janeiro 01, 2012

joana, chovia

a primeira que vez que eu te vi, joana, chovia. chovia como chove agora. como chove sempre, por aqui. essa cidade deságua. nem de rio - que é só estagnação, nem de mar. deságua em chuva, desmancha. eu andava desmanchada, toda. não sei se vi primeiro seu reflexo ou você mesma. o reflexo das poças, joana. procurava a verdade nas poças de água, nas sarjetas. procurava ver deus refletido. e vi você. deus. você que é toda feita de reflexo, você que também desagua. é estranho te comparar com essa cidade, joana. você não tem nada de são paulo, santo de pedra, e é por isso que eu pude te ver. tudo embaça, tudo é névoa e garoa, aqui, joana, nada pode se ver com os olhos muito abertos. deus me livre. olhar as coisas pelo reflexo delas, olhar de lado, nunca direto nos olhos. mas foram seus olhos que eu vi, refletido. e o reflexo deles era pura verdade: me atingiram. joana, você. parada, na chuva. olhos tristes, mas de uma tristeza. era maior que a minha, que a do resto do mundo. tão funda, você joana, tão funda, como eu poderia chegar? sua cor era diferente, joana. diferente de todo o resto, você toda iluminava. e obscurecia. como explicar? eu te vi onde ninguém mais te via. parada, na chuva. desaguei em você, sem remorço, sem hesitação. eu tinha que ter você. encolhida, sentia frio, ah, joana. quem é que deixa uma menina dessas, uma menina. ainda uma menina, eu vi. por baixo do pano que você ajeitava, o peito ainda prometia crescer. os panos, joana minha. toda você que era contra e que era tudo. nunca comprou roupas, não sabe o que é comprar. não sabe o que é sorrir. costurava panos sem jeito, espetava-os com alfinetes em torno do corpo: espetava-os sem querer na própria pele, e eu me assombrava, não sente dor, menina? ia te engolindo, monstra que fui, perdoai meu deus, fechava as portas e as janelas, mostra que sou. não sente dor nunca, menina? nada. joana que era virgem, parecia imaculada eternamente. eu, como tive coragem? que monstra de dedos largos; minha língua de gato, joana, como podia? era só amor, joana, te juro. te juro amor. te jurei o mais sincero amor quando te vi, chovia. desde a primeira vez, chovia, e não parava de chover, no dia que você se foi, fazia sol, fazia céu azul. o mundo se alegrava com a sua partida, e eu chorava desesperada. sempre fui egoísta. não me importo o mundo, que mundo, joana? que mundo! é só crueldade e cansaço. exaustão. esse mundo é muito grande, o tempo é muito longo, sobreviver. sobreviver é um fardo. ter que comprar, joana. nunca conheceu a dor da compra, da venda de si. joana era livre, joana era sabe-se-lá-o-quê. joana. refletia são paulo toda em você, na água que escorria por você; refletia o mundo todo, mas não mergulhava. era outra. como podia? podia ver a tristeza de tudo, podia adivinhar a exaustão pelo halo da sua respiração. exalava o mundo. exalava-o porque não o continha. não era daqui, joana. nem de são paulo, nem daqui. refletia porque, não sei porquê, meu deus, porque vivia. pegava tudo para si e devolvia em dobro. reflexo. devolvia tudo ao seu modo, chuvosa. fazendo círculos na água estagnada, sabe como é? como quando jogávamos pedras naquele lago. a relva alta, joana, posso ainda sentir o cheiro de erva. o cheiro de erva que saía do seu suor. não era erva, não, era árvore, como carvalho, não era folha, não, era raiz. tinha cheiro do fundo da terra, úmida. de raízes desenraizadas para sempre, exalando seu cheiro de podridão. e vida. vida viva, finalmente, que vida, joana, gemia. verde, verde, sangrava verde. e os círculos que faziam na água parada do lado. os círculos eram você, joana. iam expandindo-se expandindo-se expandindo-se, que terrível. que sofrível te conhecer, se expandido sobre mim, pedindo pra ir junto, amando até o cerne. expandindo-se expandindo-se expandindo-se até além de mim, além do mundo de tudo isso, expandindo-se até sumir. sumir, simplesmente, sumir, como pode, joana? somem os círculos confundidos com a água barrenta. em torno tudo é água e aquilo pra onde foi? pra onde você foi, joana? não faz assim. me leva junto. eu sei, eu choro. acho que me arrependo, não sei. como pude deixar você escapar? se te vi na chuva, te recolhi como uma mãe faria uma menina. e você deu uma espécie de risada, uma coisa estranha. no fundo dos seus olhos, eu olhei: como se já sabia de tudo. como se soubesse do meu desejo, dos meus dedos trêmulos segurando a sacola plástica, como se soubesse de mim, velha bruaca, amargura, como se soubesse que eu seria a quem poderia se enraizar, um porto, talvez, como se soubesse do começo, do meio e do fim de todo o amor e de toda a morte, como se soubesse de agora, da minha terrível solidão, a chuva a desmanchar o mundo lá fora, e eu, aqui, irrecuperável, insaciável de ti. foi a única vez que olhei no fundo dos seus olhos. e não sei se era no reflexo da água ou se eram olhos mesmo. aquosos. pelo resto do tempo, tive medo, muito medo do que se pudesse saber antes de. eu que sempre tive controle sobre. eu que já fui mãe de família, eu que larguei família, eu que. tive tanto medo quanto amor. como a deus, joana. ama-se e teme-se. como a deus, joana.