fevereiro 25, 2012

joana entristecia

quando joana entristecia, que fim alarmante. pegava na minha garganta o gosto: era amargo, era terrível. vinha lá uma manhã sem sol, nem chuva, apenas céu em infinito. céu, joana? para que tanto, meu deus? é tanto céu para que ela se espalmasse de bruços, triste feito uma. era uma luz branca e fria que repentinamente assolava a nossa casa. joana se empalidecia, se é que era possível, toda a cor se esvaía. permanecia de bruços e eu sem coragem de virá-la, de virá-la e encontrar os olhos também brancos. joana era toda branca, rainha branca da morte, se enganam os trouxas em achar que terrível é a escuridão. joana se fazia branca e o mundo junto: nada mais parecia viver. nada mais parecia ser possível ser feito, existir. eu me aninhava desconfortavelmente em torno dos meus próprios gordos braços. eu também queria proteção, joana. eu não tinha. era atingida como um raio por essa sua tristeza, essa languidão, é tudo deserto, você dizia, com voz de soluço, só deserto. eu também me desfazia, joana, mas você nada via. já estava preocupada em consumir a si mesma, sumir por si, se embrenhar no fundo da terra: encontrar o seu reino, a sua morada. em dias de desespero, joana, cheguei a pensar, que pequena demônia branca trago em casa, trago em casa Aquela que semeia desespero e angústia com seu halo de. tinha cheiro de doença, por esses dias, joana. doença, morte, sujeira, é um cheiro de. um cheiro amarelo, creolina, sobe e contamina. tudo em você dispersa e contamina: o cheiro, o gosto encrustado na garganta feito molusco, a luz cega. e você, por si só, se desfazia, enquanto se irradiava, se desfazia, joana, era como uma aquela daquelas bombas, bombas de hidrogênio, feita de, hidrogênio, isso mesmo, me parece, transparente, lisa e asfixiante, assim, me parece, hidrogênio, de tanta água e tanto céu que nenhum homem pode aguentar. e por esses dias, quando não sumia, deixando para trás o rastro dos seus cabelos branco-prateados, o halo por tudo que percorria, quando não sumia por si só, dava para fugir, deixava-me sozinha me remoendo, sofrendo a sua dor, joana! que menina egoísta. era eu que tinha que me levantar, e eu sempre fui pesada, não tenho esse seu passo leve, esse seu flutuar constante, o jeito com quê você mal pisa na terra para não se contaminar dos dejetos dela: eu, joana, mulher e humana, era toda cheia de dejetos, tinha os dois pés bem fincados no chão, recebia tudo por baixo, pesava minha vida de mais de cinquenta anos ressentidos. e tinha que me recolher da minha dor, que você espalhara, tinha que enxugar as minhas lágrimas, que eram secas, mas os olhos inchavam, e com o corpo todo doído sair a procurá-la, pelo seu halo específico, essa luz que só você tinha. e a encontrava, joana! eu que te lavava, secava suas roupas, penteava seus cabelos e te punha até batom nos dias de sol, deixava-te corada e te perfumava, você entre os imundos se instalava, nas ruas mais escuras, vielas por onde o sol não podia entrar, você entre os imundos, ali estava, imunda e branca, como podia? você entre eles e como eles, e eles não a percebiam, a tateavam cegamente com suas mãos negras: joana, você ria? ria de cócegas? eles não a percebiam, mas gostavam de você ali, era como um conforto raro, um tanto desolador, pela certeza de que se vai embora, ou pela incerteza de ser confortante, de ali estar também uma criatura tão desolada quanto. e eu tinha que entrar por essas vielas, eu joana, que sofria de medo de tudo, eu joana, que me enojava ao cheiro de esgoto e que tinha manias de limpeza, por você entrava, ainda o corpo doía, e tinha que lhe catar pelos braços, e você ria louca, ria louca, ria branca. nunca se rebatia, deixava se levar por mim, sabia que eu viria lhe buscar, por vezes perguntava por que é que você vem? eu te amo, joana. você não pode entender, mas eu te amo. até mesmo você que era soberana baixava os olhos ao ouvir essas barbaridades, que eu sempre disparei sem medo de ferir, esse tipo de palavra que só devia se dizer na penumbra, de um jeito baixo e doce. e até você era ferida, até você que era de hidrogênio e por você passava-se tudo, até você que não entendia o amor - porque o amor é terrestre - entendia o estrago que se fazia. e, no final das contas, joana, era amor que você irradiava e era por amor que você rastejava até a gente imunda e por falta de amor que você me abandonou, certa de que eu já não poderia te acompanhar aos escombros mais terríveis. e para pagar pelas minhas palavras, sempre ditas com displicência, você se foi e me deixou te amando, e me deixou sofrendo por saber que você se foi por minha incapacidade. agora eu posso ver, tristemente, joana, ao seu lado eu experimentei a morte antes de senti-la, quanto cega eu pude ser de pensar que poderia sofrer maior dor depois de. mas eu sempre tive medo, muito medo, sempre tive muito respeito pela morte, por deus em frente ao seu portão dourado e seu cajado de luz que me cegaria. joana, você. nunca pôde me perdoar por sentir temor de um deus maior que você. filha indesejada dos deuses, rainha dos desolados. desovou toda a minha alma, me amargou, para que eu pudesse tê-la, vez em quando, dentro do meu corpo, vez em quando, toda minha, toda divindade e toda animalidade, seus uivos de loba que ainda sonho dia noite dia sim, seus uivos de loba, eu os tive, e posso, vez em quando, me lembrar e sorrir, sorrir e não me arrepender, seus uivos de loba, joana.

fevereiro 01, 2012

aquela praia, joana

ando pensando em voltar àquela praia. nossa praia, joana, aquela, aquela que você. ah, joana. queria voltar e vê-la, reconhecer no som do mar o sopro da sua voz. mas já não me lembro, o nome. o nome da praia, onde é que fica, em que raios de litoral a achamos, deserta e estendida, o mar verde que ia cobrindo tudo. chegava maré cheia e era só mar verde, joana, você, gostava de sentir a água vir ocupar seu corpo: todo o corpo de branco a verde, joana, você feita de água, eu debruçada sobre sua imagem espelhada. iemanjá. iemanjá por detrás dos longos cabelos negros te espreitava, te desejava. iemanjá com seu canto maldito te chamava de noite: e você, sonâmbula, obedecia. era serva de deuses, era ninfeta. acordava no meio da noite assustada, pasmada com a sua ausência, do corpo que já não me tinha, lá era você, dada ao vento do mar, ouvindo as cantigas dela, iemanjá, larga dela, joana, volta, minha flor, pra cama, vem que isso é demônio. já não olhava para mim, mantinha os olhos acesos ao horizonte, ao longe, sempre no ponto fundo do mar: ele te chamava, profundo, para te ver conhecer, você sentia, ele te chamava para onde você vinha, você ouvia o sonar que eu não ouvia. que diabo há nesse mar, nessa coisa para você fugir assim? o que tem de melhor lá, joana? você só ria. esta praia, joana, qual era o nome, feiticeira, memória bruaca, apagou-me os nomes, devagarzinho, foi apagando tudo e deixando só você no branco vazio da memória. qual era o nome que te fez encantar uma menina, uma morena, pouco mais nova que você, o cabelo fofo, joana, a olhava com olhar de menina, e ela retribuía. como rezei aos santos mais santos, como pedi ao mar que me ajudasse: iemanjá, tira esse encanto dessa menina que eu te devolvo ela, te devolvo logo depois de amá-la um pouco bem mais. já não era minha, joana flutuava ao som dos passos descalços da morena caiçara, ela fazia pouco barulho, tinha pés de cascos, ria feito cascos, como éguas galopando, ria grave e sentida, tinha um jeito todo. todo escravinha, joana, todo escravinha. eu choramingava minhas dores de velha: meu reumatismo, minhas rugas, meus dedos que te pertenciam. e você, que se sabia divindade, que se sabia desejosa, a pele branca arrepiava, queria ser. você que não entendia: eu te disse, que há, joana, que há, nós somos casadas, meus nós dos dedos são seus, tão seus. olhava-me atônita, irônica. não podia refrear desejos, o canto da iemanjá, feiticeira dos demônios, velha já cansada, chamava com seu canto doce as duas meninas novas, fazia o mar se acalmar, a areia macia, chamava com sua brisa maliciosa, espiava com os olhos bem abertos à beira do mar, as duas meninas se amarem. não sabiam que se amavam, sonâmbulas, se amavam de olhos fechados, não sabiam o que faziam, meninas, roçavam a pele macia, a pele menina, uma noutra, os pêlos novos que despontavam, comiam feito veados a grama verde, com a língua lambiam os braços do mesmo modo que lambiam os seios, lambiam a tudo porque não sabiam, sentiam-se febris, trêmulas se forçavam, queriam de branco a preto tornar-se cinza, eu vi com meus próprios olhos, faziam aquilo como doentes, delirantes, no dia seguinte já não sabiam o que tinham ocorrido. joana, por você, eu que. larguei tudo. joana, que era minha, por tudo que é mais sagrado, que era minha. você não entendia, era tudo delírio, dizia, tive um sonho. um sonho, um sonho de espuma, era verde. como era, eu perguntava enfurecida. era tão. e você parava com os olhos parados tentando rememorar. como eu a odiava, tentando rememorar. a boca sêca rosada num instante molhava-se e inchava-se feito fruto vermelho, joana, os olhos brilhavam feito ensandecida e dizia não posso lhe dizer, não posso, mas e ria louca, ria com todos os dentes brancos do mundo e ria, sentindo o corpo todo tremer, faz assim, treme assim, dizia já com ganas, e as próprias mãos buscavam o próprio corpo a procura de. joana se amava. e quando se amava amando a outra em delírio, eu louca e possessa, eu que era sua mãe, sua dona, sua irmã, sua mulher, era a mim que esses sentimentos ardilosos tinham que correr soltos, era a mim que esse delírio pertencia, joana, deixava-lhe vermelha, vermelha de tanto bater, você chorava, chorava, o, joana, chorava, chorava mas jamais sangrava. que crueldades estas minhas mãos cometeram que ódio eu lavo agora, próxima da morte, que pecados eu peço misericórdia, como rezo dia santo todo dia à joana. e mesmo que chorasse, me provocasse, pedindo-me vamos levar aquela menina, morena, aquela menina conosco, ela precisa, o pai a abusa. o pai a abusa, como você sabe? como você sabe, como você sabe? e ela chorava pois agora sabia que traía, chorava lágrimas de crocodilo que cortavam-me o coração, chorava dengosa no meu colo, eu vi, vi as marcas, vi como sangra, vi tudo, e como é, eu lhe perguntava, perturbada, ela a prende na rede, pesca o peixe que comemos, não quero mais desse peixe, e nos almoços vomitava o peixe engasgada, a espinha toda lhe saía da garganta cortada: quem te faz assim, joana minha, quem te faz. vamos embora, joana, minha. e chorava, chorava de um jeito que parecia desinchar, os músculos desaguavam, era só osso, joana, próxima da morte, se acorrentava ao mar, permaneceu ali deitada. "não quero ir". vou voltar, você disse, e voltou, joana, voltou para o mar, para nunca mais voltar, joana.