fevereiro 01, 2012

aquela praia, joana

ando pensando em voltar àquela praia. nossa praia, joana, aquela, aquela que você. ah, joana. queria voltar e vê-la, reconhecer no som do mar o sopro da sua voz. mas já não me lembro, o nome. o nome da praia, onde é que fica, em que raios de litoral a achamos, deserta e estendida, o mar verde que ia cobrindo tudo. chegava maré cheia e era só mar verde, joana, você, gostava de sentir a água vir ocupar seu corpo: todo o corpo de branco a verde, joana, você feita de água, eu debruçada sobre sua imagem espelhada. iemanjá. iemanjá por detrás dos longos cabelos negros te espreitava, te desejava. iemanjá com seu canto maldito te chamava de noite: e você, sonâmbula, obedecia. era serva de deuses, era ninfeta. acordava no meio da noite assustada, pasmada com a sua ausência, do corpo que já não me tinha, lá era você, dada ao vento do mar, ouvindo as cantigas dela, iemanjá, larga dela, joana, volta, minha flor, pra cama, vem que isso é demônio. já não olhava para mim, mantinha os olhos acesos ao horizonte, ao longe, sempre no ponto fundo do mar: ele te chamava, profundo, para te ver conhecer, você sentia, ele te chamava para onde você vinha, você ouvia o sonar que eu não ouvia. que diabo há nesse mar, nessa coisa para você fugir assim? o que tem de melhor lá, joana? você só ria. esta praia, joana, qual era o nome, feiticeira, memória bruaca, apagou-me os nomes, devagarzinho, foi apagando tudo e deixando só você no branco vazio da memória. qual era o nome que te fez encantar uma menina, uma morena, pouco mais nova que você, o cabelo fofo, joana, a olhava com olhar de menina, e ela retribuía. como rezei aos santos mais santos, como pedi ao mar que me ajudasse: iemanjá, tira esse encanto dessa menina que eu te devolvo ela, te devolvo logo depois de amá-la um pouco bem mais. já não era minha, joana flutuava ao som dos passos descalços da morena caiçara, ela fazia pouco barulho, tinha pés de cascos, ria feito cascos, como éguas galopando, ria grave e sentida, tinha um jeito todo. todo escravinha, joana, todo escravinha. eu choramingava minhas dores de velha: meu reumatismo, minhas rugas, meus dedos que te pertenciam. e você, que se sabia divindade, que se sabia desejosa, a pele branca arrepiava, queria ser. você que não entendia: eu te disse, que há, joana, que há, nós somos casadas, meus nós dos dedos são seus, tão seus. olhava-me atônita, irônica. não podia refrear desejos, o canto da iemanjá, feiticeira dos demônios, velha já cansada, chamava com seu canto doce as duas meninas novas, fazia o mar se acalmar, a areia macia, chamava com sua brisa maliciosa, espiava com os olhos bem abertos à beira do mar, as duas meninas se amarem. não sabiam que se amavam, sonâmbulas, se amavam de olhos fechados, não sabiam o que faziam, meninas, roçavam a pele macia, a pele menina, uma noutra, os pêlos novos que despontavam, comiam feito veados a grama verde, com a língua lambiam os braços do mesmo modo que lambiam os seios, lambiam a tudo porque não sabiam, sentiam-se febris, trêmulas se forçavam, queriam de branco a preto tornar-se cinza, eu vi com meus próprios olhos, faziam aquilo como doentes, delirantes, no dia seguinte já não sabiam o que tinham ocorrido. joana, por você, eu que. larguei tudo. joana, que era minha, por tudo que é mais sagrado, que era minha. você não entendia, era tudo delírio, dizia, tive um sonho. um sonho, um sonho de espuma, era verde. como era, eu perguntava enfurecida. era tão. e você parava com os olhos parados tentando rememorar. como eu a odiava, tentando rememorar. a boca sêca rosada num instante molhava-se e inchava-se feito fruto vermelho, joana, os olhos brilhavam feito ensandecida e dizia não posso lhe dizer, não posso, mas e ria louca, ria com todos os dentes brancos do mundo e ria, sentindo o corpo todo tremer, faz assim, treme assim, dizia já com ganas, e as próprias mãos buscavam o próprio corpo a procura de. joana se amava. e quando se amava amando a outra em delírio, eu louca e possessa, eu que era sua mãe, sua dona, sua irmã, sua mulher, era a mim que esses sentimentos ardilosos tinham que correr soltos, era a mim que esse delírio pertencia, joana, deixava-lhe vermelha, vermelha de tanto bater, você chorava, chorava, o, joana, chorava, chorava mas jamais sangrava. que crueldades estas minhas mãos cometeram que ódio eu lavo agora, próxima da morte, que pecados eu peço misericórdia, como rezo dia santo todo dia à joana. e mesmo que chorasse, me provocasse, pedindo-me vamos levar aquela menina, morena, aquela menina conosco, ela precisa, o pai a abusa. o pai a abusa, como você sabe? como você sabe, como você sabe? e ela chorava pois agora sabia que traía, chorava lágrimas de crocodilo que cortavam-me o coração, chorava dengosa no meu colo, eu vi, vi as marcas, vi como sangra, vi tudo, e como é, eu lhe perguntava, perturbada, ela a prende na rede, pesca o peixe que comemos, não quero mais desse peixe, e nos almoços vomitava o peixe engasgada, a espinha toda lhe saía da garganta cortada: quem te faz assim, joana minha, quem te faz. vamos embora, joana, minha. e chorava, chorava de um jeito que parecia desinchar, os músculos desaguavam, era só osso, joana, próxima da morte, se acorrentava ao mar, permaneceu ali deitada. "não quero ir". vou voltar, você disse, e voltou, joana, voltou para o mar, para nunca mais voltar, joana.