parece que vai ter um samba...

e... eu?

não leva a mal, lara, mas... é dos professores da universidade... sabe... é pros amigos, só vai ter professor.

beijou a têmpora dela, sem carinho nem gosto. encontrou sua menina, a cidade estava tão bonita, ela ria e comentava da vida, ele ria e concordava, como música, ela era sua melodia, e ele acompanhava seus compasso com ritmo cadente. dançaram toda a madrugada, molhados em suor e felicidade.

ela sentou-se, com o vinho na mão, e chorou. molhada em lágrima. queria só um presente: o natal, junto dele. uma despedida. nem disso era digna? nada mais adiantaria. o fim era o presente que a vida oferecia. o mundo parecia desmoronar, em moléculas, em átomos, cada vez menores, cada vez mais diluídos e sem esperança nenhuma de voltarem a se reagrupar, de voltaram a ser o que era antes. nenhuma colisão aconteceria, a não ser das suas convicções com a realidade invicta e fria.

nesta noite de natal, choveu. tudo alagou.



(as rosas não falam - cartola)