outubro 13, 2016

o vidro

é quatro da tarde e deu um crush.
parece que parou, ela sentiu o ar escorregar dentro. ele contemplou o vazio da tela; o som da água escorria, há quanto tempo ela lavava a louça? lavava a louça devagar com muito pouco pra fazer depois, então lava-se devagar, como as mães fazem. o que uma mãe faz em casa o dia todo? é quatro da tarde, a louça lavada e as horas se demoram para a próxima hora produtiva.
nem mãe era.
vinte e tantos, todos os dentes, embranquecidos pois o pai é dentista. é quatro da tarde de um dia qualquer e não há motivo algum para mostrar os dentes, para sorrir. por ventura, a tela que ele olha para dentro exala sua luz alva; e uma tela de computador por ora é plana por ora é profunda. poderia nela mergulhar e tudo que haveria em volta seria vazio? e números.
vazio.
também se pudesse mergulhar na superfície plana da mesa de madeira seria vazio. qual a distância de um átomo a outro, como mergulharia para que pudesse encontrar, exata, a matéria da matéria e nela se enfileirar como parte do seu?
caso fosse, a madeira não seria mais madeira. e toda a reflexão se perdeu!
é quatro da tarde, nada faz sentido e a única reflexão que ele se aventurou é uma completa falta de sentido, uma completa perda de tempo. pois a madeira só é madeira já que não se mergulha nem se mistura nela. e a tela do computador apenas... descanso de tela.
que inutilidade.
é nessa hora demorada que mesmo o pensamento mais inútil... qualquer distração se descasca sozinho qual uma laranja; exibe aquela nudez sem graça. como um abacate todo comido, e aquela sementona arredondada. maciça e inútil. não há terras suficientes para plantar sementes de abacate.
ela pousou a mão na pia e achou que poderia começar uma horta. uma horta, agora.
passou pela sala e tocou o ombro dele. não percebia que ele crivou os olhos na tela e não os mexia. ela afanou o algodão da camiseta. macio... e cheiroso. ele despertou. fez menção de pegar nos dedos dela.
frios. estava lavando a louça aquele tempo.
embora ele segurasse os dedos, ela agora se deteve atentamente na janela. uma chuvinha fina percorria o mundo, prédios e oficinas baixas e um viaduto zunindo, um céu cinza, dia de cú. não sabia se ela olhava para a paisagem ou se se detinha mais especificamente no vidro.
na janela em si mesma.
o vidro; tal placa feita de areia, vinda do mar, forjada em grandes indústrias, placas vendidas a esmo feito camelo em deserto, colocados delicados entre o chão da tua casa e o nada do lado de fora. uma porta... um portal para poder ver o outro lado; o que está fora; o mundo, o grande mundo.
cem vezes que nossa casa é dentro e quente, confortável e cômoda, enjoativa e vomitada, impregnada de suor e sabão de roupas, mil vezes que lá é o mundo onde acontecem as coisas. onde os bêbados caminham e os homens vão ao trabalho e as mulheres aos mercados e os carros são consertados e as grandes indústrias funcionam, e mais além, os verdes mares de morros, e mais além, as praias e o mar rugindo, lá além da janela/ tantos mundos/ vão se desdobrando/ tantos mundos/ que eu quis descobrir/ tantos mundos/ que eu só vejo/ aqui, pela janela. o mundo que todos os cheiros do mundo se misturam: pó e carbono, esgoto, e terra molhada, e brisa, e até flor.
ela destacava essas coisas, mal pode perceber que tocava com os dedos o vidro da janela. ele vinha atrás.
parece tão injusto que o mundo real fica lá.
ela torceu o nariz no vidro.
já era cinco da tarde e não havia crush.
o tempo fluía e a chuva recomeçava sua cantoria, pelas ruas ia despejando todo o lixo e toda a gente. ela agarrou com força as estribeiras da janela e a abriu, sentindo o cheiro forte e uno de tudo, um cheiro de entortar os sentidos. teve vontade de ir lá, para este mundo, para o nada.
a frente de um apartamento, alto, há um nada, pois há apenas ar e a paisagem parece ilusória.
quis se deixar levar, era um sentimento novo, forte. colocou as mãos para se debruçar e sentiu o algodão da camiseta dele abraçando-a.
estava no chão do apartamento, o vento repentino bagunçava tudo, caía vasos de plantas e voava lencinhos de enfeites. ele estava abaixo dela, segurando-a.
o que houve?
você se debruçou, tinha um rosto alucinado
vamos fechar as janelas
você tem certeza...?
ele parecia duvidar da sanidade dela, parecia não querer que ela se aproximasse da janela novamente.
ela assentiu, decidida, recomposta, arrumou os cabelos, o que tinha se aberto no peito, qualquer coisa, um algo que tinha entrado dentro dela e forçado os limites até que se tornassem buracos fundos demais, sem vidro, apenas buracos, já tinha se fechado. pois dentro das clavículas não sentia mais aquele frio interno, mas sim o morno, o morno de sempre e a cabeça vazia, novamente vazia, concentrada no dentro de casa, nos tacos saindo, na terra que tinha derrubado, o maldito vento.
foi até lá e fechou as janelas sem olhar para baixo ou viu apenas a mesma paisagem e nada lhe ocorreu. o vento tinha feito um estrago.