agosto 27, 2009

varizes

a perna mulata era de um tamanho grotesco. e aquela mini-saia, uma indecência da modernidade, vermelha e pregada, de um mal gosto canino, deixava ver tudo aquilo que tinha a oferecer. vi e estudei os buracos roxos que permeavam toda ela, as varizes que se estendiam feito rios leitosos. rios, não. eram rachaduras. pediplanação em tal terreno pedregoso e seco. rachaduras em que corria certa amargura, e me dava tamanha repugnância. mesmo assim, transpirava sexo. era o cigarro acendido no canto da boca, e os peitos saltados, gordurosos, ensaboando a visão das minhas retinas masculinas. levei-a para o quarto. ela tinha olhos tristes, tristonhos, tristinhos de tudo. pretos, pretinhos, como toda aquela população parda e ingrata. mas cabia tanta tristeza ali, quanto não cabia nas rachaduras das suas pernas, que embora pareciam estar putrefadas, tinham agilidade o bastante para realizar bem o trabalho. eu, que era franzino, e sem dinheiro, e usava um óculos com a lente rachada, eu, que era branco, e só menino, um só homem sem ter mais distração, me afoguei dentro daquele corpo enorme, aquele um corpo negro, percrustando seus buracos, me enfiando nas suas depressões, tomando a água que dali escorria, pelas grutas soturnas, os pedregulhos encrustados, a dureza, e a moleza de esponja.
meti nela olhando nos olhos tristes. e todo meu ser também foi triste. gozei e lhe perguntei por que é que tinha olhos tão tristes. já disse o quanto eram me parecido como fossa, um mar de negrume, uma tristeza de dó, mas uma tristeza que se conforma, que se forma, e se torna parte do ser que a sustenta. demorei a descobrir que o som que saiu das suas narinas fosse um riso. como uma rajada de vento que tenta afastar besteiras inconvenientes.
deitei ao lado dela.
- você tem filhos?
- inté neto.
- é por isso que você faz isso?
- faz o quê?
- isso.
soltou sua risada novamente. levantou-se para ir. tentei insistir.
- hein?
- por que ocê me quis?
- você gosta?
- gosta do quê?
- de sexo.
dessa vez vi seus dentes. amarelos, e entre os espaços, a mesma profundidade dos rios que percorriam suas pernas. tudo nela eram aquelas rachaduras. tudo nela eram aquela réstia que deixava ver sua escuridão.
- eu gosto do que ocê vai me dar agora.
abriu a palma da mão. as linhas, as linhas da mão! tortas, entrelaçadas, como todas, que percorriam o destino cruel de todas as vítimas deste mundo epidêmico. mas a dela, negras, como não haveria de ser? como não haveria de ser o solo rachado, áspero, os fundos de não sei o quê que preenchia aquela mulher por dentro.
entreguei-lhe o dinheiro, assombrado.
- o que você tem aí dentro?
vestia a mini-saia. foi embora, sem me dar trela. sem me dar um pouco da tristeza dos seus olhos. deixou-me o rastro de seus pés. por onde andava, corria aquele risco no chão, aquela falha, o caminho sinuoso dos que tem dentro de si tanta seca, e tão pouco sangue.

saí do quarto, em desistência, em retirada. mal vi que atrás de mim, o chão também se abria, uma falha sinuosa e larga, que dava para ver o que havia por detrás do mundo, as mãos que sustentavam tudo aquilo que era vida - e que também era morte.
me disseram que tamanha era a escuridão que mal podiam enfiar os olhos na minha rachadura. ela tornava turva a mente, e a tristeza as invadia, e tudo era fossa, pediplanação, varizes entrecortadas que sangravam a seco o seio do mundo.

agosto 23, 2009

mas é que - ai!

mas é que - ai! - onde é que a gente quer chegar? tantos contratos assinados a léu. tenho mania de promover acordos comigo mesma, de estabelecer metas mal vencidas. tenho mania de fazer comprações absurdas e fazer ligações ininteligíveis. há de se tentar de explicar o inexplicável por vias tortas. por onde é que anda a minha vida? desperdicei dezenove anos ou tudo isso tem algo a me dizer? o que é que o silêncio desta casa vai me ensinar?
e as paredes rangem, e as janelas se lamentam, e as portas chorosas, abrem e fecham, à sua maneira. e os móveis, estáticos, sentem a falta dos passos, dos berros, das palavras. e se há aqui seres humanos há palavras jogadas ao ar - não adianta ser apenas pensadas. quando fico sozinha, já passo a falar comigo mesma, com os espaços de ar que me acompanham, com a sombra que me alenta. é que não falar implica um quê de loucura, de desvairo, de gente que ermita, funda, se afunda, um pouco de quê de perturbada. e falar sozinha nos parece mais conveniente do que deixar o silêncio reinar. esse rei gordo e espaçoso, um tanto orgulhoso, que é o silêncio, se deixa entrar pela porta da nossa casa, invadir nossa alma pelas narinas, fazer zunir o o seu assombro por nossos ouvidos, toma conta de tudo. e de silêncio basta a morte que nos é certa. a vida é som, e um tanto de cor, e um tanto de diálago. desculpe-me Charles Chaplin, que aprendeu a odiar com todas as forças, o som que poderia ter seus filmes, os dialágos que poderiam acabar com sua simplicidade sincera e sginificativa. desculpe-me senhor, mas não concordo com isso. cenas extensas sem dialágos, se não são explicativas pela imagem, me dão sono. o silêncio deve ser usado com agudez, com sutileza. no final de uma reticência, no escorrer de uma lágrima, na pausa de um sorriso desdentado. tirar o som do mundo por um instante - e os carros se calam, e os pássaros se emudecem, e toda gente pára, e o som sai, e a alma sai. seria bonito assim, o silêncio. mas não se durasse uma eternidade, pois assim, saíremos todos nós, loucos. enterraríamos nossas raízes, nossos pés inúteis, no chão acimentado e permaneceríamos a olhar-nos tentando traduzir o que é que se passa por toda essa falta de...
mas que? por que disserto sobre o silêncio? porque aqui dentro o silêncio se demora demais, é preciso expulsá-lo, é preciso que eu me complete de outra coisa, noutra coisa, me mova. um minuto sozinha é o suficiente para me relembrar a dor que trago sobre os ombros, e por detrás dos olhos castanhos muito dos escuros. mas quando passa a vida - e a vida, assim, é leve, fina, colorida - o sorriso se espalha, a dor se acomoda em lugares que não se acham, entre as vértebras que se dobram, no espaço entre os dentes, por debaixo das unhas, se enrolam nos fios dos cabelos. e a dor assim, é quase inperceptível, quase silenciosa. dá para se acreditar que ela inexiste.
e então toma-se todo o corpo, inerte, que quer expulsar de si aquele silêncio aterrador, e quando quer chorar não quer, e não sabe se as lágrimas são boas ou não. não sabe se os risos são bons ou não. não sabe se isto que leva nas suas concepções e idéias, esta coisa de vida, esta coisa de memória, não sabe se isto é bom, não sabe se isto lhe valerá.

não sei que idéias me tomam agora, que coisa que é essa, tenho vontade de escrever, mas tenho apenas de escrever sobre mim mesma, como necessidade de escape, de fazer surgir som dentro de mim. mas é que... é que... não sei o que é que é que seria que é. é que ai...
deixa pra lá.

agosto 09, 2009

carta para um pai que não a receberá,

eu queria lhe agradecer, veja bem, agradecer por... por ter me apoiado nas horas que mais precisei? ah... não. por ter me dado suporte, abraço nas horas amarga, conselhos que guiaram o rumo da minha vida? talvez não. talvez você não seja especialista neste assunto, ou seja a (falta de) intimidade que nos atrapalhe. mas, espera! eu não te culpo. os pais separados, embora tentem ser presentes (como você), nunca alcançam certo nível de invasão. sim, porque intimidade é invasão. e invasão é conseguida, às custas, de quem vive junto, se atracando e se consolando. isso que a gente chama de família. não que você não seja família. é uma parte, assim, da minha vida. eu lhe agradeceria, apesar de ter te declarado esta falta de descoro, por você existir. existir basta, pai. a sua presença é sugadora, é enorme. uma vez por semana, umas viagens de final de ano, estar quando eu preciso, com aquela certa comodidade, "estou aqui pois devo-lhe os anos que não estive, pois sou pai desta menina e mal a conheço", e me buscaria aonde judas perdeu as botas, se não dormisse antes, e me daria todo o dinheiro que ganha, se não se tentasse em gastá-lo antes. mas para mim, basta que você tenha se esforçado. há controvérsias - minnha mãe, minha avó materna, meu padrasto diriam. mas eu nunca levei em mim a imagem que eles fazem de você. para mim, você é pai, e isso basta. basta que tentasse, e até hoje tenta, ser meu pai (embora trate-me como amiga, por não saber direito como tratar uma filha de dezoito anos). eu vou beber coca-cola com você, pai, enquanto você bebe suas - três, no mínimo - cervejas e - uma ou mais - doses de ypióca. eu beberei coca, até não sei quando, para você não ver que minha infância se perdeu. eu tento entender quanto é difícil para um pai ver a filha crescer e estar pronta para receber a vida - sem outras mãos para lhe proteger. a coca-cola fica nosso tratado silencioso, tá? embora eu discuta de cerveja com você. eu sei que faz algum sentido. você foi meu herói, de alguma maneira. me machucou, de alguma maneira. já disse-me coisas que ainda consigo ver, arranhadas, na minh'alma condoída. mas quem não diz? todos tem a mania besta de não saber usar as palavras. de não saber manusear o coração dos outros. você é o cara do bolo de cenoura, o cara da caixa de bombons e do cinema, da pizza no dom cuca, do peixe em sousas, do sorvete na sergel (quanta comida, não, pai?). você é aquele que me levava para escalar as rochas de todas as praias, descobrir umas em outras, nadar em mares revoltados, subir na pedra mais alta só para ver o que se há de lá de cima. e que até hoje, quando vou para praia, olho as rochas, umas sobre as outras, eternamente ali, e queria ir até lá. hoje em dia, ninguém liga pras pedras, pai. ninguém liga para paisagens bonitas, para se arriscar em descobrir coisas. lembra que a gente andou 15 km em uma praia, e depois por dentro de uma mata, até achar uma tribo indígena? eu ainda procuro alguém que tenha a mesma disposição que você - acredite em mim. esse papo que a gente tenta ver alguma coisa de pai (ai, estes complexos!) na pessoa que gosta, eu acho que é verdade. não se esqueça que eu gosto de fumantes, embora acho que você deva parar. você deve me achar meio boba e certinha, calada sempre; mas é que eu não sei, não consigo falar tudo na sua presença. ela é enorme, mas me basta ouvir você, por algumas horas. eu treino - há tempos, pai - ser eu mesma na sua frente, mas é muito difícil. ainda hoje, minhas mãos suam, e eu não sei o que fazer. você é sempre um primeiro encontro, de uma pessoa que eu já conheço, mas que ainda me surpreende - embora eu não concorde com metade do que você fala, e que se eu tivesse coragem suficiente, viveríamos brigando. mas vivemos em paz, não é pai? há muito tempo em paz. então obrigada, obrigada por ser meu pai e estar aqui, apesar de todas as falhas e incoerências, tudo isso a gente perdoa, tudo isso a gente deixa... porque de alguma maneira,
existe certo amor.

(eu amo você, pai.)

(e não receberá, porque toda essa verdade é doída e deixemos em paz, assim, em paz é melhor).