outubro 17, 2018

inverno no mar

termino verão no aquário de lygia agora. nos últimos capítulos, ela narra alguém que sofre a morte de outro. durante todo o livro, a morte assombrava longíqua; mas o exercício de narrar um luto recém passado, eu não lia faz tempo. o calor do momento, a véspera, como diz. não a memória, o fantasma. isso eu não fiz. ainda.
um dia quis contar a vida inteira de sofia e parei em determinado ponto. talvez tenha percebido que é impossível resgatar toda a sua história - ou todos os detalhes da minha memória antes que ela se perca completamente. eu quis também perguntar a quem tinha acontecido e montar um retrato, um mosaico, um livro - só para estar entre nós. algum tipo de alento. 
não chorei com este livro. a noite caiu feito narrado no livro, a gata preta fica do meu lado na esperança de carinho. eu sei que ela me ama. eu mais uma vez não sei lidar com seu amor. com o amor de ninguém. mas agora estou tranquila, eu sei que posso amá-la em sua medida. não é preciso se desesperar.
minhas plantas estão bem, mas todas verdes, verdes demais. não consigo cultivar flores. a roseira que era a esperança da primaveira fez cair as folhas. um botão amarelo nasce do camarão. é preciso cuidar para que ele resista.
tentarei contar essa história sem muito drama e fugir da narrativa de culpa que criei para mim mesma. há anos, essa memória da culpa persiste e me desgasta. mas eu não preciso dela. sofia não precisa dela.
no seu último mês, sofia estava bem magra, frágil e perdia as funções cerebrais pouco a pouco, falava enrolada e um dos olhos fechava, tomado pelo tumor. neste mês, eu chorei deitada no travesseiro, rezei desesperada, mas só dormia sonhando com cemitérios. só dormia pensando no seu enterro. no limite do sonho e da lucidez, o sonho parecia ou premonição ou desejo perverso. o cemitério vinha-me primeiro em negativo: como quando choramos demais, os olhos criam aqueles feixes e bolas redondas de luz que ficam piscando. e o cemitério vinha assim, como negativo.
inesperadamente, era a única imagem que me fazia descansar. que me dava paz. 
eu tentei afastá-la, pois achei que pensar assim era como pedir por sua morte. era como se eu tivesse desistido, antes dela, como se eu não fosse capaz de olhar o seu sofrimento. mas quem sofria era ela! ainda penso um pouco assim, em como fui egoísta. 
mas meu corpo preparou-se um mês para sua morte. disso, eu tenho certeza. não foi menos duro quando recebi a notícia de sua morte.
a notícia é a narrativa a qual me acostumei: no domingo, vi ela nua, magrinha, os ossos aparecendo, nana me dá banho. eu já não aguentava olhar sem os olhos querer chorar. na segunda fui pra são paulo. fui à aula de manhã e a à tarde, no cinema com uma amiga. durante todo o cinema, o celular desligado. no ônibus de volta, liguei e me deram a notícia. sofia morreu enquanto eu estava no cinema. peguei um fretado para campinas onze da noite, opção mais rápida. cheguei e já tinha passado horas de sua morte.
eu não vi sua última luz, sua última calma. eu não falei com ela. por anos, me torturei com isso. mas como foi receber sua dor?
eu chorei muito no ônibus. chorei de culpa e rezei. chorei e disse a mim mesma que eu já sabia, mas a dor dilacerava no peito. no fretado, os universitários iam rindo e vivendo sua vida, jogando baralho. eu juro, a vida continuava estúpida enquanto eu me acabava, chorava alto e queria matar eles. eu queria que eles ficassem em silêncio. por um momento. nada. tive raros momentos de silêncio desde que sua morte chegou como um terremoto. como um terremoto em terras instáveis. as pálpebras inchadas, as lágrimas ressecadas no rosto. como quando secam e deixam aquele rastro no rosto inchado. eu chorei todo o mar que se chora sozinha, sem ninguém a me confortar. quando cheguei em campinas, já estava quase seca, cansada. minha mãe, eu não sei. eu não sei quem confortou ela, mas não fui eu. nem eu, ela. o júnior eu não sei. minha família inteira, eu não sei. tudo era silêncio. quando foram me buscar era silêncio no carro. a sensação de querer apenas rodar, rodar em silêncio que raíza fala, é isso. talvez seja isso. o apartamento que morávamos tava cheio de gente. não tinha muito espaço para luto. a família inteira do júnior, cumprimentei, todos daquele jeito. não me lembro como foi abraçar minha mãe. minha mãe, mãe dela. até hoje não sei como ela sofreu. por isso quando se diz com dor, eu mal me importo. ela tinha de arrumar tudo para os parentes, onde dormir, o que comer. e aquela dor no rosto do rastro das lágrimas como um rio intermitente. eu dormi no chão, num colchão num chão. acho que me lembro dela arrumando, dela me dando um beijo de boa noite. ninguém parecia saber consolar ninguém. todo mundo precisava de conforto e não havia ninguém a dar. minha mãe, tinha ainda que arrumar tudo, as provisões. ela estava calma. ela sempre esteve calma, de certo modo. nunca a vi se desesperar, não me lembro. talvez por isso parece que passou ilesa. não. passou dolorida e calada tendo que cuidar do marido cheio de drama. meu crédito não foi perturbá-la. foi tentar cuidar da minha tristeza sozinha. e o dela? quem cuidou de você, mãe? talvez por isso se fez tão triste na morte de meu avô. porque finalmente não tinha que cuidar de ninguém. podia se charfudar na tristeza. falar da morte do outro é acabar falar de um vivo. mas falar de um vivo é tocar na sua morte. se falo coisas clichês, não me importo. dormi no chão e devo ter chorado mais. mas lembro-me de ter dormido. como uma pedra. e que o dia seguinte, tomávamos café da manhã, todas aquelas pessoas, tentando descontrair. as coisas ainda tinham o cheiro dela. o cheiro dela eu senti durante muito tempo depois. associava-o como a um leite. ora doce, ora azedo. ela cheirava a leite, embora tivesse quatro anos. muitos anos depois, andando na rua, eu sentia aquele cheiro. as coisas rosas dela. os gorrinhos e chapéus, os brinquedos rosas. fiquei com a tartaruga, guardei a lagosta. a lola, os pequenos bonecos da lola. aquele bebê laranja que fala. sofia, sofia. quais eram seus brinquedos favoritos? quase todos, eu acho. de uns cinco ou seis, todos, eu acho. aquele elefante grande, não era? a cortina verde do quarto da antiga casa, esvoaçante, meio transparente. o berço branco com a cômoda branca quando você era bebê. o caixão branco. na porta um artesanato desses de bebê escrito sofia. sofia, sofia. como era seu sorriso? assim tortinho com os dentes separados. não era. bem alto. e os olhos azuis bem céu. bem alto. os brinquedinhos miúdos, você gostava. aquele de madeira de construir casa. massinha. as bolas. as bolas grandes, não as pequenas. aquela cortina verde, por quê me lembro tão bem. a cama no meu quarto que dormia. as duas chupetas. as duas chupetas, uma na boca outra no nariz. eu não me lembro direito como reagi a sua morte. será que isso importa? estou perdoada? acho que estava anestesiada. sofia. todos foram embora de casa e no enterro foi tão pouca gente. não era enterro, cremação. era lá em são bernardo. isso eu me lembro. o carro andando lento. sofia, amava palavra encantada, xuxa. o carro na estrada e todo muito quieto. e ninguém sabia o que falar. como é que o corpo foi para lá? eu não sei, eu não sei. era um cemitério simples, desses com gramado e cruz com flores no chão. nenhum túmulo, nada, só isso. muitas flores. o céu estava azul, a grama verde, as flores de todas as cores. a sala era pequena, e no meio, o caixão branco. como só fui perceber agora como se pareciam o berço e o caixão? que horror à madeira branca. que horror, sofia. o caixãozinho, como eu tinha lido algumas vezes. e você lá dentro. de olhos fechados, pálida. e você lá dentro, a carequinha proeminente, sem o azul dos seus olhos. e a roupinha, talvez rosa, um vestido. então eu senti mais uma vez a dor. dessa eu me lembro. aguda, atravessando o peito. porque fazia alguns dias que eu não te olhava. e antes disso tinha te visto viva, nua, indo tomar banho. e agora estava ali, vestida, maquiada talvez? e fria. fria demais. toquei na sua mãozinha. eu amava tanto sua mãozinha. eu segurava sua mãozinha na hora de dormir porque pensava: eu não quero esquecer nunca como é a sua mão. eu já pensava nisso. era inevitável, eu pensava o tempo todo. um pensamento me escapava e eu não sabia controlar. a gente dormia de conchinha, você dentro de mim, com suas duas pepetas. pepetas, agora sim, me lembrei como você chamava. veio tão claro, agora. e da mãozinha, eu queria reter o calor e lembrar como eram: finas, alongadas, as unhas diferentes da minha, porque eram mais angulares, mais estreitas. e a mão parecida com a da minha mãe. sim, eu segurava e olhava pra elas e as unhas transparentes com as pelinhas soltando ao lado, e pensava: são como as mãos de minha mãe. porque minhas mãos são de meu pai. gordinhas atarracadas unhas curtas e fracas dedos pequenos. e você tinha a mão dela! a mão dela como uma criança. como segurar a mão de sua mãe criança. e ver essa mão se despedir desse calor. lembro-me da fachada do boldrini agora, com os brinquedos de animais na frente, o céu azul, o calor de campinas, as nuvens rondando brancas. toda vez que lembro de sua mão, essa imagem também vem junto. agora, sinto quase o cheiro do leite. há tanto tempo, sofia. eu ás vezes não sei me aproximar da mãe, sofi. ás vezes acho que essa história que de certa forma a gente viveu juntas, sem nunca comentar direito, uniu e distanciou a gente  de um jeito sei lá. como se estivéssemos dentro demais para nos ver direito e por isso longe. entende? como num útero. é isso que penso agora. como num útero. nunca tinha me atentado que morei no mesmo lugar que você, no quente e úmido útero da mãe. e que era um bom lugar para se viver. eu não me lembro, é claro, nem você, mas me parece agora como é confortável, como exala um calor que eu gosto tanto. o calor dos edredons. os filhos da minha mãe amam uns edredons, se quer saber. mas é mentira, minha mãe me disse um dia, faz pouco tempo. e eu não consegui sequer reagir. eu fico dizendo que amadureci e sou adulta, mas não sei dizer essas coisas ainda. não sei ser sincera e limpa como ela. ela disse, estava lembrando de como você me ajudou com a sofia. estava me lembrando de como você me ajudou com o gabriel. obrigada mari. eu fico feliz que tenha ajudado, mãe, porque ás vezes acho que fiz tão pouco. pronto! eu quis escrever sobre a vésperas de uma morte e tô aqui destrinchando a relação com a minha mãe, igual no livro. mas ela é viva. é preciso dizer algo dos vivos. ela testemunhou tudo isso. eu não sei o quanto ela tocou sofia, quando ela morreu. quanto ela conseguiu abraçar um corpo que vai se esvaziando de vida. quando eu toquei, a vida toda tinha escapulido. ás vezes me assombrava esse negócio de cremar, porque vai que a pessoa ainda tá viva. mas era tão fria, e não qualquer frio. fria mesmo, fria de um jeito que eu nunca tinha sentido antes, fria como pele de cobra de lagartixa. as unhas transparentes cruzadas. eu chorei muito, sofia, porque você finalmente se foi. porque sua mão não era aquela, quente, e meio enrolada em concha quando eu pegava no seu sono. você não estava dormindo, a morte não é sono nenhum. porque seu sono era cheio dessas coisas que são vida. a mão em concha os dedos relaxados. sabem? eu chorei e a dor era muita. e depois, minha mãe me deu para ler um livrinho, onde contava a história de um passarinho que voava. não houve pregação, nem nada pesado, nem rendenção católica, e tocava palavra - fugiu me o nome da banda. eu não lembro como era o poema, mas era algo de um passarinho. passarinho, como gabs ama. por quê será que a reinventamos passarinho? como quando jogamos suas cinzas no mar e uma gaivota nos acompanhou e minha mãe e junior disseram, é sofia... eu também acreditei que era ela, naquele momento. eu precisava, porque doía, doía. a cinza voando manchando o mar azul esverdeado. seu olho, sofia. precisamente tudo isso. e seu olho. eu cheguei a desconfiar daquela cor desde que você nasceu: porque era poético demais, sofia. é céu, é mar. que ódio. e azul eu digo que amo. sinto obsessão pela cor. eu mal percebo, mas. também não tem que se justificar tudo pela psicologia, mas, quando colocada assim em linha. passarinho, então. porque voam? e agora veio-me a lembrança de que desenvolvi esse terrível medo de altura. como se eu fosse morrer. será que não sei morrer, sofia? quero dizer, não saberia criar asas, que nem você? que criei horror à morte, sofia? o poema do passarinho e a música infantil não diminuíram a dor. quando o caixãozinho branco subiu meu coração pulou da boca. que desespero. eu me lembro exatamente: que desespero. que vontade de pedir que descessem de novo, que deixassem aqui, que não levassem, que eu ficasse abraçada com ela, que ela poderia estar viva, que iam cremar ela viva, como sabiam, não tinham casos? por favor. eu nunca mais quis ver isso, e vi o do meu avô e de novo senti desespero. que coisa idiota o caixão subir!!!! que coisa mais imbecil do mundo. deixa lá e a gente vai saindo, não adianta? não adianta? eu não me lembro como foi voltar. mas deve ter sido lento, silencioso, cheio de dor. eu não me lembro como foi viver depois. lembro-me que viajamos e a vida retomava seu curso interrompido por acesso de fúria e choro do junior. nós rimos bastante naquela viagem. mas era pra ter sido feita com ela. e não em sua homenagem. durante toda ela, a urna nos acompanhou. eu nem sabia, mas nos acompanhou porque só no final a gente soltou ela, junto com as sempre-viva. as sempre viva, quando encontrar umas vou comrpar. guardei umas florezinhas dentro de um colar com um saquinho que enfiei na minha cabeça que não ia tirar do pescoço para me lembrar para sempre, como um livro a moda antiga, sim, óbvio, eu mal aguento usar colar um dia. então eu fiz a tatuagem. eu escolhi seu desenho e fiz e fiz também porque eu amava seu traço, viu? eu amava que as pessoas eram assim sempre tão gordinhas. tão parecidas comigo, diferentes de você. e as pessoas acham que é um fantasminha. ai sofia, não. era só o jeito que você desenhava viu? nada de premonição sinistra, coisa idiota, tá? eu me lembro como desenhou uma vez essas pessoas de preto e vermelho e pintou bem forte. eu tive medo do seu desenho sofia. porque entendi por ele que você sofria. sofria de não levar uma vida normal. uma vida de criança normal. eu peço desculpas por isso, mesmo que não seja minha culpa, tudo bem? eu espero que sua estadia aqui tenha sido boa. que a companhia tenha sido boa. que se lembre de mim com carinho. é tão difícil não virar espírita quando a gente tá nesses momentos. já já eu viro a cínica racional. não importa. qualquer coisa pra confortar. a dor que me aflinge se esplaha por toda a caixa toráxica, como se envolvesse meu coração e os ossos que o protegem, e assim apertando-se tudo, como se os ossos fossem esmagar o coração, é uma dor funda, do centro do peito e também dos lados, sufocante. essa dor que eu sinto agora eu senti tantas vezes tão pior, sofia. é como se me apertasse tanto que o ar tem de se comprimir para passar e o pescoço fica teso e o ar não vem e o coração dói dói mesmo. apertando-o até que não sobre nada, nadinha de mim. mas eu tenho um corpo fora de mim e uma tatuagem do meu lado esquerdo e a dor vai se diluindo pras outras partes, vai se dissolvendo pelas células. é a única forma de viver, sofia, espalhar. a gata pula bem aqui agora. nem tudo é coincidência e poesia e eu sou uma tutora um pouco má e distraída. mas arrumo esses novos problemas pra esquecer da memória antiga e dolorosa. da minha culpa. e de tudo mais.
foi dia primeiro de junho, e não era calor como no livro. era frio. mas não me lembro de sentir frio. e depois quando viajamos era nordeste e era sempre calor. mas o céu estava claro e azul como é o céu de inverno. 


outubro 15, 2018

antes que a vida se torne ordinaria

antes que a vida se torne ordinária demais.
o lugar é seco como uma cidade de um filme de faroeste. as casas são baixas e tudo é baixo para encontrar lá longe a cordilheira e mais próximo, vigilante, o vulcão. tudo é pó e poeira e fica-se com a roupa toda suja em dois minutos. amanhece frio e lá pelo meio dia o calor é insuportável e lá pelas seis bate o vento frio novamente. o céu anoitece já estrelado e o frio dá as caras. 
primeiro, vimos o céu num lugar sem luz. a van que nos levava ia titubeando no chão ruim, do lado passava o mato e casas no meio do mato, quem vive aqui? sem a luz do poste duas ou três manchas da via láctea nos sorriem tímidas. as estrelas continuam altas, pequenas, mas brilham sem lua. 
levadas de manhã por entre montes de pedras, lava embrutecida de vulcão e uma vegetação rasteira verde amarelada. tudo é marrom, amarelo, verde. num morro, guanacos comem da planta, tem o corpo marrom e a cara preta. o vento zune nos ouvidos. a todo o momento, o vento zunia, ora grosso nos ouvido, ora assobiando. nas pedras, os desenhos dos antigos povos atacamenhos. lhamas, pumas, e um macaco, um macaco-deus com riscos do lado. lhamas grávidas de lhaminhas dentro e etc. a rica rica cresce do solo, suculentas gordinhas de galhos duros e espinhosos. a montanha de pedra de lava se ergue em verde, branco de sal, marrom e um leve roxo do cobalto. trouxe uma pedra verde e uma da lua, como um cristal. os picos pontudos apontam pro céu sempre azul demais, sem nuvens. as encostas são cheias das pedras que vão se juntando umas às outras.
a cidade continua baixa e empoeirada.
na madrugada, a van nos busca. uma lua minguante bem sobre o horizonte, clara no horizonte donde nasce uma luz fraca e opaca, as estrelas ainda sorriem de luz branca. os contornos das montanhas são riscos duros no céu escuro. adormeço.
das entranhas da terra, saem as fumarolas brancas, e de algumas um jato intenso com água fervendo. os geiseres vem ao amanhecer frio e se despedem no calor do dia. no campo das fumaças, uma construção abandonada, um projeto de retirar energia daquilo. dentro do solo correm os rios de lava, fervendo. a água bule dentro da terra, mostra o magma demoníaco e com cheiro de enxofre de que é feita. um lago de águas termais - dizem - um lago de águas quentes e sulforosas saindo da terra onde os gringos se banham felizes até demais. não nos banhamos. o frio continuava cruel às nove. na volta, um vado, um pântano. as águas baixas por entre os pedaços de verde musgo donde os patos andinos, os gansos andinos e não mais que tipo de pássaro mergulham a cabeça na água e comem não sei o quê. o pássaro andino de olhos assustados e cara preta como um pinguim, o corpo branco. os patos de bico azul e os cines todo em negro elegantes se coçam. do lado do pântano, as cordilheiras em neve e as secas, o vulcão a assobiar. num pueblo de resistência ou turismo, as antigas casas de pedra e as novas, as casas baixas, a carne de lhama no espeto.
no sol quente, as lagunas escondidas continua fazendo frio por aqui tudo é planície. o vento não se escora em nada, o deserto é seco e nem a vegetação amarelada existe, só pedra. perto das lagunas o sal vai aparecendo. onde tudo uma vez houve mar, agora há crostas de sal em pedra que rasgam a pele. as lagoas não se vêem de longe, tem de chegar perto, andando pelo caminho do sal. são de um azul claro cristalino. a primeira azul escuro e as outras azuis tão claro quanto uma piscina. se abrem como buracos eternos no chão da onde a água vem do fundo, misturada com sal. mais sal que água. entramos no frio e no vento da lagoa de sal, para boiar. cheio de brasileiros falando e gente com medo, inclusive a gente. demorei para parar de boiar propositadamente, é difícil confiar no sal. daí quando deitei a cabeça na água vi aquele céu azul rachado de nuvenzinhas rarefeitas brancas e as pontas das cordilheiras lá longe e já era hora de sair. minha cara tava toda branca. a água evapora e sobra tiras de sal grosso por toda a pele. 
perdemos o óculos da dira e aparada num mirante de umas nuvens cor de chumbo se avolumando no céu não foi boa. tudo estava seco e estranho, sem vida. 
cedo nos levantamos para encarar com temor 4 dias de uyuni. a fronteira do chile com a bolívia é só quarenta minutos chegando perto do vulcão que antes só vigiava. consegui não dormir até ver ele de perto, as nuvens rondando o gigante, a terra escura se encurvando para o alto sem pico, uma cratera. quando acordei, havia neve na fronteira. tudo estava branco e demasiadamente frio. nunca tínhamos visto neve, mas o frio era muito para ir lá fora. a fronteira não é nada, um pedaço de terra extenso entre o vulcão e o nada aberto da bolívia. o chile tem suas cordilheiras dos lados, mas na bolívia tudo é mais extenso, um horizonte de terra. dois latões de lixo esmaltados de azul e amarelo, o pássaro de cara preta que chamamos de chuu ali esvoaçando e pousando, as 4x4 esperando os turistas com as mochilas coloridas. seguimos com maxx o guia boliviano de pele queimada de sol, dente de ouro e boné de lado. 
primeiro a lagoa branca, enorme. ao seu lado as montanhas refletem-se. branca porque rasa e cheia de sal. um depósito de água leitosa no centro da terra, entre os morros. sem nenhum animal, apenas água terra e mineral. sem nada que perturba um infinita paz que é feita de violência. 
depois, a lagoa verde, mais escura.
e finalmente os geiseres de la manãna, na cratera de um vulcão ativado. as fumaças brancas saíam de sulcos fundos da terra daonde um água espessa, ora vermelha como lava, ora amarela boiavam. a terra dentro destes buracos fica toda enrodilhada, como pequenos círculos, como uma pele queimada. a terra vai sendo queimada pela brutalidade da água quente. o cheiro de enxofre é um insulto, as fumaças nos atravessam e a terra parece ora oca ora firme. de dentro da terra sopram os vapores solenes. como uma música que precisa ser cantada.
nas águas termais da bolívia entramos, quente, dando a vista a um pântano com aquele mesmo musgo amarelado e uns flamingos longíquos. 
na laguna colorada, dezessete mil quilômetros quadrados de uma lagoa ora transparente como a água deve ser ora vermelha. roja. milhares de flamingos rosas se alimentam dos crustáceos que comem bactérias cheias de betocaroteno e logo se vê os flamingos que mais comem mais rosas, quase vermelhos e outros com manchas ainda incipientes no manto branco. os flamingos tem as pernas finas e dobram para trás, ficam em grupo, como se conversassem, mas apenas enfiam os bicos na terra, se coçam ou dormem em pé. milhares de flamingos. na água transparente sua penugem branca e rosa se reflete e os flamingos se duplicam sem fronteiras, tornando-se quase uma miragem, um bicho que não é ele mesmo. uma imagem. eles não se importam se são tal imagem tão devastadora de se olhar. em que a beleza foge aos olhos e estes tentam se dar conta de tudo que jamais virão isso novamente, ao menos que voltem. mas tem-se a impressão que é único e vai terminar, ainda que estejam ali há milhares de anos milhares se alimentando. terminará para nós.
na estrada a paisagem não é menos exuberante, pedras, e o verde amarelo, e as montanhas, que se abrem nu solavanco mostrando sua face branca e marrom. a montanha se ajusta ao olhar da perspectiva movendo-se e mudando de forma conforme nosso olhar de automóvel olha. uma sombra escura pode ser de um peixe ou uma cratera, não se sabe. a vicunha toda marrom come da folha amarela verde. nada daquilo é assim se testemunhado por olhos em movimento. a fenomenologia existe mais no deserto do que em qualquer outra parte.
o pueblo villa del mar não dá pro mar. entre um pântano com seus musgos e água rasa donde a lhama bebe e come e uma formação rochosa empilhada para cima, duas ruas de casinhas baixas e simples. o céu é frio e estrelado, bonito se deixado a se olhar. o quarto é grande, mas debaixo de cinco cobertores e um saco de dormir sinto-me sem ar. a altitude faz e o calor forçado no frio falta o ar. as bolivianas que atendem só balançam a cabeça ou nem isso, desviam os olhos, saem rápido antes que possamos decorar suas feições. cholas com suas armações na saia enorme, tranças compridas e bem feitas com pedaços de tecido entre o cabelo, meias grossas de lã laranjas e sandálias mal nos olham. nós é que as olhamos, como se fossem flamingos. elas, também, não se importam em ser olhadas e continuam a viver num mundo onde há apenas lhamas, terra, rocha e campos de quinua. céu estrelado e turistas, de toda parte do mundo, vindo testemunhar a beleza que é rotina. ou a miséria que aos olhos dos outros, é bonita. será miséria sua vida? ou é esse adjetivo que damos comparando ao conforto de nossas vidas? ninguém está imune de despejar coisas estúpidas para cima deles. seja a beleza que é estonteante, a miséria que deixa triste. nada escapa e tudo continua sendo pó.
dira deu um mal jeito e o segundo dia se fez mais triste.
formações rochosas se intercalam: na itália perdida, uma cidade de pedra esculpida pelo mar e pelo vento. lhamas pastam em paz. três lagoas formam uma só refletindo as pedras marrons. são de lava. a pedra é um processo inerte do planeta: se forma, se deforma, ali está. é bonita, mas é bruta. tem de se admirar por sua brutalidade por sua capacidade de nos aguentar escalando-a para ver o horizonte de pedras e montanhas. o ser humano põe os olhos em tudo e quer crê que viu tudo isso a partir deles, quer crê que sentiu a beleza apertar-lhe os bagos, os ânimos, as veias.
o ar que se respira é pouco, mas frio, percorre o corpo. a sede sempre é tanta e a água mal encosta na boca pede mais. os lábios se racham de calor e frio e a pele craquela pouco a pouco.
não sei por quê queria ver tudo isso e agora que escrevo perde ainda mais o sentido. quis sentir conexão com sua namorada, com a terra? quis ver.
pouco a pouco vamos nos aproximando do deserto de sal. 
tenho medo de altura e escalei pouco. a nível do chão, porém, considero que vi o que queria ver, patos de bico azul e a água parada refletindo o céu de pedra. as pernas finas e o bico encurvado do flamingo a cara de algodão da lhama assustada a folha grossa amarelada. 
quis ver o que eu não vi antes, qualquer coisa que fosse, vida, a vida mais vívida porque próxima da morte. num deserto onde tudo aponta para a morte, animais como a biscate coelhinho canguru se esconde na sombra da pedra vivem. os indígenas viveram e vivem. na montanha vê-se as linhas que são muros de pedra que dividiam as casas dos povos pré incas. os povos viviam em encostas, meio inclinados, bem divididos, donde a água do pântano só lá embaixo e em cima só o sol que tortura. muito longe do mar onde já fora mar. então o ar tem algo de mar: o sal. o vento continua sua sinfonia desde o começo do mundo. das lhamas e alpacas fazem suas roupas quentes e elas mesmas precisam disso tudo. como deus é bom e darwin estava correto, como darwvin é bom e deus não existe, como darwin nunca existiu e deus dorme debaixo da pedra. o planeta é um mistério infindável, do magma vaporoso até o céu escuro de estrelas. quis vir para testemunhar ainda jovem a profunda velhice e soturnice da terra, os rasgos e as rusgas de sua face, seus olhos fechados de noite contrariados. o que é implacável, insólito, instável, que expulsa o homem da terra que continua fincando com suas sandálias de couro e mais de lã tranças negras debulhando no chão. em uma paisagem onde tudo paira eterno e imutável sabe-se deformado e em constante mudança, terra erodida, força da água nas pedras, vento que esculpe, vulcão cospe, tectônicas que fazem tremer e abrem falhas na terra. tudo lento mas visível como se rápido, como se víssemos de outra constelação o acelerar do tempo da terra. tudo visível mas tão sólido quanto uma cordilheira como se não fosse possível pensar que antes ali não havia nada. mas agora ela existe gigante e bruta e arregaça os dentes brancos a todo o momento como que querendo nos engolir como se dissesse que sempre esteve ali e sempre estará. tudo na natureza de um egoísmo pungente, que parece se maravilhar consigo mesmo, assassinando seu rosto em múltiplas lascas que voam para quilômetros distante. 
chegamos a um pueblo onde um hostal de sal nos esperava, os tijolos de sal com cimento do lado e o chão de um sal maior que o grosso titurado. dava para frente do deserto longíquo onde não se via nada além do branco. lá longe umas luzes assinalavam uma usina tecnológica de extração de lítio. o lítio da minha pilha que escrevo nesse teclado no meio daquele sal todo e eu nem tchum. reto e infinito, quando a noite caiu em seu manto habitual de estrelas o céu ainda refletia a luz que brotava como magia do horizonte. 
acordamos ainda no escuro e subimos uma isla no meio do deserto de sal, um vulcão feito de rochas do fundo do mar, que ainda mostrava os corais enbranquecidos e envelhecidos pelo tempo e pela poeira. cactos de cinco metros grossos cheios de espinhos por toda a parte. o sol nasceu lá do final do horizonte onde o teto branco reto e infinito de alguma maneira parece terminar. e iluminou todo o branco deixando rastro de luz e um céu azul. 
no meio do deserto nada se vê. a não ser longe as montanhas refletidas pelo branco arredondando-se onde tudo, aqui, não tem fim. não tem fim o horizonte do sal, como é o mar quando o olhamos da praia, não tem forma as montanhas que se refletem em si mesmas e parecem boiar, miragens. tudo é branco e o sol tudo lava, cegando nossos olhos escondidos por óculos de sol. nos divertimos tirando aquelas fotos. 
tudo aqui um dia fora mar e agora o sal em quatro ou oito camadas grossas se sustenta em cima de água. buracos se abrem no sal pela pressão da água e por ela escapa a água com jeito de congelada e os cristais de sal. morte. lembra-se da morte, do que há depois dela, talvez. um nada branco congelado, não leitoso, não confortável. senta-se no sal e fica-se branco e gelado e a pele queima de sol. beija o branco.
formam-se no chão de sal como que octângulos deformados. craquelados, parecendo ceder á água sem nunca ceder, firme e frágil em sua essência.
sexual.
depois disso não havia quase mais nada para ver além de trens velhos, cidades de faroeste, uma simpática boliviana perguntando se gostamos. este é um pueblo muy chico. a linha do trem até antofogasta no meio da poeira.
surreal e selvagem.