janeiro 08, 2012

ferro, joana, seda

corria porque sentia. sentia de longe o cheiro de ferro que vinha dali, dali de dentro, joana. você toda desmanchada. tinha medo de chegar e só restar você, uma poça - que aflição. quando era dia de, você já sabia. olhava-me por cima das olheiras, olheiras desse tempo, prevendo. tremia de medo à noite. pesadelos, pesadelos de menina. chorava, gemia, se contorcia. "vai vir, vai chegar, vai vir". sei que vai. nós todas sabemos que vai. a vizinha do apartamento ao lado também sabia. encontrava-a no elevador, segurando sacolas plásticas. tão parecida comigo. pintava o cabelo. de louro platinado. costumávamos rir dela. mas ela também sabia, naqueles dias, me olhava. séria e fria. sabia que ia lhe atingir - lhe atingiria enquanto o marido roncava a sono estúpido. eles não, joana. nenhum deles poderia ser capaz de entender, de cuidar de você. quando vi pela primeira vez, sorri. você chorava e eu sorria. você dizia que doía e eu sorria. disse que "há um tempo que eu não." mas você, joana, que tipo de mulher você era? super-fêmea. divindade não menstrua. menstrua, deus do céu, jorra sangue. eu corria, porque sabia, eu sentia. eu corria, no trânsito, com os olhos parados, eu corria, porque eu sabia. você chorava absurda sobre os pingos no chão. não é nada, joaninha, não é nada. esfregava as mãos. naquele tempo, nos últimos, lambia o próprio. não posso completar mais as frases. quanto mais penso sobre você mais me impeço de falar de você. eu não consigo dizer tudo completamente - tudo é tão feito de dor que eu. vê? tenho chorado muito, joana. acredite. tudo era tão grande em você e eu nunca pude compreender. nunca te levei ao hospital, ver se era normal. eu não. não queria te compartilhar com ninguém. a verdade é que eu te achava linda. eu te achava linda quando chegava em casa e te via estendida, nua. a pele branca, tão transparente. de seda. você era. feita de. macia e escorregadia, chorava, branca e vermelha no meio da sala. que há, joana minha? joana, joana. parecia criança, a toda a vida. não se acostumava. que memória você tinha? a memória vaga dos velhos, dos profetas, daqueles que tudo sabem - mas não sabem qual o dia de fazer feira. você não sabia nem que era mulher, joana, eu lhe dizia: mulher. mulher minha. éramos complementares, vê joana? éramos perfeitas diante de deus. eu sabia os dias todos, riscava as tabelas para você. tabelas, tabelas. você as comeria, se eu as mostrasse. que graça, joana, que graça. você era estonteante quando mulher - mais mulher que nunca. que maldade fez-te deus, joana. te fez deusa, mas antes mulher. eu ria. pegava-lhe o sangue e mostrava: vê? é mulher. é escuro, pois é mulher. te fez mulher para. assim nós. você se contorcia, se desmembrava. parecia faltar. lívida, chorava alto e eu te beijava, calma joana minha, calma, a vizinha loura platinada vai escutar, ela já sabe, você é mulher, você não ouvia. sentia dentro de si um mundo, sentia dentro toda a dor que há a se sentir por ser. tão frágil, mulher. fica assim não, que eu te cuido. eu que não pude ser homem, eles que não puderem te amar, eu posso. eu te amo. eu te digo, eu te lambo. e você rápida, se masturbava. em agonia, se masturbava. era tudo isso: dor e delírio, eu podia só te olhar. só eu te via. e só de te ver, de te ver em tal estado, jamais imaginaria que pudesse existir. você não me via, via nada. você se liquefazia. de branca, vermelha, escurecia. mal entendia. mostrava-me os dedos de sangue, depois, mostrava-me como uma criança. como se não soubesse. que é que você sente, menina? por vezes fiquei assombrada. me acostumei. te carregava no colo, botava para dormir. você é menina. no outro levantava-se soberana. andava como se flutuasse. como se fosse de seda, joana. sorrateira, ia se arrastando por tudo, me mordia e ria, achava engraçado. de repente, você. era tão grande e de ferro, joana. de ferro, juro, de ferro. tinha cheiro de ferro, por dentro era isso: ferro, eu olhava as pontes construídas a ferro: ferro, joana, seda. como podia? ferro, joana, seda. eu tinha que repetir, inconformada. você era tão bonita. como uma ponte joana, que é que você queria? como uma ponte o que você quis. ruiu. desabou em água, joana, cheirando a ferro. joana, minha, querida. tão enorme era, guardava para si tanta dor tanto prazer de ser. fêmea. de pernas abertas, fêmea minha. era expurgo do mundo: vinha de você para aliviar o mundo; vinha de você para explodir o mundo. que é que você queria? ruir. destrutiva, destruída. que fizeram de você, anjo meu? logo você? tão bonita. por que? logo a minha, deus meu? logo aonde também eu - que sou mulher, pois sim - desabava minha dor, o cansaço de ser eu, desabava minha vontade, o êxtase de ser duas. logo a minha, dona do mundo. que é que há, joana? ignore-as. ignore as vozes, joana, ignore. e as vozes: que vozes, faziam-lhe carícias ao pé do ouvido, são de mulheres? eu perguntei certa vez, louca de ciúme, você riu, as vozes te faziam contorcer no chão da sala - sangrava escuro. ah joana minha, me perdoe. me perdoe a incompreensão, me perdoe te amar. tudo que vociferei foi por amor. mais puro amor. de esfregar teu sangue derramado, ave maria, eu diria, ave maria, só um amor desse tamanho é capaz de. eu também, mundo, eu também deveria ser recompensada. eu que fiz, limpei, amei. eu que, nossa senhora. te entendo agora tão perfeitamente. levaram nosso amor, levaram nosso messias. deixa-me chorar, deus meu, pois também sou mãe e mulher, deixa-me chorar, pois sou humana e pecadora, deixa-me chorar pois sinto saudades. não me julgue. ferro, joana, seda; repito baixo, ferro joana seda, ouço a vizinha repetir, rezando todo dia.