eu tinha uns 10 anos quando a vi pela primeira vez. foi na casa da vó, que também era minha, já que fui filho de mãe solteira. sempre fui curioso, e perscrutava todos os cantos daquela casa que me parecia enorme e mágica. mas nada mais me encantava que o quarto da vó. era só ela sair, cantarolando com sua língua enrolada, que eu entrava furtivamente. abria as portas de madeira do armário, e ficava olhando, olhando, olhando. havia tanta roupa, todas com cheiro de coisa velha, pérolas espalhadas, pó de arroz, eu tinha certeza que ali se escondia um tesouro. uma coisa valiosa, quem sabe, um baú cheio de ouro. e pirata que sou, sacava minha espada, nada mais que um galho seco, e ficava cutucando os monstros que dormiam ali dentro daquele escuro. numa dessas vezes, eu a encontrei.
primeiro cutuquei algo duro, e vi algo branco dentro do escuro. cintilava. cada dia mais eu me aprofundava, certo que ali tinham enterrado o tesouro que eu tanto procurava. não sei quanto tempo demorou para eu tomar coragem de, com luvas de inverno cobrindo as mãozinhas pequenas, pegar logo aquilo e ver o que era. o que me deixaria rico, para comprar uma ilha, pra mim e pra minha mãe. ainda me lembro do terror que me tomou quando aproximei aquilo dos meus olhos. talvez tenha ficado pálido, tão mais pálido que aquele osso, mas não me desse conta, nem das pupilas dilatadas, só das pernas que tremiam e de uma certa tontura dentro da cabeça.
era, sim, uma caveira. foi a palavra que eu pensei na época, uma caveira, como aquela desenhada nas bandeiras do pirata. se um pouco mais velho fosse, talvez tivesse dito crânio, mas isto tudo me parece muito científico. e não há nada de científico nos olhos opacos, no maxilar solto com alguns dentes amarelados, naqueles buracos onde deveria se enfiar um nariz, as rachaduras no branco amarelado. era uma caveira, sim, assustadoramente, como num filme de terror.
não sei quanto tempo guardei aquilo só comigo. me apertava o coração, mas quando podia, ia ver a caveira no fundo, olhar para ela com mais carinho, e tentar dela ser amigo. o sangue que corria, a adrenalina que despertava, fazia-me sentir mais vivo naquele mundo tedioso de adultos que eu vivia metido. um dia, minha vó me pegou remexendo no armário. puxou-me o braço com força e olhou com seus olhos muito negros, o que é que eu estava procurando.
inchei meu peito de menino, fiz de conta que era homem e perguntei o que é que ela pensava guardando uma caveira no armário. lembro-me da sua reação confusa, primeiro soltou meu braço, depois gritou para nunca mais mexer ali. e quando me viu triste, disse na minha orelha, com aquela língua enrolada:
- é a cabeça do seu avô.
e por muito tempo nunca mais falamos no assunto. a imagem que eu tinha da minha avó sempre fora assustadora, tinha um nariz adunco de bruxa, e cabelos compridos grisalhos, e aqueles olhos severos. pouco falava com as pessoas, mas muitas vezes a vi conversando com as plantas, com os pássaros e as formigas, e também com os móveis, com o chão, com a panela e até com o feijão. eram murmúrios secos que não se entendia nada. ainda hoje guardo dela um retrato que usaria para retratar uma bruxa dos tempos antigos, caso as histórias moralistas dos tempos modernos acabe com a força dessa imagem complexa e encantada.
depois desse dia, ela não mais tinha pudores com a tal caveira, quando só estava eu e ela em casa, ela sumia, com seus passos tímidos. a via agarrada com a cabeça do meu avô, fazendo carinho na cabeça calva do osso, e choramingando baixinho. eu saía correndo, porque tinha dó, tinha vontade de chorar também, pouco conhecia meu avô, mas muito me deprimia saber minha vó tão saudosa ainda. um dia lhe perguntei se guardava era pra lembrar do vovô. primeiro me olhou longamente, e decidiu me contar.
- tem uma magia também, que me contaram, que se raspa o osso da cabeça na primeira noite de lua nova, faz a pessoa querida voltar do mundo dos mortos.
sorriu, triunfante, pra mim. parecia feliz com a solução para todos os seus problemas, um zumbi carcomido pelos vermes seria-lhe suficiente para escapar àquele fim de vida. e diante do meu desapontamento, acrescentou:
- é que sou um pouco de bruxa também.
ela vinha dizendo isso com mais frequência, e era motivo de piada entre meus tios. minha mãe, única filha da casa, que chorava por ela, porque sua mãe tinha perdido a sanidade e ninguém tinha sensibilidade de entendê-la. minha mãe sempre foi moça muito sensível, que condenava com vêemencia qualquer tipo de ofensa. mas também, não acreditava que ela era bruxa. isso, só eu sabia, e ainda sei, no íntimo da alma que ainda é criança e mística, o quanto de magia ela fazia, sem poção nem varinha.
morreu uns dois anos depois, e quando estava na cama, muito doente não sei do quê, mandou chamar-me. fazia tempo que já não falava com as pessoas, e principalmente comigo, apenas trocava olhares cheios de significado que eu nunca pude compreender completamente.
- escuta, menino, não guarde o crânio da sua vó, não.
- mas por que? você não quer ser eterna?
- não, menino, eu quero é voltar pro mundo dos mortos, que essa magia só fez prender o espírito do seu avô nesta terra desgraçada, que ele dormiu comigo todas as noites, mas eu ouvia seu lamentar nos meus sonhos.
não parecia que tinha remorso por tratar mal assim, o espírito do homem que tanto amava. e como se lesse meus pensamentos, bruxa que é, explicou-me:
- mas teve serventia o espírito, pra eu não ficar sozinha neste mundo que eu não conheço mais. Agora ele já se foi, também não sei aonde foi. eu quero mais é ficar no céu, e voltar a ser criança, menor que você. quero reencontrar meu pai e minha mãe, que eu era feliz, eu era feliz aquela época, menino.
umas duas horas depois, se fez toda a choradeira, e o corpo da vó se transformou num caixão cor de vinho, que colocaram ao lado do vô. melhor seria se fosse junto da mãe e do pai, mas ninguém me levou a sério, dizendo que as pessoas mais velhas não se lembram mais da infância.
meus tios e minha mãe já se foram, e sou senhor, mas minha infância eu nunca esquecerei, nem daquela caveira cor de cera, que foi demolida junto com a casa, implodida. e nos restos da construção, que fui ver, já com mais de vinte anos, pude distinguir um pózinho branco que cobria uns destroços de madeira. saí correndo, pra não me lembrar dos olhos sem olhos que tanto me olharam na infância perdida.