outubro 15, 2016

pra saber dar nome às coisas terríveis

talvez pelas coisas que eu te falei e pelo que sinto por você, já não é possível te ajudar. parece que não será mais. entretanto, não é possível ajudar mais ninguém, nenhuma palavra que traga conforto vai nos salvar das coisas terríveis que sentimos. e que nem mesmo sabemos colocá-las em palavras, usando outras sem bem encaixar; é como um furo, apenas um furo em algo que deveria ser inteiro. há algum tempo, éramos inteiros ou, melhor dizendo, buscávamos ser inteiros. e tudo que queríamos era ser inteiros, então juntávamos nossas partes e nossos traços de personalidade e nossa estética e como gostaríamos de aparecer e quem éramos, nossos traumas de infância, as coisas herdadas, as características astrológicas, quisermos ser inteiros. e por um tempo, nessa busca de ser inteiro, éramos inteiros - sem nunca saber disso. era a busca que nos fazia inteiro. depois de algum tempo, paramos de buscar ser inteiros, acreditando ter montando algo ou alguém, ou ainda, acreditando ter montando um modelo de nós mesmos, projeções miúdas; e nunca se tornando neste modelo, nem tendo os sonhos costurados à nossa pele, nos tornamos versões frustradas de nós mesmos. de repente, éramos inteiros pois não há mais tempo hábil para nos construir - o tempo escasso de pensar com qual roupa transmitiria nossa bravura ou como éramos doces - o tempo mata, pois zilhões de coisas surgem para se pensar e calcular, elaborar estratégias e poder bem discursar e conversar sobriamente e manter as opinões enquanto trabalhamos e elencamos as atividades diárias. então, éramos inteiros pois não havia mais como nos construir, mas éramos metade, furados, escassos em nós mesmos. num modelo que mal lembramos como é que se arranjou, mas se instalou feito doença de pele. sem saber como coroar ou como se lembrar por quê nos frustramos, nos prostramos em pura frustração, sem nem saber dar nome a isso. dizemos que estamos entediados, sozinhos, calados demais, confusos, perdidos, tristes, melancólicos, com ódio, amargos, mal humorados. e procuramos os outros, os outros que estavam ali ao nosso lado buscando por ser eles mesmos inteiros, por alguma salvação. eu que encontrava meu bem estar (e talvez parte do que é ser eu mesma) em ajudar os outros, em dar-lhes os braços, enxugar os olhos e consegui-los fazer rir, e ver que há outros caminhos, que essas coisas passam, já não consigo mais. agora há o furo, o buraco, e meus pedaços, para juntar, fazer algum sentido. sem socorrer, nem ser socorrida, posso me lembrar das vezes que te abracei e que sorrimos; posso me lembrar que eram problemas mais bobos. mais doloridos, talvez, mas palatáveis, evocavam nomes, ações reais. agora há algo abstrato demais, pois ninguém sabe do que se trata. não há mais sábios, conselhos. todos eles estacam na língua. ainda quero preservar esta memória: a memória sincera dos nossos problemas e das nossas feridas, do porquê chorávamos, das paixões e de como as superamos, de como bebemos e caímos de beber, a memória do tempo como algo que passa; que flui; que transforma. tudo no momento agora parece por demais estanque. como se esperássemos por algo. me sinto no tempo da espera; disfarçada da cor da terra, como um inseto ou um molusco a fazer pouco ruído, esperando... com medo de que coisas grandes despertem cedo demais, um estrondo que meu corpo não poderá carregar. por isso, é importante me lembrar que o tempo é uma enxurrada, que leva com ele os detritos, que traz ora vida, ora morte; embora agora repouse plácido e sufocantemente calmo. é importante, mas tão difícil, não se deter no lamúrio de que a vida se passe acima do lago; calma e lisa. mas não é esse temor o próprio tremor que preparará a grande mudança? ou seria apenas o temor que nos deixa com aparência de doentes. se você vem a mim, tudo que eu poderia lhe oferecer é um abraço tremido, talvez com medo de lhe tocar forte demais. poderia eu...? de alguma forma, não há quem socorra, não há quem peça socorro; somos enfim iguais. gostaria de lhe dizer, que se pudéssemos achar algum jeito de estabelecer novamente uma conexão entre nós; de um jeito novo, e não como estávamos acostumados na escola e como levamos à faculdade. e se somente essa conexão fosse, de alguma forma, a salvação - que seria nada mais que viver. saber viver. ninguém nos ensina a aprender a viver; há um mundo largo e nossos pés pequenos e nossas cabeças esquizofrênicas e umas mãos ansiosas, olhos chorões. aprender a viver. eu gostaria de não aprender sozinha; gostaria de compartilhá-la; torná-la memorável. como um igual perante ao outro; sendo o outro não mais o outro de mim. o meu amigo, a minha namorada, a minha mãe, etc. todas as pessoas existiam no mundo apenas para me formar. para formar o inteiro. finalmente, eu gostaria de conhecer e reconhecer as pessoas ao meu redor como as pessoas, por elas mesmas e seus destinos. e como os seus pés caminham, de modos que desconheço. e que não podem me ajudar como eu não posso lhes demonstrar o jeito certo. deveremos nos despir. conhecer as pessoas pelo melhor momento de suas vidas a acontecer ou acontecido: quando elas olharem e verem as coisas. as coisas como elas são, sobre a terra, sob o céu e o peso da gravidade. o outro como outro. e talvez pudéssemos novamente conversar, achar as palavras certas, para dizer, sinceramente, um ao outro, que não sabemos como viver. e é isto que podemos oferecer. nossa ignorância perante a tudo; e uma companhia ignorante para que possamos ser tocados pelo mundo e refletirmos com os outros. apenas longas conversas. sem ter que socorrer ou pedir socorro. sem ter que sermos inteiros. para talvez, talvez... consigamos destruir aqueles modelos, os modelos de frustração aos quais nos apoiamos. e sejamos nós mesmos de acordo com o tempo que corre, de acordo com o que está aqui. mesmo feio e irrealizado, mesmo tosco e inseguro, talvez infantil demais, talvez muito velho. para saber dar nome às coisas terríveis; sem esperar que elas passem.