dezembro 17, 2016

1: diga-lhes que parti

dourou o atum, óleo e leite de coco, ela escorreu a frigideira e o dedinho mindinho fritou ao encostar sem querer na panela ardida: ai ai ai, pulou de um pé só agitando os dedinhos no ar uma lufada de ar refrescou e meteu a mão toda na água gelada, sentindo o alívio momentâneo, olhou pela janela, o sol entrava claro e forte, o rio seguia serpenteando calmo e enorme, na beira, se retorciam vivas as raízes do manguezal, alucinavam os siris vermelhuscos na lama preta. ainda chorando um pouco, ouviu uma melodia antiga e arrastada, de certo uma música, não era o som contínuo do correr da água, nem os passarinhos naquela repetição contínua a seduzir suas fêmeas distraídas, nem o vento que passava assoviando pelas dobradiças das madeiras, de certo havia harmonia, de certo era música, de certo era rádio. pegou um garfo ainda sentindo dor no mindinho, espetou o atum e enfiou na boca mole e desengonçada, chupando o peixe entre os buracos do dente, ainda espiando pela janela, interessada em ver o que é que trazia a música, os dedos dos pés se torceram a fim de ficar na ponta, a mão no parapeito, outra garfada, e vinha vindo lentamente um barco de madeira, o motor zunindo desgraçado, mas bem vagaroso, e o rádio lamentando uma moda sertaneja. a moda lhe tocou o coração, foi o que pensou, e botou os dedinhos no colo, suava, era verão, sentiu a carne do corpo quente, bufou repentino aquele torpor do calor, aquele que lhes deixavam malemolentes, a preguiça estendida do domingo de sol, um meio-dia de tesão, foi caminhando sem perceber, a frigideira ainda firme na mão, o peixe ainda na boca, o peixe gostoso de morder, sentou-se em frente à casa e esperou absorta, sem qualquer disfarce ou que seja, o barco avistá-la. de certo vinha um homem lá dentro, um que não cantava a música, mas como um pássaro, caçava uma fêmea, de certo o homem lá estava, sem camisa, o peito suado e bronzeado, arrastava a rede de pesca vazia, as mãos eram grandes e fortes. olhou-a, e o peito queimou, repentino ela se envergonhou, algo como um vento lhe soprou nos ouvidos o ridículo, o torpor se desfez, e ela limpando as mãos sem parar na própria blusa, sem saber se entrava ou não. o barco foi se aproximando lento da costa, aportando, ele desceu, as coxas fortes, e as dela já arrepiadas, amarrou bem firme e novamente ela parou, e depois entrou em casa e se escondeu com a cortina amarelada com cheiro de sabão de coco, o mindinho quase curado, a chita fazendo cócegas no nariz, ela apertou-se a si própria, viu o homem descer, viu o homem olhar para a casa vizinha, viu o homem se aproximar. tem peixe, ele perguntou lá de fora, olhando súbito para a janela, de certo via a sombra dela, ou um pedaço do nariz fuxiqueiro, ela por um minuto de terror não soube o que fazer, outra moda começou, o coração não aguentava aquela poesia, decidiu-se quase sem pavor, levando a frigideira, deu-lhe com a veia da munheca a pulsar. ele pegou, a mão toda cabia no cabo, acenou agradecendo e sentou-se no degrau. ela continuou atrás, sem saber o que fazer, esperando ele comer, e ele tudo comeu, lambeu os beiços e tudo, num minuto só, muito gostoso. obrigada, ela respondeu, denunciando a posição exata, por não ter movido uma só parte do corpo, ereta e temerosa como um siri a ser caçado, esperançosa de ter se camuflado. mas era morena, de corpo grande, cabelo cheio, blusa amarela caindo aos ombros, cheirava a coco. ele se virou, a encarou inteira, de certo desejoso, que é que fez aí? ah queimei na panela, ele disse, venha cá, ela foi indo devagar, o torpor tomava o corpo, ele olhou o mindinho, olhou bem de perto e o enfiou na boca dele, como enfiou todo o atum, em um minuto guloso, chupou o mindinho aturdido, ela alarmada olhou pra casa vizinha e o empurrou para dentro de casa, chega, para, para, aqui não, jogou-o na cama e tirou a blusa, os dois mamilos pretos e grandes o olharam como dois olhos assustados, ele se debruçou sobre eles e por muito tempo se deliciou, ela olhava com olhos famintos, arrancou a calça dele e abençoou três vezes o pau duro, colocou-o na boca entre os dentes de atum, e certa se sentou no colo dele, no movimento trépido e mais ou menos ritmado, talvez lento como uma moda de viola, ela botando firme os dois olhos nele, seu rosto um pouco enrugado, cinquenta anos, o peito de pelo grisalho, inabalável com a sorte, o coração quase saindo do peito, um amor de vinte anos consumado, tudo imaginou. ele pediu-lhe o mindinho machucado, ainda antes de gozar, enfiando a pica contínua como a melodia repetitiva do pássaro, disse no ouvido, enfia no meu cu que sara, ela o virou e assim fez, certa e ereta e depois dois, ele gemeu um pouco e ela pediu por favor, termine isso, e de uma vez ele enfiou e o corpo todo dela sentiu frio, um repentino frio, algo polar naquele trópico, frio e seco, como um trovão desavisado no céu chuvoso, um aviso estático e elétrico, um desespero de um milisegundo. deitou-se na cama abandonada, cobrindo-se com o lençol, todo o corpo embalsamado em branco, o cheiro do sabão de coco, suor e porra a enojava um pouco, ele sentado puxava um fumo de palha, fumou-o tão rápido quanto comeu e levantou-se já arrastando os chinelos largados ao pé da cama, bem senhora, até. e ela com os olhos quase a dormir, ainda um pouco retesada e a vagina molhada, perguntou onde é que poderia encontrá-lo de novo. ele disse: passo o fim do mês em martim sá e o começo em são joaquim, no meio eu navego, não tenho lar. ela gravou essas palavras como um folhetim, repetiu-as febrilmente até o cair da noite e não pôde se levantar enquanto ainda ouvia o zumbido do barco se afastar e a moda de viola a tocar aquelas lindas palavras que lhe tocavam o coração. quando sua irmã pequena adentrou em casa, uma meninota de pés descalços, ela lhe perguntou: ainda tem um barco aí na frente? a irmã deu de ombros, disse que não, nada, os de sempre, era zé voltando, essas coisas. e um sertanejo, você tá ouvindo? não, tem música nenhuma, e você tá um pouco maluca, é melhor levantar antes do pai vir, não é porque você veio da cidade que você pode ficar o tempo inteiro aí, largada na cama. e saiu correndo já com medo da chinelada; ela ainda estatelada na cama, levantou-se docemente, tomou um banho demorado, armou a rede na varanda, disse que dormiria ali, que fazia calor demais, mesmo aos protestos de todos por conta da chuva que cobriria a noite, sustentou o pedido como em muito tempo não se via tão firme de uma decisão. esperou deitada a chuva cair e o céu abrir, mergulhada em insônia, descortinou-se um céu de estrelas sem nenhuma lua, relembrava entre dolorida e deliciada os segundos de amor, chegou a duvidar se foi real, e então chupava o dedo mindinho queimado, e se convencia de que sim, um homem chegou, aportou e a amou, ele era um homem solitário e o único bem que possuía era seu barco e o seu rádio, e o rádio tocava as mais belas canções compostas no planeta, e bem a lua sabia disso, embora se escondesse tímida em seu estado de nova, e bem a lua saberia disso: no começo do mês vou para martim sá, no final em são joaquim, no meio eu navego, ele se guiava de certo pela lua, matou a charada em dois instantes, pois era pescador e um homem do mar, um homem das marés, como seu pai era, mas era livre e gostava de fazer amor e tinha a amado, pois um homem com aqueles olhos de desejo, aqueles olhos de fogo, de certo era amor, embasbacado pelos peitos redondos dela, era certo que seu único destino possível era buscá-lo e amá-lo e a única missão que lhe importava nesta terra era amar, sentir e dar prazer. quando a lua se erguesse minguada, ela partiria, num sussurro de noite, ela partiria, só depois de ter feito esse derradeiro planejamento, chegando a contá-lo em detalhes e sorrir com uns siris também insones, adormeceu em plenitude.

novembro 06, 2016

pés no chão

é de alguma importância manter os pés ao chão. por vezes, vôo e o vôo dura toda uma semana, um mês. vôo para o trabalho, para a lista do que fazer, o tempo esgota.
é tão fácil passar o tempo, agora.
quando éramos crianças, o tempo era até doloroso de tanto ócio. tique-taque, conta gotas.
manter os pés no chão, encarar as coisas na altura dos olhos.
tão doloroso, tão perigoso fazer voltar o tempo; tão fácil se perder novamente. se ver esprimida entre as sombras, os cacos, mal se ver, as coisas todas tão maiores que você. tão além da compreensão.
os pés no chão.
e um coração tão delicado, tão mordido. rasa; arrepiada; arrasada.


outubro 15, 2016

pra saber dar nome às coisas terríveis

talvez pelas coisas que eu te falei e pelo que sinto por você, já não é possível te ajudar. parece que não será mais. entretanto, não é possível ajudar mais ninguém, nenhuma palavra que traga conforto vai nos salvar das coisas terríveis que sentimos. e que nem mesmo sabemos colocá-las em palavras, usando outras sem bem encaixar; é como um furo, apenas um furo em algo que deveria ser inteiro. há algum tempo, éramos inteiros ou, melhor dizendo, buscávamos ser inteiros. e tudo que queríamos era ser inteiros, então juntávamos nossas partes e nossos traços de personalidade e nossa estética e como gostaríamos de aparecer e quem éramos, nossos traumas de infância, as coisas herdadas, as características astrológicas, quisermos ser inteiros. e por um tempo, nessa busca de ser inteiro, éramos inteiros - sem nunca saber disso. era a busca que nos fazia inteiro. depois de algum tempo, paramos de buscar ser inteiros, acreditando ter montando algo ou alguém, ou ainda, acreditando ter montando um modelo de nós mesmos, projeções miúdas; e nunca se tornando neste modelo, nem tendo os sonhos costurados à nossa pele, nos tornamos versões frustradas de nós mesmos. de repente, éramos inteiros pois não há mais tempo hábil para nos construir - o tempo escasso de pensar com qual roupa transmitiria nossa bravura ou como éramos doces - o tempo mata, pois zilhões de coisas surgem para se pensar e calcular, elaborar estratégias e poder bem discursar e conversar sobriamente e manter as opinões enquanto trabalhamos e elencamos as atividades diárias. então, éramos inteiros pois não havia mais como nos construir, mas éramos metade, furados, escassos em nós mesmos. num modelo que mal lembramos como é que se arranjou, mas se instalou feito doença de pele. sem saber como coroar ou como se lembrar por quê nos frustramos, nos prostramos em pura frustração, sem nem saber dar nome a isso. dizemos que estamos entediados, sozinhos, calados demais, confusos, perdidos, tristes, melancólicos, com ódio, amargos, mal humorados. e procuramos os outros, os outros que estavam ali ao nosso lado buscando por ser eles mesmos inteiros, por alguma salvação. eu que encontrava meu bem estar (e talvez parte do que é ser eu mesma) em ajudar os outros, em dar-lhes os braços, enxugar os olhos e consegui-los fazer rir, e ver que há outros caminhos, que essas coisas passam, já não consigo mais. agora há o furo, o buraco, e meus pedaços, para juntar, fazer algum sentido. sem socorrer, nem ser socorrida, posso me lembrar das vezes que te abracei e que sorrimos; posso me lembrar que eram problemas mais bobos. mais doloridos, talvez, mas palatáveis, evocavam nomes, ações reais. agora há algo abstrato demais, pois ninguém sabe do que se trata. não há mais sábios, conselhos. todos eles estacam na língua. ainda quero preservar esta memória: a memória sincera dos nossos problemas e das nossas feridas, do porquê chorávamos, das paixões e de como as superamos, de como bebemos e caímos de beber, a memória do tempo como algo que passa; que flui; que transforma. tudo no momento agora parece por demais estanque. como se esperássemos por algo. me sinto no tempo da espera; disfarçada da cor da terra, como um inseto ou um molusco a fazer pouco ruído, esperando... com medo de que coisas grandes despertem cedo demais, um estrondo que meu corpo não poderá carregar. por isso, é importante me lembrar que o tempo é uma enxurrada, que leva com ele os detritos, que traz ora vida, ora morte; embora agora repouse plácido e sufocantemente calmo. é importante, mas tão difícil, não se deter no lamúrio de que a vida se passe acima do lago; calma e lisa. mas não é esse temor o próprio tremor que preparará a grande mudança? ou seria apenas o temor que nos deixa com aparência de doentes. se você vem a mim, tudo que eu poderia lhe oferecer é um abraço tremido, talvez com medo de lhe tocar forte demais. poderia eu...? de alguma forma, não há quem socorra, não há quem peça socorro; somos enfim iguais. gostaria de lhe dizer, que se pudéssemos achar algum jeito de estabelecer novamente uma conexão entre nós; de um jeito novo, e não como estávamos acostumados na escola e como levamos à faculdade. e se somente essa conexão fosse, de alguma forma, a salvação - que seria nada mais que viver. saber viver. ninguém nos ensina a aprender a viver; há um mundo largo e nossos pés pequenos e nossas cabeças esquizofrênicas e umas mãos ansiosas, olhos chorões. aprender a viver. eu gostaria de não aprender sozinha; gostaria de compartilhá-la; torná-la memorável. como um igual perante ao outro; sendo o outro não mais o outro de mim. o meu amigo, a minha namorada, a minha mãe, etc. todas as pessoas existiam no mundo apenas para me formar. para formar o inteiro. finalmente, eu gostaria de conhecer e reconhecer as pessoas ao meu redor como as pessoas, por elas mesmas e seus destinos. e como os seus pés caminham, de modos que desconheço. e que não podem me ajudar como eu não posso lhes demonstrar o jeito certo. deveremos nos despir. conhecer as pessoas pelo melhor momento de suas vidas a acontecer ou acontecido: quando elas olharem e verem as coisas. as coisas como elas são, sobre a terra, sob o céu e o peso da gravidade. o outro como outro. e talvez pudéssemos novamente conversar, achar as palavras certas, para dizer, sinceramente, um ao outro, que não sabemos como viver. e é isto que podemos oferecer. nossa ignorância perante a tudo; e uma companhia ignorante para que possamos ser tocados pelo mundo e refletirmos com os outros. apenas longas conversas. sem ter que socorrer ou pedir socorro. sem ter que sermos inteiros. para talvez, talvez... consigamos destruir aqueles modelos, os modelos de frustração aos quais nos apoiamos. e sejamos nós mesmos de acordo com o tempo que corre, de acordo com o que está aqui. mesmo feio e irrealizado, mesmo tosco e inseguro, talvez infantil demais, talvez muito velho. para saber dar nome às coisas terríveis; sem esperar que elas passem.

outubro 14, 2016

Natalia Ginzburg

Natalia Ginzburg,
que palavras lindas, que coração grande. me encheu de luz.
vontade de xerocar teus textos e dar a todos que amo e até a todos.
Vontade.
que fibra, que serena.

que linda, a maior pequena escritora que o mundo nos deu.

"uma vocação, a paixão ardente e exclusiva por algo que não tenha nada a ver com o dinheiro, a consciência de ser capaz de fazer uma coisa melhor que os outros, e amar esta coisa acima de tudo, é a única possibilidade de um garoto rico não ser minimamente condicionado pelo dinheiro, de ser livre diante do dinheiro: de não sentir em meio aos demais nem orgulho nem riqueza, nem vergonha por ela. ele não se dará conta das roupas que usa, dos costumes que o circundam, e amanhã poderá passar por qualquer privação, porque a única fome e a única sede serão, nele, sua própria paixão, que devorará tudo o que é fútil e provisório, despojando-o de todo hábito ou atitude contraído na infância, reinando sozinha em seu espírito. uma vocação é a única saúde e riqueza verdadeiras do homem."
(as pequenas virtudes)

"e agora somos verdadeiramente adultos - pensamos - e nos sentimos supresos de que ser um adulto seja isto, e não tudo aquilo que acreditávamos na juventude, não a segurança de si, nem a posse serena de todas as coisas da terra. (...) somos adultos por aquele breve momento que um dia nos coube viver, quando olhamos como se fosse pela última vez todas as coisas da terra e renunciamos a possuí-las e as restituímos à vontade de deus; e de repente todas as coisas da terra nos parecem em seu lugar preciso sob o céu, e assim também os seres humanos; e nós mesmos suspensos a olhar do único ponto exato que nos foi dado: seres humanos, coisas e memórias, tudo nos pareceu em seu exato lugar sob o céu. (...) durante toda a vida só soubemos ser senhores ou servos: mas naquele nosso momento secreto, naquele momento de pleno equilíbrio, soubemos que não há verdadeiro sonherio nem verdadeira servidão sobre a terra. (...) na vida de um ser humano, este é o momento mais alto: e é necessário que estejamos com os outros, mantendo os olhos no momento mais alto de seus destinos."
(as relações humanas)

"começamos a nos calar desde jovens, à mesa, diante dos nossos pais, que ainda nos falavam com aquelas velhas palavras sangrentas e pesadas. ficávamos calados. ficávamos calados em protesto e por desdém. (...) éramos ricos do nosso silêncio. agora ele nos causa vergonha e desespero, e conhecemos toda sua miséria. nunca mais nos libertamos dele. aquelas grandes palavras velhas, que serviam aos nossos pais, são moedas fora de circulação e ninguém as aceita. quanto às novas palavras, percebemos que não tem valor: com elas não se compra nada. não servem para estabelecer relações, são aquáticas, frias, infecundas. não nos servem para escrever livros, nem para manter ligada a nós uma pessoa querida, nem para salvar um amigo.
(...)
existem duas espécies de silêncio: o silêncio com nós mesmos e o silêncio com os outros. ambas as formas nos fazem igualmente sofrer. o silêncio com nós mesmos é dominado por uma violenta antipatia que nos toma pelo nosso próprio ser, pelo desprezo à nossa própria alma, tão vil que não merece que se lhe diga nada. é claro que é preciso romper esse silêncio nosso se quisermos tentar romper o silêncio com os outros. é claro que não temos nenhum direito de odiar nossa propria pessoa, nenhum direito de calar nossos pensamentos à alma."
(silêncio)

outubro 13, 2016

o vidro

é quatro da tarde e deu um crush.
parece que parou, ela sentiu o ar escorregar dentro. ele contemplou o vazio da tela; o som da água escorria, há quanto tempo ela lavava a louça? lavava a louça devagar com muito pouco pra fazer depois, então lava-se devagar, como as mães fazem. o que uma mãe faz em casa o dia todo? é quatro da tarde, a louça lavada e as horas se demoram para a próxima hora produtiva.
nem mãe era.
vinte e tantos, todos os dentes, embranquecidos pois o pai é dentista. é quatro da tarde de um dia qualquer e não há motivo algum para mostrar os dentes, para sorrir. por ventura, a tela que ele olha para dentro exala sua luz alva; e uma tela de computador por ora é plana por ora é profunda. poderia nela mergulhar e tudo que haveria em volta seria vazio? e números.
vazio.
também se pudesse mergulhar na superfície plana da mesa de madeira seria vazio. qual a distância de um átomo a outro, como mergulharia para que pudesse encontrar, exata, a matéria da matéria e nela se enfileirar como parte do seu?
caso fosse, a madeira não seria mais madeira. e toda a reflexão se perdeu!
é quatro da tarde, nada faz sentido e a única reflexão que ele se aventurou é uma completa falta de sentido, uma completa perda de tempo. pois a madeira só é madeira já que não se mergulha nem se mistura nela. e a tela do computador apenas... descanso de tela.
que inutilidade.
é nessa hora demorada que mesmo o pensamento mais inútil... qualquer distração se descasca sozinho qual uma laranja; exibe aquela nudez sem graça. como um abacate todo comido, e aquela sementona arredondada. maciça e inútil. não há terras suficientes para plantar sementes de abacate.
ela pousou a mão na pia e achou que poderia começar uma horta. uma horta, agora.
passou pela sala e tocou o ombro dele. não percebia que ele crivou os olhos na tela e não os mexia. ela afanou o algodão da camiseta. macio... e cheiroso. ele despertou. fez menção de pegar nos dedos dela.
frios. estava lavando a louça aquele tempo.
embora ele segurasse os dedos, ela agora se deteve atentamente na janela. uma chuvinha fina percorria o mundo, prédios e oficinas baixas e um viaduto zunindo, um céu cinza, dia de cú. não sabia se ela olhava para a paisagem ou se se detinha mais especificamente no vidro.
na janela em si mesma.
o vidro; tal placa feita de areia, vinda do mar, forjada em grandes indústrias, placas vendidas a esmo feito camelo em deserto, colocados delicados entre o chão da tua casa e o nada do lado de fora. uma porta... um portal para poder ver o outro lado; o que está fora; o mundo, o grande mundo.
cem vezes que nossa casa é dentro e quente, confortável e cômoda, enjoativa e vomitada, impregnada de suor e sabão de roupas, mil vezes que lá é o mundo onde acontecem as coisas. onde os bêbados caminham e os homens vão ao trabalho e as mulheres aos mercados e os carros são consertados e as grandes indústrias funcionam, e mais além, os verdes mares de morros, e mais além, as praias e o mar rugindo, lá além da janela/ tantos mundos/ vão se desdobrando/ tantos mundos/ que eu quis descobrir/ tantos mundos/ que eu só vejo/ aqui, pela janela. o mundo que todos os cheiros do mundo se misturam: pó e carbono, esgoto, e terra molhada, e brisa, e até flor.
ela destacava essas coisas, mal pode perceber que tocava com os dedos o vidro da janela. ele vinha atrás.
parece tão injusto que o mundo real fica lá.
ela torceu o nariz no vidro.
já era cinco da tarde e não havia crush.
o tempo fluía e a chuva recomeçava sua cantoria, pelas ruas ia despejando todo o lixo e toda a gente. ela agarrou com força as estribeiras da janela e a abriu, sentindo o cheiro forte e uno de tudo, um cheiro de entortar os sentidos. teve vontade de ir lá, para este mundo, para o nada.
a frente de um apartamento, alto, há um nada, pois há apenas ar e a paisagem parece ilusória.
quis se deixar levar, era um sentimento novo, forte. colocou as mãos para se debruçar e sentiu o algodão da camiseta dele abraçando-a.
estava no chão do apartamento, o vento repentino bagunçava tudo, caía vasos de plantas e voava lencinhos de enfeites. ele estava abaixo dela, segurando-a.
o que houve?
você se debruçou, tinha um rosto alucinado
vamos fechar as janelas
você tem certeza...?
ele parecia duvidar da sanidade dela, parecia não querer que ela se aproximasse da janela novamente.
ela assentiu, decidida, recomposta, arrumou os cabelos, o que tinha se aberto no peito, qualquer coisa, um algo que tinha entrado dentro dela e forçado os limites até que se tornassem buracos fundos demais, sem vidro, apenas buracos, já tinha se fechado. pois dentro das clavículas não sentia mais aquele frio interno, mas sim o morno, o morno de sempre e a cabeça vazia, novamente vazia, concentrada no dentro de casa, nos tacos saindo, na terra que tinha derrubado, o maldito vento.
foi até lá e fechou as janelas sem olhar para baixo ou viu apenas a mesma paisagem e nada lhe ocorreu. o vento tinha feito um estrago.


setembro 11, 2016

percorreu os dedos pela púbis e chispou o i em grabdiloquência fez tóintøin lá dentro ela disse, aah, que delíiiiiiiiiiiiiiiicia, o iii em suspenso, agudo e gemido e o cia em um sussurro muito rápido indolor, bu ba
já gozou
os olhos fechados e a sensação ia se dissipando dos dedos do pé até a cabeça um instante um nada um oco do universo
lateja, lateja lateja

levantou-se faceira a palma da mão doendo, não, deitou-se preguiçosa recostando-se no ombro da outra e admirando o vazio de não ter mais nada

um mapa

um mapa, seria bom. um mapa, para minha vida.
minha cartografia
para um futuro.

um mapa para me localizar,
um mapa.

mas sequer soube ler
algum dia
um mapa.



agosto 28, 2016

salve a alma de Dalila

- Sargento Diniz.
O homem se apresentou um pouco enrugado. Coturnos faziam barulho e papeis caiam ao chão.
- Arranca do cabra.
- Cassetete em mãos.
- Uso do quê?
- Usa da sua criatividade, Sargento. Eu que tenho que dar todas as coordenadas, aqui.
Bufou e escorregou na cadeira. Rangeu: vou tomar café lá fora. Arranca a informação.
Apressado, o soldado lhe deu meia dúzia de papeis dobrados.
- Achamos que podemos ter ligação.
O Sargento entornou os olhos em cima dos papeis, as letras datilografas desfocadas. Sabia ler mal e não sabia ler sem lentes e não usava as malditas lentes que davam um ar comunista a sua figura. Já era meio franzino.
Entrou meio torto, acompanhado de dois soldados. Os papeis na mão, já molhados, problema intenso de sudorese.
O comunista nu olhava-o vivamente. Estava até corado. Toda aquela vivacidade desconcertante. Um olhar mais vivo que morto. Que diabos. Que pragas.
Gritou palavrões e tentou e perguntou e não sabendo o que perguntar, perguntava onde morava. Onde morava tinha a mulher, e mulher só apertar que falava. Onde morava, tinha papeis e algum soldado podia datilografar. Aquele baitola de óculos, passava o dia todo. Quando precisava ter raiva, lembrava do rosto dele. E imaginava o rosto dele no rosto do comunista.
- Pois sim, porra.
Primeira segunda e terceira porrada. O cabra jogando. Impávido. Treinamento de ponta.

Aldo segurava o olhar e confiava. O Sargento se escorregava todo, não sabia o que dizer. Tava é se cagando. Aldo apreciava a sua sorte, outros não teriam pego um cagão da porra que só sabia cuspir palavrões. Foi enrolando na lábia. Grande lábia dos comunistas, retórica treinadíssima. Tantos discursos improvisados. Não dizia nem iria dizer onde morava.
Se não tinham o pego em casa, que se foderam.

Saiu o Sargento pálido. Nada. Rubro. Uma menina de doze anos lhe sorria. A filhota do General. Vinha ao quartel pois gostava. O pai a levava a tomar um sorvete barato que tinha na região.
- Dalila.
Dalila estava pronta.
- Esfria essa sala até o 0 grau ein.

Dalila era mestra dos botões das temperaturas. Elas regulavam pro gelado bem frio e pro quente deserto. Tática de tortura afinadíssima, importada da Alemanha. Tinha olhos redondos escuros a pele parda um quê de índia. Usava sandálias rosinhas, a roupa toda perfurmada.
Dalila sorriu, sorriu. Mexeu nas temperaturas até chegar ao 0. Olhava deliciada. As pernas curtas balançavam em cima da cadeira. Sou a rainha disso aqui, ó. Eu faço nevar, eu faço ensolarar. La-la-la.
Passava o dia todo assim, no esquenta-esfria. E quando cansava, ralhava fina com os soldados:
- Arranca logo isso que eu quero tomar sorvete!
Quando a temperatura ia amena, os sargentos ou generais entravam. Mas os papeis estavam sempre desorganizados. Alguém descobriu que era enteado de um comunistão chefão, um monstrão liquidado há duas semanas. Um alívio.

- Homem, nós sabemos do teu padrasto. Ele disse teus nomes. Nomes reais.

Aldo levantou os olhos, um pouco cansado. Quando o frio cobria a pele saraivada de porrada ou do quente, ele pensava. Vou sair daqui sem contar nada. Enrolou, enrolou e nada.

- A gente vai prender o homem, porque o homem é comunista.

Eles se cansavam. O General voltava do café falido e desabava. Chorava no banheiro e a filha corria a limpar as lágrimas. Que é, papai? Dalila, filha, eu queria é tá tomando pinga na Riviera. Queria era matar esse filhodaputa. Mas eles querem mais, saber dum caralho de coisas. Pra quê, pra quê.

Dalila rezava anjo da guarda, mãe católica que ensinou. Ajuda papaizinho. Libera esse homem daqui, mete ele nas cadeias. Quando ele for pras cadeias, eu quero um sorvetão. Um sor-ve-tão. Dalila ia crescendo com uns meses. O Sargento Pávido ficava bobo de canto de olho. Dalila também olhava, para cada um. O homem uniformizado é o homem bonito. Esquenta esfria esquenta fria.
Pávido uma vez a levou no banheiro, já viu pica? Ela olhou o morcegão.
E pegou com as mãos próprias porque lembrava um cassetete. Ele tirou da mão ruborizado. Menina do capeta, chispa.
Ela chorou chororô pro pai e o Sargento mudou de jurisdição.

Aldo foi preso. Elza soltou informação. Mas a ditadura ia nos seus finados. Todo o uniforme verde ia se borrando de preto. Dalila ainda no esquenta-esfria, já tediosa.
Ficou dois anos presos, porque guerrilha não podia admitir que se houve. E tribunal é coisa séria. Lei é pra se seguir. Continência, perdão.

Dalila tem 45 anos e é uma mulher nula. A anistia preservou o pai por muitos anos, velho e falando nada com nada. Aqueles papeis que ninguém entendia, queimaram. Dalila lembra muito pouco. Faz jantar, esquenta e esfria. Acabou se casando com um comunista. Depois divorciando. Depois dos quinze e o fim da ditadura, tesão nenhum sobrevivia nos soldados. E o sangue dos militares era feio, era fétido.

Dalila era cheirosa.

Acordou suada pensando no soldadinho franzino. Um dezoito anos tão novinho. E os dedinhos dela que faziam mágica. Queria um desses de novo. Sozinha, o quartel-general costumava assombrá-la.

O ex-marido comunista tinha a feito desmanchar todas as sensações boas que advinham do esquenta-esfria, do tesão dos soldados, daquela coisa de se sentir rainha. Mas depois ele era um merdão. Pegava meninas mais novas, e nela batia.

Dalila foi morar com o filho no apartamento. O maldito usava vestido. Dalila encharcava os olhos de ver aquele netão dizendo afetado: sou toda mulher. O ex comunista e mesmo ela sabiam: isso é castigo. Castigo pelo vô, por ela. Foi tanto esquenta esfria, que a sua cria é assim também. O ex não queria saber do filho. Cargo público porque era do Partido dos Trabalhadores. Ganhava dinherama e mandava pra casa. Mas lá não pisava - em casa de baitola, não.
Tudo em paz, Dalila.

Sem Deus, nem anjo da guarda. Repetia Dalila. Sem pai, nem marido e um filho todo esquisito.

Aos 61, já livre do filho-filha, namorava um soldadinho interesseiro. Seu nome perigava nos processos, o Partido do ex destroçado, a honra do pai toda manchada. Lubrificava a vagina e mandava-o meter.
Amava-o tanto que o apertava, apertava.
Na rua e no bar, bebia muito. O soldadinho virava PM.

Dalila dava show e dava festa e mostrava a teta. Não era nula coisa alguma e tinha coisa pra falar. Tudo é merdão, mas meu pai, que homem. Que Homem. e meu filho, se quer saber, Que Mulher, que mulher.
O PM cansado da velha. Mete ela na cadeia, mete sim. Ela frequenta o Bar do Jão, na 13 com a João Rabelo. Mostra a teta e lambe o asfalto, porque se acha protegida. Chega e prende e prende pra véia enlouquecer. Enlouquecendo, mando ela pro asilo. No asilo, eu fico livre.
O PM-soldadinho vinha do Norte, família passava fome. A mãe raras vezes falava, faltava-lhe tônus. Veio pra São Paulo na casa dos irmãos, o primo disse: vai ser polícia. Polícia tu faz o que quer.
Ganhava porca mal. Nada. Nenhuma mulher, só puta. A véia era bonita e tinha teta grande. E uns olhão. Contou toda a história dela no bar, só os dois. Foi paixão, foi sim. Ele jura. Do motel foi pra casa dela, mamão picado e paraíso. Ela tinha um casão, acumulou um certo dinheiro. Vivia bem pra beber todo dia. PM-soldadinho José achava que esse dinheiro tinha de ser redistribuído. Lá no Norte, eu com tão pouco, mainha morria de fome, a mula magra.
Sonhava o Robin Hood nordestino. Mãe, te vingo. E com essa, eu faço outra historia, vou ajudar as crianças que precisa. Não é vingança, comentou pro Cristo pendurado na parede, é justiça.

Foi Jesus que lhe deu o toque. Vai. Mãezona na cadeia - é assim que ele a chamava. Dito e feito, enlouqueceu.

Jussara Luz batalhava na rua. Silicone e aguardando cirurgia, Mulher Completa, eu saio dessa vida. Não amava ninguém e cobiçava só o ser. Pretendia ser budista, depois de puta. Negaria-lhe os desejos. Toda a herança da sua família, tinha de apagar. Para se redimir, só o Nirvana. Vez ou outra passava na casa da mãe para jogar uns ovos, quebrar janelas, dar prejuízos. Que a desgraçada não era pouca. Viu a placa vende-se.

Jussara Luz não pode crer na sua sorte quando descobriu que o PM-soldadinho José pensou que ia ficar com o dinheiro. Deu jeito de pagar advogado chorava e trabalhava em dobro. As unhas longas. E pensava: primeiro me vingo, depois me purifico. Preciso sair disso.

Foi 70%, 30 pro José. O tribunal parecia um pouco confuso. Falou das caixas de madeira: esse mulato e essa travesti. E uma mãe morta na loucura, sem testamento. O testemunho vergonhoso. Dalila repetia: pica, pica, pica, pica.
Jussara riu, José se emocionou. No seu sangue, vivia o espírito da mãe. José abalado. Jesus Cristo, que foi que você arranjou?
Jussara abandonou os sentidos. José viveu como pode, teve mulher, dois filhos. Não contava a história, mas todo dia, ajoelhava e rezava: salva a alma de Dalila, salve a alma de Dalila.







agosto 02, 2016

duas meninas no metrô. são idênticas.
uma é negra bem escura, os cabelos longos, lisos.
a outra é parda jeito de índia, o nariz batata.
as unhas feitas de uma. um dos dedos adesivo, nos outros rosa.
a outra quebrou uma das unha. são longas.
tem uma tatuagem de índio, cocar com penas.
o corpo é idêntico.
a bunda grande, os peitos pequenos.
o pescoço de uma, um pouco mais alongado.
a negra olha constantemente a outra.
a outra parece aflita, mexe no celular.
ou será distraída?
usam tênis baixos, confortáveis, bonitos.
na saída, a negra toca levemente a outra, no ombro.
caminham juntas, não se falam.
uma negativo da outra.


cãibra

cãibra
o sol a pino meio-dia
anuviado
tudo é seco

claro
rajada de vento no cerrado
balaçoa a árvore
retorcida

um cão
de olhos fastigados
resbola na cadela
o asfalto

sirene
o constante dos autos
carimba e carima
as tragédias

abril 13, 2016

descrição obje-subjetiva de espaços (exercício) I - ponto do mackenzie sete da noite quarta-feira

ao atravessar a consolação, larga avenida de três ou quatro faixas em cada mão, descem três ruas à esquerda: a primeira é a rua maria antônia, conhecida por bares frequentados por estudantes do mackenzie, e por isso, bonitos e bem aprumados, com boas fachadas; em seu meio se ergue o tusp, teatro da usp onde se situava o curso arquitetura e ciências humanas da usp outrora, é um monumento branco ladeado com colunas enormes grandes, reto e quadrado; as colunas formam vãos com degraus onde se sentam os estudantes do mackenzie atravessando o limite do bar mais próximo com cervejas; talvez algumas pessoas de teatro ou interessadas em mostras de cinema recluso aos finais de semana, esperando a hora do dito espetáculo de arte, pequeno, de amigos; a rua é bonita, arejada e limpa, há docerias, residências, é charmosa, há verdadeiras padarias, mais ou menos verdadeiras, ainda guarda um quê de bairro, um quê de centro. a próxima rua é a doutor cesário motta, muito íngrime, de cima da rua se vê ela descer, rua de bares de mesas de plástico amarelas, mais baratos que os da maria antônia, as mesas ocupam toda a calçada, os bares se parecem todos por conta da cerveja patrocinadora, enfeites há as placas anunciando o bom preço do litrão, prédios residenciais talvez não deixem a vida noturna da rua se estender pela madrugada, tem jeito de happy hour, de universitário pobre ou de universitário rico que se sente mais a vontade em mesas de plástico na calçada. a próxima rua é como uma curva, esquisita e quase invisível a primeira vista, se denomina amaral gurgel. é nela que eu descerei; entre a cesário motta e a amaral há vivamente uma banca de sapateiro com os dizeres "faz-se botas para motoboys"(muitas motos inúmeras motos atravessam a consolação), uma simpática venda de suco de laranja a quatro reais e salgados a dois e casquinha de sorte a um e cinquenta, uma loja de skate, responsável pelas pixações que flutuam nos prédios da região arrozfeijãoeganja, acabou de reformar para um bar a lá homem que ouvem rock'n'roll, com luzes baixas e amarelas, um balcão, uma mesa de sinuca, mesas descontraídas, bancos não cadeiras, os mesmos homens que antes pareciam vender agora riem e jogam sinuca, são barbudos, usam óculos; sentados um degrau a frente três moços parecem imóveis e iguais como estátuas, os três usam bonés, e por cima dos bonés, apoiados em suas abas óculos escuros, os óculos são do mesmo tipo, daqueles alongados ao rotos, os bonés são modestos mas tem cores como verde ou rosa junto ao branco, estão velhos, eles estão quietos, a posição da sua perna é a mesma, os óculos, os bonés, olham para um ponto fixo: na curva acentuada que forma o fim do minhocão com o começo da amaral gurgel, uma descida estranha e escura, sempre decorada com destroços, ocorre uma batida policial; há três policiais e três revistados; um dos moços, negro, alto e magro feito uma tripa, acaba de ser liberado e atravessa a rua com um olhar fixo a fim de se perder na multidão de luzes que é a consolação - é preciso sair do beco o quanto antes. um moço gordinho, branco e de óculos se explica para o policial, tudo que eu ouço é a palavra "escola", um policial toma nota, um moço com a mochila da forma turismo passa por eles, passo atrás, receosa do espetáculo; olho para frente, ali está a entrada de trás do mackenzie, faculdade particular de renome, presbiteriana embora ignorem isso, que toma toda aquela região e dá o nome ao ponto, e dará o nome ao metrô que vem sendo construído há muitos anos. um segurança está na porta, um homem com roupas formais entra, eles se cumprimentam, uma moça loira e branca e pequena, é nova, vem em direção a porta, ela está sorrindo  sozinha como quem pensa nalguma coisa muito boa que aconteceu ou que está prestes a acontecer, ela é simples, imagino-a bolsista, apaixonada; olho seu sorriso como quem quer se desfaça, mas ela não olha de volta para mim. a amaral gurgel é uma rua com duas faixas em cada uma das mãos e sustenta as colunas grossas do minhocão em seu meio; por isso há a calçada, a calçada abaixo do minhocão e a calçada novamente. é uma rua suja, abafada e desagradável, de chão de cimento, dizem que ali foi a primeira rua a receber as calçadas com o símbolo de são paulo em preto e branco formando um desenho geométrico de mil são paulos uma brotando da outra continuamente, em mil novecentos e trinta e alguma coisa, mas foi a primeira a ser trocado também, dizem as autoridades, para um chão mais permeável; embora a criadora do desenho em um concurso simpático da cidade esteja triste que as calçadas de são paulos brotando em são paulos, preto e branco como blocos imutáveis e resolutivos, estejam continuamente desaparecendo, é sabido que há sempre perigo de enchentes na cidade e se haverá maior permeabilidade no cimento só um especialista poderia dizer, ou se é apenas contenção de gastos; também não haveria nenhum interesse em manter aquela rua intacta, que outrora deveria ser até que simpática e pela localização, endinheirada, já que ela abriga em suas calçadas lojas do extremo submundo, uma mistura homogênea composta de bairro em centro. são elas os postos de gasolina (há 2), as mecânicas (há muitas) e os butecos, estes literalmente em cada esquina e também no meio da rua. estes não são sequer como os bares da cesário motta, mas antes um tradicional buteco, apertado, gorduroso e sujo, que exibe em suas estufas os salgados fritos e pedações de torresmos e frango frito, o balcão, os banquinhos, onde um ou outro homem encara a pinga, não há mesas na rua; de final de semana surgem ali festas de aniversário, karaokês improvisados e churrascos; há apenas o buteco, todos parecem o mesmo, entrar em qualquer um, penso eu, daria no mesmo, a variar da identificação com quem te atende, com a simpatia, com o preço. passo por uma unidade da santa casa que não sei para que serve onde se lê uma placa senhores pichadores doamos para instituições filantrópicas favor não pixar obrigado santa casa e as pichações brotam ali, são nomes próprios em letra específica; as grandes colunas de cimento do minhocão também abrigam grafites, mas são artistas, desenhos gordinhos, frases de impacto e amor, como venha de bicicleta, veracidade, pequenas poesias, respiros no cotidiano oferecidos pelos artistas das colunas do minhocão, provavelmente convidados, ali estão há um tempo, não os apagam, é uma vergonha; uma moça talvez moradora de rua sentada em uma canga ou coisa assim parece pouco se foder para os grafites, uma mãe e uma menina atravessam onde não há sinal e pelo perigo e adrenalina envolvida na coisa, a menina grita, o grito ecoa e o que era um grito espontâneo de liberação de energia torna-se um uivo, um choro, um gemido, um pedido de socorro; por conta da acústica criadas pelo enorme minhocão que é o teto parcial da amaral gurgel tudo ali reverbera e se intensifica, onde uma bolha de opressão simples e puramente pela existência da vida se torna concreta; os carros passam zunindo, os ônibus furam os tímpanos, e ainda há as ambulâncias, que são muitas, não sei se pelo número de feridos da cidade ou da proximidade do hospital, apitando quase constantes e deixando seu rastro de agudo por onde correria; os gritos ali dados são sempre assustadores, tudo ali se faz pela maldição, o carro e o ônibus parecem zunir dentro do seu próprio corpo; uma vez estive com uma amiga que tinha sofrido uma síndrome do pânico na região e a busquei para levá-la para casa, paramos no semáforo e ela pareceu desmoronar e eu soube exatamente o que ela sentia; eu também sentia; um desespero absoluto, como se ali o atirassem e o prendessem, embora as vias se abram, tudo está condensado, o ar esvaído. pela noite adentro, essas ruas, mais calmas, com o minhocão fechado para os carros, ganharão rainhas mais benevolentes, as prostitutas travestis, que enchem o ar com os seus corpos e um falar alto, ás vezes embriagado, ou um sussurro de negociata; elas oferecem companhias quem por ali volta tarde, quem anda desavisado, para os traficantes e toda a gente se aconchegar, elas abrem a rua como lares. por enquanto, pessoas atravessam, e muitas delas estão sentadas nos degraus dos estabelecimentos, fumam cigarros, com fuligem na cara. todos os estabelecimentos são cobertos por fuligem e graxa, o cheiro é de gasolina constante, ainda há os barulhos de dentro das mecânicas, tudo é sujo e se desgasta, pastilha e concreto. próximo a minha casa, tem um dos meus lugares favoritos, que eu gostaria de ter fotografado junto a esse texto, a la breton; é uma placa de neón na vertical, colada à parede, onde se lê HOTEL o neón é verde, e a linha de néon em volta do HOTEL, um retângulo, pisca entre verde e azul arroxeado, o azul neón. há outras placas de neón na rua, todas de hotéis de meias noites, mas o E do HOTEL está ao contrário; se lê HOTEL para quem está dentro do hotel ou para a própria parede, talvez para alguém que fique na recepção. cria-se um efeito interessante, intensificado pelo neón que pisca, um certo estranhamento, um distanciamento sutil. neste E ao contrário parecem se operar as ambiguidades, as coisas sem sentido, aleatórias, crias de acaso que estão em todos os lugares da cidade; lembra a mão do homem, do homem que colocou e do homem que mandou ali colocar, e o homem que ali mandou colocar satisfeito de poder ler, de dentro da onde está, HOTEL sem nenhum estranhamento, perfeito, conciso. a contrariedade se apresenta à rua, ao andarilho, ao que não entrará no dito HOTEL. lembra-se um quê de loucura proclamada em neón. mais adiante, na esquina, um estranho imóvel se ergue, é um conjunto de escritórios que desemboca numa venda em que se trabalham apenas mulheres, um lugar em que deveria reinar o boteco, mas ali, vende-se tortas salgadas e café, há jogos americanos amarelos nas mesas, não está aberto, as cadeiras também são amarelas, há água de coco, é limpo. mas o estranho deste conjunto é que suas paredes são feitas de porcelanato, ali onde abriga uma imobiliária que se chama centro vivo, as paredes e os chão repentinamente não são de pastilhas desgastadas cobertas de fuligem, não permitem ser pichadas, não é sequer concreto; o porcelanato, por sua vez, brilha de forma estranha e nunca é possível estar sempre limpo, mantendo o estilo decorativo da amaral gurgel: a gordura. ainda assim, reto como é, parece criação de ficção científica da classe média do terceiro mundo; é o mesmo piso que cobre a minha cozinha, recém-reformada e vê-los formar paredes sempre me dá a impressão de estar vendo a minha cozinha na vertical. por fim, o caminho está se encurtando; mais a frente um enorme monumento se ergue, com dois ou três andares, todo coberto de trepadeiras; um letreito eletrônico indica 24 HORAS na porta obscura, o que me fazia pensar que era um motel de luxo, mas descobri sendo a maior sauna gay de são paulo; ali um ou outro homem desacompanhado se escora, um casal de gays bem arrumadas atravessa a rua. é da mesma contrução que se abre num buteco, numa esquina quem nem é esquina, mas uma curva-esquina, embora qualquer uma seja motivo; uma de um piso amarelo e que mesmo estando a duas casas de diferença nunca coloquei meus pés: o lugar carrega uma aura obscura, está sempre vazio, é pior do que os butecos apertados de esquina na amaral gurgel, uma lousa branca há muito tempo ali diz em uns garranchos yakissoba 6 reais coxinha + sujo 3 reais, a caneta parece que quase foi apagada, mas ali permaneceu para sempre; os preços se congelarem numa inflação inexistente; eu palpitaria que este espaço é o limbo dos mortos do qual falam os espíritas, ali eu não entro jamais.

março 29, 2016

pai

decreto aqui por escrito e contrato o fim do nosso inverno.
fosse eu a mãe, a minha, teria saído de casa, olho roxo, dor nas costas, assinado o papel, entrado na justiça. divorciado, embora nos olhos da minha filha pequena sobrevivam os olhos dele. e os pés dele. e a sombra dele.
esperaria que com este fim, este contrato que realizo comigo e comunico a você, eu me livraria da sua sombra que se escondem debaixo das minhas gorduras mais reconditas. mas a sua sombra estará, e os seus olhos arregalados de louco, e a pele vermelha de louco andarilho, eu lembro antes de dormir. a imagem de um fantasma em carne viva.
não é sobre matar metaforicamente o pai, é sobre deixar ele morrer em vida. tenho inveja dos pais que batem em suas filhas e elas podem lhe botar ordem de restrição. inveja dos pais ausentes, que se casaram novamente, dos pais ricos, que saíram do país e gastam dinheiro com putas, dos pais internados em hospital psiquiátrico. confesso o medo de nunca mais te ver, junto do terror que tenho de te encontrar sem querer.
fosse você realmente louco estaria internado escrevendo poesia simbolista e talvez eu tivesse saudade de te conhecer e talvez eu tivesse ódio do isolamento aos desajustados.
mas a minha história é pobre, é simples. eu mesma operarei o isolamento da sociedade carcerária, eu mesma me despeço de você, sem conseguir lidar com seus rompantes, suas mesquinharias, suas ilusões.
a sua ideia de deus vingador em vida, a sua ideia de morte como presente desse deus, você no centro. tenho dó, e todo dia terei que lidar com a dó e com a culpa de ter decidido te deixar.
mas não é na minha alça que você vai se pendurar e perpetuar seu ciclo de horror. eu não te darei conselhos.
eu não sei quem você é, o que você pensa e o que você vive na sua pele que é ódio e terror puro. que é ressentimento amargo e um amor de monstro.
um amor que engole e mata, em nome do amor, que pede carinho e atenção, em nome de terror. eu não sou a sua filha.
eu sou uma mulher com sua própria corrente sanguínea, e seu dna que em mim replica, meto-os no lixo. eu sou tóxica, não sou boa, não devo ser, não devo aguentar. eu não sou somente a sua filha, a sua menina criança de olhos grandes e sorriso fácil, deslumbrada, recebendo as ondas pequenas do mar nos pés. você está em tudo que eu aprendi a amar: o mar, as pedras da praia, as árvores, os cachorros, bolo de cenoura, tudo que é simples, divino, selvagem.
você será para mim a pedra que subo, nada senão a pedra, sua imagem e seu rosto lá estampados, você estará lá resmungando fatasmarias, mas não em corpo, não em discurso, não ao meu lado.
é esse difícil adeus que este contrato aqui fala por si mesmo. um adeus que aperta as tripas internas, que me dá azar cármico, ondas de ódio ao meu redor.
eu não sei o que você deve fazer dentro da sua loucura; eu também tenho a minha; eu também não sei o que fazer. se eu fosse mesquinha, lhe desejaria outra família, um emprego estável, tudo para você se estabelecer enquanto homem, enquanto paz.
você não quer a paz, nem a estabilidade, porque é um mártir da destruição senil.
então eu não sei por quais caminhos seus pés vão caminhar, mas espero que alarguem os mundos e que espantem a vida normal e tranquila dos que andam sem olhar para os seus temores.
mas não mais a minha, eu já tive a dose suficiente.
eu não quero a culpa de deus, eu não quero a culpa da filha, eu não quero o amor.
eu não quero o amor; se ele é feito de sal e chama.
que este contrato sirva para que eu me lembre, como um alcoolicos anônimos, nas minhas próprias recaídas, nas doses de auto-mutilação, de perdoai eles não sabem o que fazem, de cordeiro de deus que tirais o pecado do mundo, dai-nos a paz, de um amor construído e injetado e forjado pela própria relação que se dá.
ninguém é obrigado a ser pai a ser mãe ou a ser filha, justamente por ter nascido em seio familiar. a aprender a moral e a ter boa educação e a amar de bom grada e de ser grata. se você me chama de ingrata, eu concordo.
mas não posso continuar justamente por esse compromisso lascivo que é a gratidão. eu não devo ser grata. ninguém deve ser grata. esse compromisso não-escrito, memorial, da ordem da natureza; que visa apenas a continuar.
se você não me decepcionar, será o mártir da destruição que eu penso que é, e não me cobrará gratidão.
porque gratidão é coisa de gente rica, ajustada, estável e contínua.
nem eu, nem você merecemos isso.




fevereiro 21, 2016

resquício, sobra, lua

as marcas que deixo no livro que você me empresta. são umas marcas escuras, no canto da página. olho meus dedos pra ver se eles tão sujos, não sei, mas deixam tudo empestado, tudo negro - negra peste.
fico cinquenta anos sem escrever, se paro e leio qualquer coisa que me desperta um quê me dá a vontade mais danada de sentar e escrever. vou engolindo toda a coisa, toda a coisa do artista, de como ele escreve. estilo próprio é bobagem, pra mim, é bobagem.
dias desses pensei finalmente e verdadeiramente: talvez não seja bom, isso aqui tudo isso aqui.
mas agora deixo resquício essa sobra empesteada deixo guardado.
o quê é que tem coisa e muita coisa que me dá vontade de escrever. de escrever qualquer coisa, e aí eu desanimo cinquenta anos de novo.
se eu todo dia uma história de formiguinha escrevesse.

tenho dado abertura nesse dia e nos outros as pessoas que aqui estão mas andava deixando meio amortecida.

luara tinha nome de cachorra e sua cachorra se chamava luana. luara era redonda, sim, feito a lua, feito alguma premonição da mãe bruxa. a mãe era homeopata, furava de agulha, agitava as mãos e falava em tom sibilante - minha filha é filha da lua. era filha de lua e pouco filha de mãe bruxa que se dedicava a cuidar das energias do mundo e deixava a lua encarregada de pentear os cabelos da filha. deixava ás vezes a lua cuidar da comida da filha. os cabelos, a lua como boa deusa, tinha dado lá o seu jeito: os fez duro e para cima, de um jeito que não dava pra pentear, só crescia feito árvore. a comida, a lua pouco fazia. então luara se agarrava a luana e as duas andavam pela rua, a percorrer uns canteiros, uns pé de frutas. luara tinha os olhos redondos, e até os dentes um pouco arredondados, e até os seios quando cresceram, também eram, e a barriga era redondinha, mas luara era escura. na escola, quando brincava de ser deusa da lua, as menina se espivitavam, colocando a mão na cintura, bamboleando-a e os dedinhos curtinhos: nã nã nã. luara, é deusa da terra. aqui tua árvore, pingavam os dedinhos nos crespinhos no topo da cabeça de luara. luara assentia, meio abobalhada. costumava não discutir e se esparramava no chão, terreava, enquanto uma cabeça loura, embora toda fina e ardilosa, iluminava o céu da brincadeira. ela perguntou a mãe, um dia que ela cantava umas vogais e luara quase caia no sono, como é que podia ser escura e ser filha da lua. a mãe parou de cantar e olhou bem miúda, a mãe era pequena, dizia que era um broto de baobá, de uma árvore grande. levanta luara e não esquece o que eu vou te mostrar. luara levantou a contragosto, já metida nos lençóis cheirando a quente, e a mãe ali na janela. aquilo que é branco é o que todo mundo vê, luara, mas a lua tem o outro lado, é a face escura; essa face ninguém nunca vê. e por quê, mãe? porquê a lua ali esconde os segredos, essa face ninguém nunca viu. nem galileu? nem ninguém, nem você, nem os orishás? a mãe franziu o cenho e deixou luara sozinha vendo a lua. disse por último: esse é o mistério da lua e foi ela que deu a forma à você, e ela queria que quando a gente olhasse pra sua face escura, a gente visse a face oculta da lua. esse modo de dizer luara achava que não era do feitio de sua mãe, depois de uns anos, olhando os olhos gentis de luana, não sabia se tinha inventado tudo isso. mas agora que podia separar as coisas enevoadas e as coisas brutas a mãe já tinha ido, sido tomada por um câncer que tentava curar com bruxaria. antes de morrer, ela disse, deixarei de virar um broto. a mãe tinha os olhos arregalados e o pescoço todo inchado, com uma bolota de dar dó; era a semente da nova árvore que ali crescia. luara havia acreditado que podia revelar os segredos da lua e andava por ali e por aqui dizendo as verdades que ia sentindo no seu pulmão. se a mãe fosse viva, diria que a filha também era dada a bruxaria. mas luara não sabia, e foi ser atendente de balcão, foi trabalhar no mercado, foi fazer unha no salão, foi até atendente de lan house, foi também garçonete. luara sentia uns ímpetos da verdade e largava, saía, permanecia pouco no emprego. depois da escola e até durante a escola luara tinha poucos amigos. no último ano luara não tinha sequer amigos. revirando as gavetas a fim de saber onde é que se metera os amigos, luara chorava ás vezes e sentia saudade de carinho, saudade de abraço, ela foi dar de focinho com luana. luana tava magra e faminta. quando era um nenê luana era gorda e brincalhona e luana recebia carinho todo dia. depois luana tinha de procurar comida com luara. depois luara ficava muito tempo fora de casa e luana tinha de caminhar sozinha. e procurar comida sozinha. luana brigou na rua e até fornicou a contragosto. quando ficou prenha luara nem viu. luana deu luz aos filhotes sem ninguém nunca saber, seguindo o instinto. e quando eles nasceram e eram pequenos e rosados, estava frio demais, e choravam demais. luana os enterrou. quando luana desenterrou eles estavam mortos. luana não chorou. não, porque não sabia como é que ia procurar comida pra ela e pros filhotes e qual a cara da luara quando ela visse aquela meleca toda. no começo, luana tentava chamar atenção de luara, depois esmoreceu. sentia os ossos chacoalharem dentro do corpo e ia ficando velha. luana lembrava bem pouco da sua vida, não sabia dizer se tinha sido ruim. só não lambia os beiços de prazer. ficava agora longas horas com a cabeça entre as patas contemplando o nada, pensando no vazio. nem os passarinhos a despertavam dessa meditação profunda que aprendera com a vida. a vida tinha lhe dado esse presente, para ela poder viver, e de certa forma, viver pouco, era economia instintiva. quando passava o caminhão de gás, luana mexia as orelhas a fim de escutar, mas não latia. quando ouvia o silvo raspado da barata, permanecia. foi num longo minuto imóvel e ausente de qualquer sentido (nem um cheiro sequer) que luana convulsionava na mais absoluta paz e serenidade, que luara olhou nos olhos de luana. e luana repentinamente sentiu. sentiu a fisgada na perna, a fisgada no coração, que começou a cambalear dentro dos ossos chacoalhantes. ainda com um pouco temor, ainda tendo aprendido com a vida que carinho não se pede, atenção não se chama, o rabo se moveu instintivamente, incontrolável. luana não podia controlar o rabo, nunca pôde; era no rabo que se escondia uma cápsula de vida, uma cápsula de vida incontrolável e tão mas tão aberta que não podia ver os horizontes. luana se aproximou lentamente, como quem tem medo, como se ela fosse um monstro ou um móvel repentinamente novo. uma bruxaria, de certo. lua na. disse ela. e manteve os dois olhos, se aproximando pé ante pé, andando menos de um centímetro. luana permanecia deitada na pequena varanda, as paredes eram nuas de concreto, para lá estendia um quintalzinho de terra batida; quando a mãe de luana era viva ali cresciam as ervas de bruxaria, e agora elas jaziam, quase todas comidas pela própria fome da luara dos pulgões; em cima dela esvoaçavam as roupas de luara, estendidas em fios de nylon não tão firmes, uma camiseta vermelha balançava insistente, uma saia jeans permanecia imóvel; o tanque branco-amarelado; uma centena de coisas grandes empilhadas, lata de tinta, vassoura, rodo, baldes, panos de chão, um martelo, pregos, pá, coisas de jardinagem, uns vasinhos vazios, umas sacolas, uns papelões, umas latinhas. luara andava devagar e enquanto ia olhava como se pela primeira vez para todas aquelas coisas empilhadas, olhava para o muro que delimitava o fim da casa, luana, puxa, que quintal pequeno. luana levantou as orelhas, soergueu um pouco mais o focinho, quase podia sentir, como antes, o cheiro de erva doce que emanava de luana. quase ela estava muito perto de estar perto de novo e luana se lembrou de tudo: da pele dela, dos olhos dela, das perguntas da pequena luara. olhou de novo para ela e viu que luara era uma moça e que tinha restado uma ou outra coisa da menina; os cabelos de árvore, ela podou, os seios redondinhos, se espremiam num sutiã, uns brincos de argola, uns olhos que tinham alguma coisa, como se tivessem se esticado pros cantos do rosto. luara ia vendo a cozinha: o fogão de quatro bocas, o azulejo decorado de azul, o chão riscado, a geladeira amarela, a mesa de madeira mambembe, depois lá fora, depois luana e encarou os olhos bem redondos de luana e viu que ela tinha agora uns olhos tristes e uns olhos velhos, e o cheiro de ossos que ela exalava, mas bem perto mesmo. o seu focinho é o mesmo, danada. e luana viu que no fundo dos olhos dela, e a pele, e as mãos bem gordinhas, eram as mesmas também. nesse dia luara chorou. chorou porque se sentia sozinha e que tinha deixado luana sozinha. hoje nós vamos cantar pra lua, como antes. e eu vou tentar plantar aqui uma erva doce. elas ficaram abraçadas vendo a lua subir no céu, era lua minguante, um restinho de lua. a luz estilhaçada brilhava no quintalzinho de terra batida e luana e luara tinham apagado a luz para poder ver bem os contornos da lua. laura pediu conselhos à lua. à parte iluminada da lua, luara, pediu, eu preciso de claridão. seu rosto se iluminava pouco, bem pouco, mas se via o branco do olho e a bola preta que era sua íris se mexendo para lá e para cá. a bola preta de luana também se mexia, e ela mexia o rabo, e sentia mexer o coração, e fuçava as patinhas e tinha dentro dela uma vontade de se chacoalhar. luana não precisava mais da meditação. agora ela podia ver e ouvir e sentir e fuçar. acordaram com o sol a ofuscar os olhos. e luara olhou o quarto-sala: o sofá que virava cama, o quadrinho pintado do mar, com moldura azul da mesma cor da tinta, o tapete, o piso frio, sentia frio e colocando por cima um cobertor disse: já já eu vou arrumar tudo isso, luana. abandonando outro emprego, tomou um banho quente, e em vez de passar a erva doce no corpo, como costumava fazer, tentou plantar. um dia esperou impaciente. ela e luara ficavam olhando pro chão esperando a planta brotar. não brotou. também ficou com fome e comeu o resto de coisa que havia na dispensa. outro dia se passou e luana já sentia de novo a coisa tod se amortalhar, a voltar o vulto preto a tomar aquela casa. procurou um canto e se escondeu. luara saiu de casa, depois voltou, depois chorou. depois procurou por luana e ela bem quietinha, querendo fugir de luara, daquele véu de morte que ela trazia. ela procurou incansável e chorando, sentindo o corpo todo doer, o olho doer, e achou a cachorra e lhe bateu e depois lhe agarrou e depois lhe disse: venha. luara e luana andou. por cem mil léguas, elas andaram, e rezavam quando a lua aparecia. luara pedia a à mãe que ela a guiasse. quando já estava tão longe de casa como nunca esteve antes, olhou para trás. e viu atrás dela os campos de cana, a estrada que ia dando num nó distante, a cidade bem longe, a fumaça que cobria. luara sentia os pés arderem e sentia os ossos de luana reclamando também, mas sabia que a única saída era andar. trazia colado ao ventre todo o dinheiro que tinha guardado, numa bolsinha bem amarrada. nos pés dois tênis e na cabeça crescia de novo o cabelo duro que não precisava pentear. ela já não sentia nada, quase nenhuma predestinação, já sentia que tua mãe tinha virado pó e poeira da mesma consistência que era a poeira que saia dos seus pés e de luana quando andavam na estrada de terra. não tenho que dizer nenhuma verdade, luana, não escondo os mistérios nenhum, talvez só você dentro desta tua barriga magra. por muito tempo eu achei que tinha de revelar as coisas. as pessoas não me ouviram, luara, e eu esqueci de ouvir você. você sempre me disse. isso. sempre me disse qualquer silêncio. você nunca nem latiu. luana assentiu, contente de ter feito bem seu papel no mundo. poderia morrer agora, mas ela queria antes cheirar as coisas que tinham para ver. as estradas e as florzinhas do campo e as cidades novas e as feições novas. os outros caminhões de gás e grilos em vez de baratas, gatos siameses por detrás de grades de grandes prédios; que ela não precisava correr atrás. e queria ouvir os mosquitos e os carros e os sons das vozes das pessoas que luara encontrava, e o cheiro de sexo que exalava. os passos, os resquícios. que dentro da barriga dela eles se acumulassem e fizessem retinir de completude os ossos que balouçavam.